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Processo n.º 643/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I.
Relatório:
1. Por apenso ao processo de declaração de insolvência da sociedade comercial
A., Lda, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Penela, foi
intentado incidente de qualificação da insolvência no âmbito do qual foi, em 25
de Junho de 2008, proferida sentença a qualificar a dita insolvência como
culposa. Na mesma sentença, o tribunal concluiu pela desconformidade
constitucional do artigo 189.º n.º 2 alínea b) do CIRE, pelo que recusou a sua
aplicação, em consequência do que não declarou inabilitadas a pessoas
eventualmente afