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Processo n.º 913/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A representante do Ministério Público junto dos Juízos
Criminais de Lisboa interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra o despacho de 11 de Abril de 2008 do Juiz do 6.º Juízo Criminal de
Lisboa, que recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação das normas dos
artigos 119.º, alínea f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal (CPP), na
interpretação segundo a qual “a inviabilidade da realização do julgamento no
prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação constitui uma nulidade
insanável, porquanto tal conduz à alteração da forma de processo abreviado para
a forma de processo comum e, assim, de forma mediata, à alteração das regras
prévias e expressas que fixam a competência dos tribunais, neste caso, do
Tribunal de Pequena Instância Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, em
violação dos artigos 22.º, 23.º, 100.º e 102.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro, 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal e 32.º, n.º 9, da
Constituição da República Portuguesa”.
O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Questão Prévia: da inconstitucionalidade da interpretação dada à
norma contida no actual artigo 391.º‑D do Código de Processo Penal, no sentido
de que a inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias constitui
uma nulidade insanável.
*
Foi proferido despacho de acusação, no dia 13 de Fevereiro de 2007,
imputando ao arguido, por factos indiciariamente praticados no dia 10 de
Fevereiro de 2007 e enquadráveis no crime de condução sem habilitação legal,
previsto no artigo 3.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, para
julgamento em processo abreviado.
Os autos foram remetidos à distribuição no Tribunal de Pequena
Instância Criminal a 16 de Março de 2007 (fls. 32), tendo o M.mo Juiz titular
do 2.º Juízo, 2.ª Secção, do Tribunal de Pequena Instância de Lisboa recebido a
acusação e designado datas para a realização do julgamento, por despacho de 29
de Março de 2007.
O processo foi, contudo, novamente concluso ao mesmo M.mo Juiz
titular no dia 4 de Janeiro de 2008.
O M.mo Juiz titular do 2.º Juízo, 2.ª Secção, do Tribunal de Pequena
Instância de Lisboa, em despacho de 4 de Janeiro de 2008, considerou existir,
devido às alterações legislativas introduzidas no Código de Processo Penal pela
Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e, em especial, pela introdução do artigo
391.º‑D em tal diploma, uma nulidade insanável, por emprego de forma de processo
especial fora dos casos previstos na lei (artigo 119.º, alínea f), do Código de
Processo Penal), proveniente, em síntese, do facto de a audiência de julgamento
não poder realizar‑se no prazo de 90 dias, conforme actualmente previsto no
mencionado normativo.
*
Cumpre apreciar e decidir.
Deixamos desde já consignado que não se pode concordar com a
posição assumida no aliás douto despacho do M.mo Juiz Titular do Tribunal de
Pequena Instância de Lisboa, que declarou existir uma nulidade insanável por
emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei (artigo
119.º, alínea f), do Código de Processo Penal).
Com efeito, a acusação deduzida nestes autos respeitou na íntegra o
disposto nos artigos 391.º‑A e 391.º‑B do Código de Processo Penal, que, salvo
melhor opinião, fixam de forma definitiva quando o uso do processo abreviado
deve ter lugar.
Note‑se, antes do mais, que na recente alteração legislativa em
causa não foi alterado o disposto no artigo 119.º, alínea f), do Código de
Processo Penal, que prevê a existência de nulidade insanável em caso de emprego
de forma de processo especial fora dos casos expressamente previstos na lei.
Por outro lado, é um facto que a actual lei, devido às alterações
introduzidas pela Lei n.º 48/2007, introduziu um preceito novo, o artigo
391.º‑D do Código de Processo Penal, e é certo que tal dispositivo legal dispõe
que «A audiência de julgamento em processo abreviado tem início no prazo de 90
dias a contar da dedução da acusação».
Contudo, o desrespeito do prazo previsto em tal normativo inovador
apenas pode consubstanciar uma irregularidade sujeita ao regime do artigo 123.º
do Código de Processo Penal, conforme, aliás, se expressa o Venerando
Conselheiro Maia Gonçalves no Código de Processo Penal Anotado, na última
edição.
Com efeito, escreve aquele mui ilustre autor: «O início da audiência
para além de 90 dias a contar da dedução da acusação constitui irregularidade,
sujeita ao regime do artigo 123.º» (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal
Anotado, Coimbra, Almedina, 2007, p. 824).
Quanto a nós, tal conclusão resulta à evidência, desde logo, com
vista a salvaguardar as regras da competência, que são, diríamos nós, sagradas,
em termos jurídico‑criminais, e por isso merecedoras da mais alta tutela, ou
seja, constitucional, pelo preceituado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da
República Portuguesa, onde se dispõe: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao
tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior».
Desta norma constitucional emana o princípio do juiz natural ou do
juiz legal, que é uma garantia do processo criminal.
Neste âmbito, não pode ser assim descurado o facto de que, na
Comarca de Lisboa, a competência para o julgamento dos processos abreviados está
expressamente atribuída ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa
(artigo 102.º, n.º 1, da LOFTJ).
Tal regra de competência, numa interpretação de acordo com a
Constituição, não pode ser, de forma alguma, violada.
Recorde‑se que a norma constitucional em referência (artigo 32.º,
n.º 9, da CRP) tem outros reflexos na legislação ordinária.
Neste âmbito, destacam‑se os artigos 22.º e 23.º da LOFTJ (Lei n.º
3/99, de 13 de Janeiro), onde se prevê:
«Artigo 22.º (Lei reguladora da competência)
1 – A competência fixa‑se no momento em que a acção se propõe,
sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.
2 – São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto
se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída
competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.
Artigo 23.º (Proibição de desaforamento)
Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro,
a não ser nos casos especialmente previstos na lei.»
A consequência mediata da declaração de nulidade insanável do
processado, por emprego de processo especial fora dos casos expressamente
previstos na lei, é a alteração do tribunal competente para proceder ao
julgamento da causa, porquanto, passando o processo a seguir a forma comum, na
comarca de Lisboa (e todas as outras comarcas onde se encontram instalados
tribunais de pequena instância criminal), o tribunal competente para o
julgamento passa a ser um Juízo Criminal (artigo 100.º da LOFTJ).
Assim sendo, seguindo um entendimento onde a declaração de nulidade
do processado anterior conduz a uma alteração da forma do processo e, em
consequência, a uma alteração de competência do tribunal, neste caso, para o
julgamento do processo abreviado, fixada expressamente no já aludido artigo
102.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, afigura‑se que tal despacho
provoca um desaforamento que não está especialmente previsto na lei, em
violação expressa do artigo 23.º da LOTFJ e do próprio princípio do juiz
natural ou legal, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da CRP.
O princípio do juiz natural ou legal, conforme nos recordam J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa
Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 525, comporta
várias dimensões fundamentais, a saber:
«... (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz
(ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente
individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível
inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância
das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos
preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do
juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à
divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a
fixação de um plano de distribuição de processos ...»
Resulta, pois, da exposta doutrina que a lei que fixa a competência
deve estar individualizada através de uma lei geral, de uma forma o mais
possível inequívoca, devendo tais regras ser respeitadas quer de forma mediata
quer de forma imediata, com tutela mesmo ao nível do plano de distribuição dos
processos.
Ora, a interpretação que o despacho em causa realiza do disposto nos
artigos 391.º‑D e 119.º, alínea f), do Código de Processo Penal põe em causa,
conforme resulta da presente exposição, de forma mediata mas evidente, as regras
da competência expressamente consagradas no artigo 102.º, n.º 1, da LOFTJ.
Sufragando a interpretação do despacho em causa, a forma do processo
e, de forma mediata, a competência para o julgamento dos processos fica, além do
mais, dependente das contingências particulares da vida humana, pois será a
agenda do juiz, o tempo na distribuição e conclusão do processo pela Secção de
processos, eventuais atrasos dos CTT, baixas por doença dos titulares do
respectivo tribunal, licenças de maternidade ou paternidade, que determinarão
ou não a possibilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias a contar
da dedução da acusação, conforme actualmente previsto no artigo 391.º‑D do
Código de Processo Penal, e assim o emprego da forma especial do processo e a
competência do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o julgamento.
Ora, deste modo, a competência do tribunal fica sujeita a uma
evidente indeterminabilidade e a regra da competência pré‑fixada na lei a uma
notória subjectividade, em clara violação do artigo 32.º, n.º 9, da CRP.
Neste âmbito, recorde‑se o que os doutos constitucionalistas citados
referem a este respeito: «A escolha do tribunal competente deve resultar de
critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos» (ibidem). A
lei é geral e abstracta, e tais pressupostos, em matéria de competência,
fazem‑se sentir no mais elevado dos planos jurídicos, o constitucional.
Devido à importância da generalidade e abstracção na fixação das
regras da competência, donde emana o já invocado princípio do juiz natural ou
legal, o Código de Processo Penal não podia deixar de enquadrar violações a tais
regras nos mais intensos vícios processuais, ou seja, nos que consubstanciam
nulidades insanáveis, em concreto previsto no artigo 119.º, alínea e), do Código
de Processo Penal.
Nem se diga, contra a interpretação que aqui se expõe, que a
alteração da forma do processo e, em consequência, da competência dos tribunais,
vem reforçar os direitos dos arguidos inicialmente submetidos ao julgamento em
processo abreviado, porquanto, actualmente, devido às alterações introduzidas
pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, esta forma de processo deixou de prever o
debate instrutório, anteriormente previsto para esta forma do processo no artigo
391.º‑C, n.º 2, do Código de Processo Penal, sendo certo que, com a passagem à
forma do processo comum, o arguido volta a ter direito à instrução.
Tal argumento, desde logo, enferma de um vício de lógica, porquanto,
no caso concreto, tendo sido o arguido notificado do despacho de acusação,
deduzido sob a forma abreviada, foi‑o ao abrigo da lei antiga, ou seja, quando
tinha o direito de requerer debate instrutório, não tendo o arguido usado de tal
faculdade.
Entendemos, pois, que o despacho em causa, além de violar as normas
da LOFTJ e a norma da CRP já acima citadas, viola ainda o princípio da
aplicação da lei processual no tempo, que dispõe que a lei processual penal não
deve ser aplicada aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando
da sua aplicabilidade imediata possa resultar quebra da harmonia e unidade dos
vários actos do processo, sendo certo que ao abrigo da anterior lei não
resultava qualquer agravamento sensível e ainda evitável da situação processual
do arguido, nomeadamente a limitação dos seus direitos de defesa (artigo 5.º,
n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal).
Em suma, o despacho proferido pelo M.mo Juiz, salvo melhor
entendimento, mais não faz do que pronunciar‑se, através da declaração da
nulidade do emprego do processo abreviado, de forma mediata e inconstitucional,
sobre as regras da competência dos tribunais comuns, anteriormente fixadas pelo
legislador, violando diversas normas da legislação ordinária que mais não visam
do que dar corpo ao princípio constitucional do juiz legal, consagrado no artigo
32.º, n.º 9, da Constituição.
Neste contexto, a interpretação dada à norma contida no actual
artigo 391.º‑D do Código de Processo Penal, no sentido de que a inviabilidade da
realização do julgamento no prazo de 90 dias constitui uma nulidade insanável,
que conduz, por sua, vez, à alteração da competência dos tribunais, neste caso,
do Tribunal de Pequena Instância Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, é,
salvo melhor entendimento, inconstitucional, por violar o disposto no artigo
32.º, n.º 9, da Constituição.
Assim sendo, aceitar a aplicação das normas contidas nos artigos
119.º, alínea f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal, na interpretação que
lhes foi dada no despacho em causa, e aceitando, assim, em consequência, a
competência para o julgamento dos presentes autos, constitui, quanto a nós, uma
inconstitucionalidade, que nos é vedada pelo mais elevado dever do juiz de
respeito à Constituição da República Portuguesa.
Terá de ser pelo estabelecido nos artigos 391.º‑A e 391.º‑B que se
considera fixada a possibilidade do uso do processo especial abreviado e, em
consequência, terá de ser pela verificação dos pressupostos aí previstos que se
considera fixada a competência do Tribunal de Pequena Instância Criminal e
Juízos Criminais de Lisboa, em respeito pelas normas de competência previstas
nos artigos 100.º, 102.º, n.º 1, 22.º e 23.º da LOFTJ.
Recorde‑se, para terminar, que aqueles dispositivos do Código de
Processo Penal dispõem:
«Do processo abreviado
Artigo 391.º‑A (Quando tem lugar)
1 – Em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão
não superior a 5 anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem
indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o
Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito
sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado.
2 – São ainda julgados em processo abreviado, nos termos do número
anterior, os crimes puníveis com pena de prisão de limite máximo superior a 5
anos, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na
acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão
superior a 5 anos.
3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, considera‑se que há provas
simples e evidentes quando, nomeadamente:
a) O agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não
puder efectuar‑se sob a forma de processo sumário;
b) A prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no
prazo previsto para a dedução da acusação; ou
c) A prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme
dos factos.
Artigo 391.º‑B (Acusação, arquivamento e suspensão do processo)
1 – A acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que
se refere o n.º 3 do artigo 283.º. A identificação do arguido e a narração dos
factos podem ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de
notícia ou para a denúncia.
2 – A acusação é deduzida no prazo de 90 dias a contar da:
a) Aquisição da notícia do crime, nos termos do disposto no artigo
241.º, tratando‑se de crime público; ou
b) Apresentação de queixa, nos restantes casos.
3 – Se o procedimento depender de acusação particular, a acusação
do Ministério Público tem lugar depois de deduzida acusação nos termos do artigo
285.º.
4 – É correspondentemente aplicável em processo abreviado o
disposto nos artigos 280.º a 282.º.»
A forma do processo e, consequentemente, a competência do Tribunal
de Pequena Instância Criminal e Juízos Criminais de Lisboa fixa‑se, pois, de
acordo com estes dispositivos e não de acordo com o preceituado no artigo
391.º‑D do mesmo diploma.
Pelo exposto e decidindo:
A) Recusa‑se, por inconstitucional, a interpretação dada aos artigos
119.º, alínea f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal e a sua subsequente
aplicação, no sentido de que a inviabilidade da realização do julgamento no
prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação constitui uma nulidade
insanável, porquanto tal conduz à alteração da forma de processo abreviado para
a forma de processo comum e, assim, de forma mediata, à alteração das regras
prévias e expressas que fixam a competência dos tribunais, neste caso, do
Tribunal de Pequena Instância Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, em
violação dos artigos 22.º, 23.º, 100.º e 102.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro, artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, e artigo 32.º,
n.º 9, da Constituição da República Portuguesa;
B) Em consequência, declara‑se este tribunal incompetente para a
realização do julgamento e recusa‑se o recebimento destes autos.”
Neste Tribunal, o representante do Ministério Público
apresentou alegações, concluindo:
“Tendo em conta que a fundamentação que subjaz ao despacho
recorrido se abriga na violação de normas legais ordinárias, relativas à
aplicação da lei no tempo quanto aos requisitos da forma especial de processo,
há que concluir, assim, não se estar perante uma verdadeira questão de
inconstitucionalidade normativa, pelo que não deve tomar‑se conhecimento do
recurso”.
Esta posição foi alicerçada nas seguintes considerações:
“[III] 1. Como bem resulta dos autos, o que ressalta sem dúvida
alguma, é uma divergência, entre dois juízes, sobre a interpretação a conferir a
uma lei nova e as consequências que daí podem advir dessas interpretações.
2. Com efeito, enquanto que o Juiz a quo (Tribunal Criminal) entende
que a lei nova não afecta a forma de processo que se iniciou antes da entrada em
vigor desta, já o juiz do TPIC não o entendeu assim, considerando que a «nova
fórmula» quanto à possibilidade de uso da forma de processo abreviado se
aplicava desde logo, retroagindo o efeito dessa lei nova.
3. O Juiz do TPIC, no fundo, considera que uma alteração legal
superveniente determina, ipso facto, «erro» na forma de processo! E o Juiz do
Tribunal Criminal entende que não!
4. Assim sendo, o fundamento (essencial) para a decisão tomada pelo
Juiz a quo, e por este invocada expressamente, é o da violação de comandos
legais relativos quer à competência dos Tribunais (v. g. artigos 22.º, 23.º,
100.º e 102.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), quer à «qualificação»
de eventuais «irregularidades» ou «ilegalidades» (v. g. artigo 119.º, alínea e),
do CPP).
5. Decorre ainda que o que é logicamente anterior, no pressuposto
interpretativo que subjaz a ambos os Tribunais, é tão‑somente (mas crucial), a
perspectiva legal sobre a aplicação da lei no tempo quanto às novas normas
relativas ao processo abreviado.
6. Ora, e se assim é, não estamos perante uma verdadeira questão de
«inconstitucionalidade normativa», mas sim de dirimição ordinária entre duas
decisões judiciais (como se aponta, aliás, no ponto n.º 7, em I), quanto a um
verdadeiro conflito negativo de competências. (Registe‑se, aliás, que caso
tivesse transitado em julgado o despacho a quo, e seria esse o mecanismo que
deveria usar‑se para uma tal dirimição).
7. Este Tribunal tem vindo a solidificar uma jurisprudência no
sentido de que, nesses casos, não estamos perante uma «questão de
constitucionalidade normativa». Com efeito, e para além de outros (vide Acórdãos
n.º 489/2004, n.º 710/2004 e n.º 128/2005, todos deste Tribunal Constitucional),
veja‑se o que, no Acórdão n.º 210/2006, se exarou a esse propósito, a página 8:
«Mas, ainda em relação àquelas, é legítimo concluir que, ou não está sequer
colocada uma questão de constitucionalidade normativa ou, como já se explicitou
supra, não o está nos termos claros e perceptíveis que é exigível. Com efeito, a
violação de normas constitucionais referida nas conclusões LXIII a LXV visa
apenas corroborar a tese de que as escutas são nulas. Acresce que o recorrente,
em tais conclusões, insiste em afirmar que o próprio preceito de direito
infraconstitucional cuja constitucionalidade pretende ver apreciada – o artigo
188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –, terá sido ele mesmo violado. Ora,
como se afirmou, nomeadamente, nos Acórdãos n.ºs 489/2004 e 710/2004 e, mais
recentemente, no Acórdão n.º 128/2005 (todos disponíveis na página Internet do
Tribunal, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), ‘se se utiliza
uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito
legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios
constitucionais, tem‑se por certo que a questão de desarmonia constitucional é
imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao
ordenamento jurídico infra‑constitucional que se tem por violado com essa
decisão, pois que se posta como contraditório sustentar‑se que há violação desse
ordenamento e [que] este é desconforme com o Diploma Básico. Efectivamente, se
um preceito da lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais
acatá‑lo, pelo que esgrimir com a violação desse preceito, representa uma
óptica de acordo com a qual ele se mostra consonante com a Constituição. Isto é,
se se sustenta que determinada postura é, simultaneamente, violadora de
preceitos do ordenamento jurídico infra‑constitucional e de normas
constitucionais só se pode concluir que se está a questionar a própria decisão
judicial e não a constitucionalidade dos preceitos ordinários.’ Mas, nesse caso,
é jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, não estando em causa
uma dimensão normativa do preceito legal aplicado na decisão, mas sim a própria
decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto
no artigo 280.º da Constituição e no artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e assim tem
sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade,
ainda que se entenda que, suscitada uma concreta questão de
inconstitucionalidade da decisão judicial recorrida, não poderão as instâncias
deixar de se pronunciar sobre tal matéria, o facto é que uma tal suscitação, por
não se tratar da suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa,
não abre via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, seja porque se entende que não foi colocada uma questão
de constitucionalidade normativa, seja porque se conclui que não foi suscitada
de modo processualmente adequado a exacta questão de constitucionalidade da
interpretação normativa em causa, não pode o Tribunal conhecer do recurso nesta
parte.»”
O recorrido não apresentou contra‑alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Do conhecimento do objecto do recurso.
2.1.1. A possibilidade de conhecimento do objecto do
recurso é negada pelo próprio recorrente, com o argumento de que a questão em
causa não é “uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa”, “tendo
em conta que a fundamentação que subjaz ao despacho recorrido se abriga na
violação de normas legais ordinárias, relativas à aplicação da lei no tempo
quanto aos requisitos da forma especial de processo” abreviado.
Não se acompanha este entendimento.
É inegável que o despacho recorrido manifesta a sua
discordância com a interpretação e aplicação de normas de direito ordinário
efectuadas pelo despacho do juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal de
Lisboa, de 4 de Janeiro de 2008, no que concerne à qualificação como nulidade
insanável, e não como mera irregularidade, da eventual realização de audiência
de julgamento em processo abreviado para além do prazo de 90 dias contado a
partir da dedução da acusação, mas a sua fundamentação não se limita a essa
manifestação de discordância, ao nível da interpretação do direito ordinário,
antes se alicerça – e de forma determinante – no entendimento de que tal
interpretação, além de errónea, é violadora de normas e princípios
constitucionais, designadamente do “princípio do juiz natural”.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional, citada pelo
recorrente, é, salvo o devido respeito, imprestável para o presente caso. Todas
as decisões citadas (Acórdãos n.ºs 489/2004, 710/2004, 128/2005 e 210/2006)
foram proferidas em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC e visavam aferir do correcto cumprimento, por parte dos
recorrentes, do ónus de adequada suscitação de uma questão de
inconstitucionalidade normativa, distinguindo‑a das situações em que a violação
da Constituição é directamente imputada a decisões judiciais, em si mesmas
consideradas. E o que nesses acórdãos se entendeu foi que, atento o específico
condicionalismo que rodeou, em cada um dos casos, a suscitação da questão de
inconstitucionalidade, havia que concluir que, ao acusar determinada decisão de
violar o direito ordinário e simultaneamente violar a Constituição, não se
estava a suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa, mas antes uma
questão de inconstitucionalidade da própria decisão judicial, inidónea a
integrar o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional.
O que, em rigor, distingue as situações em que se
suscita uma questão de inconstitucionalidade normativa das situações em que se
suscita uma questão de inconstitucionalidade de decisão judicial é que,
naquelas, a violação da Constituição é imputada a uma norma de direito
ordinário, na sua directa estatuição ou numa sua determinada interpretação,
desde que dotada de generalidade e abstracção, e, nestas, a desconformidade com
a Lei Fundamental é directamente reportada ao juízo concreto subsuntivo feito
pela decisão judicial em causa. Nesta perspectiva, nada obsta – e são
incontáveis os casos que têm sido decididos pelo Tribunal Constitucional – a que
o recorrente repute errónea a interpretação de determinada norma de direito
ordinária, face às regras hermenêuticas tidas por mais correcta, e
simultaneamente questione a constitucionalidade dessa interpretação, desde que
dotada de generalidade e abstracção. O que seria ilógico seria o recorrente
dizer que a decisão judicial não adoptou a correcta interpretação da norma e
simultaneamente sustentar a inconstitucionalidade dessa interpretação tida por
correcta; mas já nenhuma contradição intrínseca existe em sustentar‑se que a
decisão judicial acolheu uma interpretação (geral e abstracta) da norma que se
considera incorrecta e que essa incorrecta interpretação (desde que – repete‑se
– dotada de abstracção e generalidade) viola a Constituição, situação esta
última em que não se descortina qualquer obstáculo a que se repute adequadamente
suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, cognoscível pelo
Tribunal Constitucional, mesmo no âmbito de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
No presente caso, assume claramente natureza normativa o
critério decisório cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida com
fundamento em inconstitucionalidade. Trata‑se de um critério dotado de
generalidade e abstracção, susceptível de ser invocado perante uma
multiplicidade de casos: em todos os processos em que hajam decorrido mais de 90
dias sobre a dedução da acusação em processo abreviado, devem os autos ser
remetidos para processo comum, sob pena de, com a realização da audiência de
julgamento após esse prazo, se cometer nulidade insuprível.
Foi este critério normativo que o despacho ora recorrido
se recusou a aplicar, não apenas por o considerar incorrecto, ao nível da
interpretação do direito ordinário, mas por o reputar inconstitucional.
Considera‑se, assim, que a questão que integra o objecto
do presente recurso assume carácter normativo, ao contrário do defendido pelo
recorrente.
2.1.2. O não conhecimento do recurso poderia ainda
basear‑se no entendimento de que o despacho recorrido assenta num duplo
fundamento – incorrecção da interpretação acolhida no despacho do Tribunal de
Pequena Instância Criminal e inconstitucionalidade do correspondente critério –,
pelo que não existiria interesse processual no conhecimento do recurso, dado
que, mesmo que este obtivesse provimento (julgando‑se não padecer de
inconstitucionalidade o apontado critério), o sentido da decisão manter‑se‑ia o
mesmo, embora reduzido ao primeiro fundamento.
Também se julga improcedente esta questão prévia, quer
por se entender que este juízo de inutilidade é inaplicável aos recursos
interpostos ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC,
designadamente quando seja cabível (ou inclusivamente já haja sido interposto)
recurso ordinário na parte relativa ao fundamento alternativo, quer por ser
questionável que o primeiro “fundamento” seja suficiente para sustentar a
decisão final.
A primeira questão já foi abordada no Acórdão n.º
256/2004 desta 2.ª Secção, em termos que de seguida se recordam:
“São numerosas as decisões do Tribunal Constitucional no sentido de
que, em caso de existência de pluralidade de fundamentos autónomos da decisão
recorrida, cada um deles suficiente para suportar essa decisão, não há que
conhecer, por falta de interesse processual, do recurso de constitucionalidade
em que apenas se questione um desses fundamentos. Porém, tais situações surgem,
na generalidade dos casos, em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos quais, por força da regra da prévia exaustão
dos recursos ordinários, a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional
coincide com a decisão definitiva da causa, e, por isso, nessas hipóteses, o
eventual provimento do recurso de constitucionalidade surge como insusceptível
de afectar simultaneamente o sentido da decisão judicial recorrida e o desfecho
da causa.
O presente caso apresenta as particularidades de se tratar de um
recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mas,
sobretudo, de ter por objecto uma decisão judicial que não representa a decisão
final da causa, por dela caber recurso ordinário (que, aliás, no caso, já foi
interposto).
A circunstância de se tratar de recurso de decisão de recusa de
aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade justifica a evocação
do decidido no Acórdão n.º 159/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º
vol., pág. 371), em que, também num recurso desse tipo, a decisão recorrida
utilizara dois fundamentos para afastar a aplicação da norma da alínea ii) do
artigo 1.º da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, que amnistiara infracções
disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais
públicos, a saber: (i) não serem abrangidas na previsão legal as empresas de
capitais apenas maioritariamente públicos, como era o caso da então ré; e (ii)
mesmo que esta fosse considerada empresa de capitais públicos, padecer a norma
em causa de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade.
Nesse caso, reconhecendo que este juízo de inconstitucionalidade funcionou como
ratio decidendi, o Tribunal Constitucional entendeu que, apesar da existência de
um outro fundamento autónomo, havia interesse no conhecimento do recurso, pois o
fundamento da inconstitucionalidade «não deixaria também de ser aplicável se
fosse diverso o entendimento quanto à natureza da empresa ré», ao que acrescia
que «se trata[va] de uma decisão que julgou inconstitucional uma dada norma, o
que, a não se conhecer do recurso, implicaria o trânsito da decisão recorrida
sem que o Tribunal Constitucional, ao qual compete, por forma específica e em
última instância, conhecer das questões de natureza jurídico‑constitucional, se
viesse a pronunciar», e, por último, que, sobre a norma em causa, o Tribunal
Constitucional acabara de emitir, em plenário, dois acórdãos no sentido da não
inconstitucionalidade.
Com efeito, ao imporem ao Ministério Público a obrigação de interpor
recurso das decisões dos tribunais que hajam recusado a aplicação de norma
constante, designadamente, de acto legislativo (como é o presente caso), com
fundamento em inconstitucionalidade e ao estabelecerem a regra da subida
imediata desses recursos, sem prévia exaustão dos recursos ordinários no caso
cabíveis, a Constituição e a lei pretendem que o «conflito entre o poder
judicial e o poder legislativo», vislumbrável naquela recusa judicial de
aplicação de norma legal, seja rapidamente dirimido pelo órgão constitucional
competente para dizer a última palavra em questões de constitucionalidade – o
Tribunal Constitucional –, impedindo a consolidação, na ordem jurídica, de
decisões judiciais de inconstitucionalidade de normas legais sem que o Tribunal
Constitucional possa controlar esses juízos.
Poderemos interrogar‑nos – questão que se deixa em aberto – se esses
interesses não deverão ceder a razões de economia e utilidade processuais em
casos em que a decisão judicial estribada em pluralidade de fundamentos é
simultaneamente a decisão final e definitiva do pleito. Mas em situações – como
a dos presentes autos – em que a decisão recorrida para o Tribunal
Constitucional não é a decisão definitiva da causa, por ser ainda susceptível
de recurso ordinário (aliás, neste caso, já interposto), nem sequer se pode
argumentar com a inutilidade da pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a
questão de constitucionalidade perante ele suscitada. Na verdade, o interesse
processual ora em apreço deve aferir‑se face à susceptibilidade de a pronúncia
do Tribunal Constitucional «se projectar utilmente sobre a decisão quanto ao
mérito da causa» (para usar a formulação do citado Acórdão n.º 159/93), isto é,
sobre o desfecho da acção, e não restritamente sobre a concreta decisão
judicial recorrida, quando esta não é a decisão definitiva. Isto é: a utilidade
processual é susceptível de ser aferida relativamente ao processo (à causa),
não se reportando apenas à decisão recorrida.
No presente caso, o imediato conhecimento, pelo Tribunal
Constitucional, da questão de constitucionalidade perante ele suscitada tem a
óbvia utilidade de resolver definitivamente uma das duas questões que estão em
discussão nos autos: a da constitucionalidade da norma do artigo 36.º, n.º 2,
da LTC. Se o Tribunal Constitucional, revogando nessa parte a sentença
recorrida, não julgar inconstitucional tal norma, à Relação de Lisboa, vinculada
por esse juízo de não inconstitucionalidade, apenas restará apreciar a outra
questão suscitada nas alegações do recurso perante ela interposto: a de saber
se se mostra preenchida a condição prevista na alínea c) desse preceito
(atribuição de uma retribuição durante o período de limitação da actividade do
trabalhador). Se, ao invés, o Tribunal Constitucional, confirmando nessa parte a
sentença recorrida, julgar inconstitucional a dita norma, então é a Relação de
Lisboa que até se poderá considerar dispensada de conhecer do outro fundamento
da sentença, pois, mesmo que considerasse preenchida a aludida condição, nunca a
acção poderia proceder por força do juízo de inconstitucionalidade
definitivamente emitido pelo Tribunal Constitucional.
Surge, assim, como patente – salvo o devido respeito por opinião
diversa – a utilidade processual do conhecimento do presente recurso.”
Independentemente destas considerações, acresce que, no
caso, é extremamente duvidoso que o “fundamento” relativo à discordância quanto
à interpretação do direito ordinário fosse, por si só, suficiente para sustentar
a decisão recorrida. Na verdade, nada, no discurso desenvolvido ao longo dessa
decisão, permite dar por assente que o desfecho do caso seria o mesmo se a
interpretação tida por incorrecta não fosse também considerada
inconstitucional. Pelo contrário, a expressa alusão ao dever, ele também com
assento constitucional, de o juiz recusar a aplicação de normas
inconstitucionais, inculca que foi essa a razão determinante da recusa de
aplicação do referido critério normativo. Isto é: o autor da decisão recorrida
não recusou acatar o critério normativo seguido na anterior decisão por o
considerar errado, face às regras de interpretação do direito ordinário, mas por
o reputar inconstitucional, concluindo: “aceitar a aplicação das normas contidas
nos artigos 119.º, alínea f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal, na
interpretação que lhes foi dada no despacho em causa, e aceitando, assim, em
consequência, a competência para o julgamento dos presentes autos, constitui,
quanto a nós, uma inconstitucionalidade, que nos é vedada pelo mais elevado
dever do juiz de respeito à Constituição da República Portuguesa”. Em coerência
com este entendimento, a parte decisória do despacho ora recorrida
explicitamente se centra na recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da
aludida interpretação.
2.1.3. Refira‑se, por último, que não se afigura
possível fundar o não conhecimento do recurso em considerações relativas à
maior ou menor adequação dos preceitos legais a que a decisão recorrida reportou
o critério normativo tido por inconstitucional.
Sendo inequívocos o sentido e alcance deste critério e
os fundamentos da sua recusa de aplicação, a discutibilidade da pertinência da
invocação dos artigos 119.º, alínea f), e 391.º‑D do CPP, ou a eventualidade da
existência de outros preceitos legais cuja convocação surgisse como mais
rigorosa (designadamente, as normas definidoras da repartição de competência dos
tribunais, como as dos artigos 100.º, 102.º, n.º 1, 22.º e 23.º da LOFTJ) não
justificam uma decisão de não conhecimento do recurso. Como se referiu no
recente Acórdão n.º 92/2009 desta 2.ª Secção, “não é (…) da competência deste
Tribunal alterar, em via recursiva, os juízos aplicativos ao caso concreto,
ratione materiae, do direito ordinário, levados a cabo pelas instâncias”, pelo
que, também no presente caso, “o juízo de constitucionalidade que nos cabe
emitir recairá sobre (…) as normas acima referidas, declaradas
inconstitucionais pela [decisão] recorrida e, em conformidade, inaplicadas,
especificamente mencionadas como objecto do recurso pelo Ministério Público, no
requerimento da sua interposição”.
2.2. Do mérito do recurso.
2.2.1. A forma especial de processo abreviado foi
introduzida no sistema processual penal português pela reforma operada pela Lei
n.º 59/98, de 25 de Agosto, lendo‑se na exposição de motivos da Proposta de Lei
n.º 157/VII, que esteve na sua origem, que se visou introduzir “um procedimento
caracterizado por uma substancial aceleração nas fases preliminares, mas em que
se garante o formalismo próprio do julgamento em processo comum, com ligeiras
alterações de natureza formal justificadas pela pequena gravidade do crime e
pelos pressupostos que o fundamentam”, acrescentando‑se:
“Estabelecem‑se, porém, particulares exigências ao nível dos
pressupostos. São eles o juízo sobre a existência de prova evidente do crime –
como sucederá, por exemplo, nos casos de flagrante delito não julgados em
processo sumário, de prova documental ou de outro tipo, que permitam concluir
inequivocamente sobre a verificação do crime e sobre quem foi o seu agente – e a
frescura da prova – traduzida na proximidade do facto, não superior a 60 dias
–, pressupostos que, na sua essência, igualmente enformam o processo sumário,
característico do nosso sistema. Tratar‑se‑á, em síntese, de casos de prova
indiciária sólida e inequívoca que fundamenta, face ao auto de notícia ou
perante um inquérito rápido, a imediata sujeição do facto ao juiz,
concentrando‑se, desta forma, o essencial do processo na sua fase crucial, que é
o julgamento.
(…)
Julga‑se que, por esta via, se possibilitará uma considerável
aceleração do processamento da criminalidade menos grave, que, segundo as
estatísticas conhecidas, representa cerca de 85% dos crimes submetidos a
julgamento, com resultados que se esperam de grande reforço na credibilidade do
sistema de justiça.”
Em conformidade com estes propósitos, o aditado artigo
391.º‑A do CPP condicionou a utilização do processo abreviado à verificação dos
seguintes requisitos: (i) estar em causa crime punível com pena de multa ou com
pena de prisão não superior a cinco anos; (ii) haver provas simples e evidentes
de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi
o seu agente; e (iii) o Ministério Público, face ao auto de notícia ou realizado
inquérito sumário, deduzir acusação para julgamento em processo abreviado, se
não tiverem decorrido mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido
(n.º 1). O n.º 2 desse preceito, ao declarar aplicável o disposto no artigo
16.º, n.º 3, do mesmo Código, veio possibilitar a utilização do processo
abreviado quando o Ministério Público entendesse não dever ser aplicada, em
concreto, pena de prisão superior a cinco anos.
As alterações introduzidas, quanto a esta forma de
processo, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, consistiram, além do mais, na
exemplificação, no novo n.º 3 do artigo 391.º‑A, do que se consideram “provas
simples e evidentes” (ter o agente sido detido em flagrante delito e o
julgamento não puder efectuar‑se sob a forma de processo sumário; ser a prova
essencialmente documental e poder ser recolhida no prazo previsto para a dedução
da acusação; ou assentar a prova em testemunhas presenciais com versão uniforme
dos factos), e no aditamento do artigo 391.º‑D, nos termos do qual “A audiência
de julgamento em processo abreviado tem início no prazo de 90 dias a contar da
dedução da acusação”.
Segundo informa Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário
do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pp. 973 e 978), os propósitos do
legislador de 1998 com a introdução do processo abreviado não terão sido
alcançados, em parte, porque, diferentemente da acusação, que tinha de ser
deduzida até 90 dias após a data do crime, “o início da audiência de julgamento
não obedecia a qualquer limite temporal, o que provocava o agendamento destes
processos a par dos restantes processos comuns, perdendo‑se completamente o
tempo que se tinha poupado no inquérito”. Terá sido para obviar a este
inconveniente que foi introduzida a norma do artigo 391.º‑D, ora em causa,
considerando, no entanto, o citado comentador, que a inobservância do prazo para
início da audiência de julgamento “constitui uma mera irregularidade” (nota 3
ao artigo 391.º‑D, a p. 978 da obra citada).
Idêntica é a opinião de Manuel Lopes Maia Gonçalves
(Código de Processo Penal Anotado, 16.ª edição, Coimbra, 2007, p. 824), segundo
o qual : “O início da audiência para além de 90 dias a contar da dedução da
acusação constitui irregularidade, sujeita ao regime do artigo 123.º”.
E o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 11 de
Dezembro de 2008, Proc. n.º 8602/08, decidiu que, não prevendo a lei qual a
consequência jurídica para a inobservância do prazo de 90 dias estabelecido no
artigo 391.º‑D do CPP, é de entender que tal prazo tem apenas uma natureza
indicativa, pelo que, no caso então em apreço, “bem andou o Tribunal de Pequena
Instância Criminal de Lisboa em efectuar audiência de julgamento em processo
abreviado, ainda que a mesma tenha sido realizada cerca de 14 meses depois da
dedução da acusação pelo Ministério Público” (cf.
http://www.pdglisboa.pt/pgdl/jurel/jur_print_ficha.php?nid=4554&codarea=57)
Como se viu, no presente caso, o juiz do Tribunal de
Pequena Instância Criminal de Lisboa titular do processo seguiu entendimento
oposto ao dos citados comentadores e do mencionado acórdão, considerando que a
realização da audiência de julgamento com desrespeito do prazo de 90 dias
implicaria nulidade insuprível, e não mera irregularidade, com a consequente
remessa dos autos para julgamento em processo comum, da competência do Tribunal
Criminal de Lisboa. [Anote‑se que em casos similares ao ora em causa, em que têm
sido interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa recursos da decisão do
juiz dos Juízos Criminais, sem prévia interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, aquela Relação tem entendido que, na medida em que nenhuma parte
impugnou a primeira decisão do Tribunal de Pequena Instância Criminal de
Lisboa, esta tem de ser considerada como transitada em julgado, pelo que tem
sido considerada nula a decisão do Juízo Criminal, por violadora do caso
julgado: cf. acórdãos de 2 de Julho de 2008, Proc. n.º 5748/2008‑3, de 11 de
Setembro de 2008, Proc. n.º 6376/2008‑9, de 18 de Setembro de 2008, Proc. n.º
6381/2008‑9, de 6 de Outubro de 2008, Proc. n.º 6653/2008‑5, de 8 de Outubro de
2008, Proc. n.º 8322/2008‑3, de 14 de Outubro de 2008, Proc. n.º 7268/2008‑9, de
22 de Outubro de 2008, Proc. n.º 7359/2008‑3, de 23 de Outubro de 2008, Procs.
n.ºs 6354/2008‑9 e 7898/2008‑9, e de 30 de Outubro de 2009, Proc. n.º
7880/2008‑9].
2.2.2. Integrará o critério normativo seguido pelo
Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa violação do princípio
constitucional do juiz natural, como entendeu o despacho ora recorrido?
A resposta a esta questão é claramente negativa.
No Acórdão n.º 614/2003, este Tribunal procedeu a um
desenvolvido tratamento do alcance do princípio do juiz natural, consagrado no
artigo 32.º, n.º 9, da CRP (“Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja
competência esteja fixada em lei anterior”), de que interessa recordar as
passagens mais relevantes:
“7. (…) Consagra este norma, oriunda logo de 1976, a regra que era
referida entre nós como «proibição de desaforamento» de causa criminal, de
«tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior», integrando o
princípio do «juiz natural» ou do «juiz legal» (também por vezes referido como
juiz «pré‑determinado» ou «pré‑constituído» por lei), que é ainda uma projecção
do princípio da legalidade, sobre a determinação do julgador em matéria penal.
Sobre essa norma escreveu‑se no Acórdão n.º 393/89 (publicado no
Diário da República [DR], II Série, n.º 212, de 14 de Setembro de 1989):
«Neste n.º 7 [actual n.º 9] do artigo 32.º da Constituição
consagra-se o princípio do juiz natural ou do juiz legal (cf. Figueiredo Dias,
‘Sobre o sentido do princípio jurídico‑constitucional do «juiz natural»’»,
Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 111.º, pp. 83 e segs.).
Este princípio, que, na doutrina nacional, já correu sob o apelativo
‘proibição de desaforamento das causas penais’, é, ao nível processual, uma
emanação do princípio da legalidade em matéria penal.
Trata-se de um princípio que, para dizer com Figueiredo Dias (loc.
cit.): ‘[…] constitui […] uma necessária garantia dos direitos das pessoas,
ligada à ordenação da administração da justiça penal, à exigência de
julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade naquela
administração.
É um princípio que […] esgota o seu conteúdo de sentido material na
proibição da criação ad hoc, ou da determinação arbitrária ou discricionária ex
post facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal.
Do que se trata sobretudo é de impedir que motivações de ordem política ou
análoga – aquilo, em suma, que compreensivelmente se pode designar por raison
d’État – conduzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso
mesmo, incompatível com o princípio do Estado de direito.’
Sobre o princípio em causa, v. também J. Figueiredo Dias, Direito Processual
Penal [Coimbra, 1974], pp. 322 e segs., e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa anotada, 1.º vol., Coimbra, 1984, pp.
218-219.
O princípio do juiz natural tem, assim, a ver com a independência dos tribunais
perante o poder político. O que ele proíbe é a criação (ou a determinação) de
uma competência ‘ad hoc’ (de excepção) de um certo tribunal para uma certa
causa. O princípio proíbe, em suma, os tribunais ad hoc.
Dizendo com Figueiredo Dias (revista citada): ‘O princípio do juiz legal não
obsta a que uma causa penal venha a ser apreciada por tribunal diferente do que
para ela era competente ao tempo da prática do facto que constitui o objecto do
processo, só obsta a tal quando, mas também sempre que, a atribuição de
competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é: de
excepção), ou da definição individual (e portanto arbitrária) da competência,
ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa
penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o
direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial.’»
Por sua vez, no Acórdão n.º 212/91 (in DR, II Série, n.º 211, de 13 de Setembro
de 1991), retomado noutro arestos posteriores (assim, por exemplo, no Acórdão
n.º 125/94, inédito), escreveu-se:
«Nos termos do artigo 32.º, n.º 7, do texto constitucional, ‘nenhuma causa pode
ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior’, o
que consubstancia o chamado princípio do juiz natural ou do juiz legal (…).
Ao nível processual representa este princípio uma emanação do princípio da
legalidade em matéria penal, tendo a ver com a independência dos tribunais
perante o poder político e proibindo ‘a criação (ou a determinação) de uma
competência ad hoc (de excepção) de um certo tribunal para uma certa causa – em
suma, os tribunais ad hoc)’».
Encontrou, por isso, este princípio consagração já nas Constituições
oitocentistas, e, mesmo antes, já na lei da nova organização judiciária saída da
Revolução Francesa (indicações a este respeito encontram-se em J. Figueiredo
Dias, Direito Processual Penal, cit., págs. 323 e segs.).
Entre nós, logo a Constituição de 1822, para além de proibir os «privilégios do
foro nas causas cíveis ou crimes» (artigo 9.º), atribuía exclusivamente aos
juízes o poder judicial (artigo 176.º: «Nem as Cortes, nem o Rei o poderão
exercitar em caso algum. Não podem portanto avocar causas pendentes; mandar
abrir as findas; nem dispensar nas formas do processo prescritas pela lei.»). E
o princípio do juiz legal resultava também, quer da Carta Constitucional, quer
da Constituição de 1838 (artigo 145.º, § 10.º, da primeira – «Ninguém será
sentenciado senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na
forma por ela prescrita» – e artigos 18.º e 19.º da segunda: «Ninguém será
julgado senão pela autoridade competente, nem punido senão por lei anterior», e
«Nenhuma autoridade pode avocar as causas pendentes, sustá‑las, ou fazer reviver
os processos findos»).
Actualmente, esse princípio encontra-se igualmente consagrado noutras
Constituições europeias – como, por exemplo, na Lei Fundamental da Alemanha, no
artigo 101.º, n.º 1 («São proibidos os tribunais de excepção. Ninguém pode ser
subtraído ao seu juiz legal»), na Constituição italiana (artigo 25.º: «Ninguém
pode ser privado do juiz natural pré‑constituído por lei») ou na Constituição
espanhola (artigo 24.º, n.º 2: «Todos têm direito ao juiz ordinário
pré‑determinado por lei») –, podendo ainda ser aproximado da exigência,
constante de vários instrumentos internacionais, de que a causa penal será
examinada por um «tribunal independente e imparcial» (artigo 10.º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos e artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem) – cf. também, quer o artigo 14.º, n.º 1, do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos («…tribunal independente e
imparcial, estabelecido por lei»), quer, mais explicitamente, a «Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia», publicada no Jornal Oficial das
Comunidades Europeias, n.º C‑364 de 18 de Dezembro de 2000, págs. 1‑22, o artigo
47.º, 2.º par. («Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de
forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal
independente e imparcial, previamente estabelecido por lei»).
E, entre nós, a LOFTJ dispõe com um alcance geral, no seu artigo 23.º (com a
epígrafe «Proibição de desaforamento»), que «Nenhuma causa pode ser deslocada do
tribunal competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na
lei».
8. Também a jurisprudência constitucional se tem já por várias vezes defrontado
com a invocação do princípio do «juiz natural», confrontando com este diversas
normas.
O problema a este respeito mais frequentemente posto a este Tribunal foi, sem
dúvida, o da admissibilidade, por confronto com aquele princípio, do método de
determinação concreta da competência previsto no artigo 16.º, n.º 3, do Código
de Processo Penal, tendo‑se nele firmado jurisprudência no sentido de que esta
norma não viola o princípio do juiz natural (e não dizendo, aliás, as
declarações de voto exaradas a propósito desta norma do Código de Processo Penal
respeito ao confronto com o parâmetro que ora nos ocupa). Esta foi a posição
adoptada nos citados Acórdãos n.ºs 393/89 e 212/91, bem como em muitos arestos
posteriores, como, por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 435/89, in DR, II Série, de 21
de Setembro de 1989, 41/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 15.º,
pág. 151, 9/91, in DR, II Série, de 18 de Junho de 1991, 265/95, in DR, II
Série, de 19 de Julho de 1995, além de muitos outros não publicados (assim, por
exemplo, os Acórdãos n.ºs 145/90, 147/90, 164/90, 165/90, 166/90. 167/90,
168/90, 178/90, 183/90, 195/90, 197/90, 206/90, 208/90, 217/90, 218/90, 219/90,
220/90, 226/90, 252/90, 269/90, 276/90, 282/90, 291/90, 293/90, 296/90, 297/90,
301/90, 319/90, 320/90, 326/90, 327/90, 328/90, 335/90, 5/91, 11/91, 24/91,
28/91, 31/91, 35/91, 41/91, 43/91, 45/91, 46/91, 47/91, 50/91, 78/91, 79/91,
169/91, 170/91, 171/91, 214/91, 281/91, 300/91, 301/91, 302/91, 303/91, 304/91,
305/91, 306/91, 307/91, 308/91, 309/91, 310/91, 311/91, 312/91, 313/91, 314/91,
385/91, 436/91, 455/91 e 456/91). Decidiu‑se nestes arestos que o princípio do
juiz natural, ao proibir a criação de tribunais ad hoc, não se opõe ao método da
determinação concreta da competência do tribunal, que atende à pena que, num
juízo prévio de prognose, se espera que venha a ser aplicada ao crime, não
abrindo também tal preceito a porta a uma arbitrária manipulação da competência
para julgar. Assim, por exemplo, no citado Acórdão n.º 125/94 pode ler‑se
(depois da passagem supra transcrita):
«(…)
Sendo este o sentido e o alcance do princípio do juiz natural, é manifesto que
não é ele violado pela norma sob sindicância, porquanto nela não se determina o
tribunal competente de forma arbitrária, discricionária ou discriminatória.
Lançando mão de critérios objectivos como são os critérios legais de
determinação concreta da pena, o legislador limita‑se a permitir a utilização do
chamado método de determinação concreta da competência para a identificação do
tribunal competente para o julgamento.
Este método – da determinação concreta da competência –, oposto ao método da
determinação abstracta da competência, não tem sido o tradicional entre nós,
sendo no entanto corrente em países onde igualmente se acha consagrado o
princípio do juiz natural (cf. Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais
no novo Código de Processo Penal, cit.).”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 193/97 (in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 36.º vol., págs. 395 e segs.), o Tribunal Constitucional
confrontou com o princípio do juiz natural certa interpretação normativa
relativa ao conceito de «intervenção na conferência» do Presidente da Secção,
dizendo a este propósito:
«O que aqui está em causa são, tão‑só, duas interpretações possíveis do conceito
de ‘intervenção na conferência’ do Presidente da Secção. Não parece é que se
possa elevar uma dessas interpretações à categoria de ‘composição e modo de
funcionamento previamente estabelecido do tribunal’, para daí partir, face a uma
interpretação diversa, para a afirmação de que se está a ‘mexer’ na composição
do Tribunal e, consequentemente, a violar o princípio do juiz natural,
subjacente ao artigo 32.º, n.º 7, da Constituição.
2.1.1. Apontam‑se como dimensões concretizadoras deste princípio a ‘exigência de
determinabilidade’ (prévia individualização por lei geral do juiz competente), o
‘princípio da fixação da competência’ (observância das competências decisórias
legalmente atribuídas a esse juiz) e o respeito ‘das determinações de
procedimento referentes à divisão funcional interna’ (Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1994,
p. 207).
Associam‑se, assim, à vulneração do princípio do juiz natural, intervenções a
posteriori sobre as regras de competência e divisão funcional que, de alguma
forma, ponham em causa os critérios pré‑fixados na lei, ou seja, a ‘prévia
fixação por lei de critérios objectivos gerais de repartição da competência’
(…).
Ora, ao adoptar‑se, em detrimento de outra, determinada visão interpretativa do
conceito de ‘intervenção na conferência’ do Presidente da Secção (que, aliás,
corresponde a uma prática já anteriormente seguida pela Relação de Coimbra, como
se pode observar na Colectânea de Jurisprudência) em nada se está a alterar a
composição do tribunal competente para o julgamento: este sempre foi o Tribunal
da Relação correspondente ao Distrito Judicial que abrange a 1.ª Instância de
julgamento, através de um relator e dois adjuntos, apurados por distribuição,
funcionando em conferência onde interveio (em determinada leitura
interpretativa) o Presidente da Secção.
Não se verifica, assim, qualquer ofensa ao princípio constitucional do juiz
natural.»
No Acórdão n.º 337/2003 (não publicado), analisou‑se uma alegada violação do
princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32.°, n.º 9, da Constituição da
República, pela norma do artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, interpretada em
termos de possibilitar a sujeição ao foro militar do comparticipante que não
possui a qualidade típica exigida pelos crimes previstos no Código de Justiça
Militar, concluindo‑se pela inexistência de inconstitucionalidade, e dizendo‑se
que «constitui evidente petição de princípio o partir de uma das interpretações
possíveis do preceito para, face a uma interpretação diversa, afirmar que se
está a alterar a competência dos Tribunais e, consequentemente, a violar o
princípio do juiz natural, subjacente ao artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.»
E outras normas foram igualmente confrontadas com o princípio que nos ocupa, nos
Acórdãos n.ºs 409/94 (artigo 192.º do Código das Custas Judiciais) e 216/99
(interpretação dos artigos 310.º, n.º 1, e 308.º, n.º 3, do Código de Processo
Penal no sentido da irrecorribilidade das decisões sobre questões prévias ou
incidentais constantes do despacho de pronúncia), publicados em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, respectivamente no 28.º vol., págs. 283 e segs., e no
vol. 43.º, págs. 239 e segs., tendo‑se igualmente concluído pela inexistência
de violação desse parâmetro constitucional (deixando em aberto as «complexas
questões de concordância prática entre o disposto nos n.ºs 3 e 7 do artigo 32.º
da Constituição», a propósito da consagração, «como causa de suspeição, da
inimizade grave entre o juiz e o arguido», […] cf. o Acórdão n.º 227/97, ainda
inédito).”
E após desenvolvida referência à pertinente
jurisprudência constitucional alemã, italiana e espanhola, prosseguiu:
“10. Também a doutrina tem entre nós densificado o sentido do
princípio do «juiz natural».
Assim, ainda antes da Constituição de 1976 – e deplorando, aliás, a
falta de consagração expressa do princípio no texto constitucional anterior –
Jorge de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, cit., págs. 322 e seg.)
salientava que pelo princípio do «juiz natural» ou do «juiz legal» «se procura
sancionar, de forma expressa, o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa
seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad
hoc criado ou tido como competente», com um tríplice significado: no plano da
fonte, só a lei pode instituir o juiz e fixar‑lhe a competência; no plano
temporal, afirmando um princípio de irretroactividade; no plano da previsão
legal, a vinculação a uma «ordem taxativa de competência, que exclua qualquer
alternativa a decidir arbitrária ou mesmo discricionariamente», e,
designadamente, com proibição de jurisdições de excepção.
Voltando ao tema posteriormente à Constituição de 1976 («Sobre o sentido do
princípio jurídico‑constitucional do ‘juiz natural’», in Revista de Legislação e
de Jurisprudência, ano 111.º, págs. 83 e segs.), Figueiredo Dias salientou que o
sentido material do princípio é a «proibição da criação ad hoc, ou da
determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente
para a apreciação de uma certa causa penal. Se bem seja certo que, deste modo,
cabe no princípio uma qualquer ideia de anterioridade na fixação da competência
relativamente ao facto que vai ser apreciado, não se trata nele tanto
(diferentemente do que sucede com o princípio do nullum crimen, nulla poena sine
lege) de erigir uma proibição geral e absoluta de ‘retroactividade’, quanto
sobretudo de impedir que motivações de ordem política ou análoga – aquilo, em
suma, que compreensivelmente se pode designar pela raison d’État – conduzam a um
tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o
princípio do Estado-de-direito.»
Assim, pese embora o teor literal do preceito – que, como resulta do elemento
histórico, afirma ir mais longe do que a sua razão de ser –, defende que ele não
pretende proscrever «toda e qualquer atribuição de competência feita por lei que
não seja anterior à prática do facto que constitui objecto do processo» – mas
apenas «quando, mas também sempre que, a atribuição de competência seja feita
através da criação de um juízo ad hoc (isto é: de excepção), ou da definição
individual (e portanto arbitrária) da competência, ou do desaforamento concreto
(e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer forma
discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça
penal independente e imparcial». O princípio do juiz natural não poderia, assim,
opor‑se à modificação legal, com efeitos imediatos, da organização judiciária
(o que seria patente, designadamente, quando tal modificação representasse um
aperfeiçoamento ou avanço na forma de garantir os direitos dos cidadãos).
Já Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, pág. 207) parecem, porém, dar um alcance mais
vasto ao princípio, escrevendo:
«O princípio do juiz legal (…) consiste essencialmente na predeterminação do
tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc
ou a atribuição de competência a um tribunal diferente do que era legalmente
competente à data do crime.
Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em 1.ª instância, mas todos os juízes
chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência
constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais
colectivos.
A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias
dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o
juiz (ou juízes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam
previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais
possível inequívoca; (b) princípio da fixação da competência, observância das
competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos
preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do
juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à
divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a
fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja
uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona‑se com o princípio da
administração judicial).»
Por sua vez, Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, 4.ª ed., Lisboa
2000, pág. 54) salienta que o princípio do juiz natural ou legal «tem por
finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver
um caso determinado. As normas, tanto orgânicas como processuais, têm de conter
regras que permitam determinar o tribunal que há‑de intervir em cada caso em
atenção a critérios objectivos; não é, pois, admissível que a norma autorize a
determinação discricionária do tribunal ou tribunais que hão‑de intervir no
processo.»
A exigência de anterioridade da lei não poderia, porém, razoavelmente, colocar
entraves a qualquer reforma da organização judiciária, pelo que, «em ordem a
assegurar a imparcialidade dos juízes e tribunais, excluindo ad hoc, ad casum e
suspectus», o que importa não seria a competência individualizada de determinado
tribunal, mas «apenas que em razão daquela causa ou de categorias de causas a
que ela pertence sejam criados post factum tribunais de excepção, ou a
definição individual da competência, ou do desaforamento discricionário de uma
certa causa, ou por qualquer outra forma discricionária que ponha em perigo o
direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial» (ob. cit.,
pág. 58).
11. O princípio do «juiz natural», ou do «juiz legal», para além da sua ligação
ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na
garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do
Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia
da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203.º da
Constituição).
Designadamente, a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras
legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa
evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração
da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou
do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham
do poder executivo – em nome da raison d’État – quer provenham de outras pessoas
(incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como
condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração
dessa justiça, «em nome do povo» (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição), sendo
certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que
recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um
tribunal designado em função das partes ou do caso concreto.
A garantia do «juiz natural» tem, assim, um âmbito de protecção que é, em larga
medida, configurado ou conformado normativamente – isto é, pelas regras de
determinação do juiz «natural», ou «legal» (assim G. Britz, ob. cit., pág. 574,
Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte II, 14.ª ed., Heidelberg, 1998, pág.
269).
E, independentemente da distinção no princípio do juiz legal de um verdadeiro
direito fundamental subjectivo de dimensões objectivas de garantia, pode
reconhecer‑se nesse princípio, desde logo, uma dimensão positiva, consistente
no dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a
definição do tribunal competente segundo características gerais e abstractas.
Logo pela própria ratio do princípio, tais regras não podem, assim, limitar‑se à
determinação do órgão judiciário competente, mas estendem‑se igualmente à
definição, seja da formação judiciária interveniente (secção, juízo, etc.), seja
dos concretos juízes que a compõem. E isto, quer na 1.ª instância, quer nos
tribunais superiores, e quer para o julgamento do processo penal, quer para a
fase de instrução (referindo que o princípio se aplica igualmente ao juiz de
instrução, v., além das decisões já citadas dos tribunais constitucionais
alemão e italiano, entre nós, já Figueiredo Dias, Sobre o sentido…, cit., pág.
83, nota 3).
Assim, as regras de determinação do juiz, relevantes para efeitos da garantia do
«juiz natural», terão de incluir, não apenas regras constantes de diplomas
legais, mas também outras regras que servem para determinar essa definição da
concreta formação judiciária que julgará um processo – por exemplo, as
relativas ao preenchimento de turnos de férias –, mesmo quando não constam da
lei e antes de determinações internas aos tribunais (por exemplo, regulamentos
ou outro tipo de normas internas). Trata‑se, aqui, das referidas «determinações
de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de
processos)», apontando, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «para a fixação
de um plano de distribuição de processos», pois, «embora esta distribuição seja
uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona‑se com o princípio da
administração judicial».
É, pois, ao conjunto das regras, gerais e abstractas mas suficientemente
precisas (embora possivelmente com emprego de conceitos indeterminados), que
permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o
processo (embora não necessariamente a do relator, a não ser que, como acontece
entre nós, da sua determinação possa depender a composição da formação
judiciária em causa), que se refere a garantia do «juiz natural», pois é esse o
alcance que é requerido pela sua razão de ser, de evitar a arbitrariedade ou
discricionariedade na atribuição de um concreto processo a determinado juiz ou a
determinados juízes.
Para além desta dimensão positiva, incluindo o aspecto de organização interna
dos tribunais, o princípio tem, igualmente, uma vertente negativa, consistente
na proibição de afastamento das regras referidas, num caso individual – o que
configuraria uma determinação ad hoc do tribunal. Afirma‑se, assim, a ideia de
perpetuatio jurisdictionis, com «proibição do desaforamento» depois da
atribuição do processo a um tribunal, quer a proibição de tribunais ad hoc ou ex
post facto, especiais ou excepcionais – a qual deve, aliás, ser relacionada
também com a proibição, constante do artigo 209.º, n.º 4, da Constituição, de
«existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas
categorias de crimes», salvo os tribunais militares durante a vigência do estado
de guerra (artigo 213.º da Constituição).
Como tem sido salientado na nossa doutrina e resulta igualmente da
jurisprudência constitucional referida, o princípio do juiz natural não pode,
porém, proibir nem a alteração legal da organização judiciária – incluindo da
competência para conhecer de determinados processos –, nem a possibilidade de
aplicação imediata destas alterações, embora os processos concretos possam,
assim, vir a ser apreciados por um tribunal diverso daquele que resultaria das
regras em vigor no momento da prática do facto em questão. Esta alteração, quer
de regras legais, quer de regras de procedimento para a divisão interna de
processos, pode impor‑se por acontecimentos ou circunstâncias que não podem ser
descritas previamente de forma esgotante, podendo valer mesmo para processos já
pendentes. Ponto é, porém, que o novo regime – ou a revogação, e não apenas
derrogação, para um caso concreto, do anterior – valha em geral, abrangendo um
número indeterminado de processos futuros, e não exprima razões discriminatórias
ou arbitrárias, que permitam afirmar que se está perante uma constituição ou
determinação ad hoc da formação judiciária em causa (neste sentido, além da
citada jurisprudência constitucional alemã e italiana, por exemplo Chr.
Degenhart, comentário 12 ao artigo 101.º da Lei Fundamental, in Michael Sachs,
Grundgesetz – Kommentar, 2.ª ed., München, 1999, pág. 1822). Será o caso se tal
alteração for justificada por imperativos de realização da justiça.”
Assim compreendido o sentido e alcance do princípio do
juiz natural, é patente que nenhuma violação do mesmo ocorre com a adopção do
critério normativo que a decisão recorrida reputou inconstitucional. A
determinação da competência do Tribunal Criminal, em vez da competência que em
princípio caberia ao Tribunal de Pequena Instância Criminal, não implicou a
criação de um tribunal ad hoc, nem a manipulação arbitrária das regras
processuais ou de repartição de competência entre tribunais. Ela derivou – e
derivará sempre que se verifique a mesma situação objectiva – do entendimento
de que, decorridos 90 dias sobre a dedução da acusação, não é mais possível a
realização de julgamento em processo abreviado, devendo os autos ser remetidos
para o processo comum, resultando a determinação do tribunal competente para o
julgamento da imposição desta alteração da forma de processo.
Este critério, em si mesmo objectivo, não viola nenhum
dos valores, designadamente de independência dos tribunais e de garantias de
defesa do arguido, que a consagração do princípio do juiz natural visou
assegurar.
Na verdade, a remessa dos autos para julgamento do
Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa para o Tribunal Criminal de
Lisboa resultou de uma alteração da respectiva forma de processo. Tendo seguido
inicialmente a forma de processo abreviado, cujo julgamento, nos termos da LOFTJ
(artigo 102.º, n.º 1), compete aos Tribunais de Pequena Instância Criminal, por
razões cuja validade infraconstitucional não cabe a este Tribunal apreciar,
determinou‑se que os mesmos deveriam seguir a forma de processo comum, cujo
julgamento, nos termos da LOFTJ (artigo 100.º), compete aos Tribunais Criminais.
A alteração do foro competente para o julgamento foi
consequência, pois, da aplicação das regras gerais e abstractas definidoras da
competência funcional dos diversos tribunais criminais que integram a
organização judiciária portuguesa, e não de uma qualquer determinação
discricionária de um tribunal para julgar este processo, pelo que não se mostra
violada a proibição contida no artigo 32.º, n.º 9, da CRP.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional o critério normativo,
extraído dos artigos 119.º, alínea f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal, na
redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual a inviabilidade da
realização do julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da
dedução da acusação constitui uma nulidade insanável, conducente à alteração da
forma de processo abreviado para a forma de processo comum, com a consequente
remessa dos autos, para julgamento, do Tribunal de Pequena Instância Criminal
para o Tribunal Criminal; e, consequentemente,
b) Determinar a reformulação da decisão recorrida, em
conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Março de 2009.
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
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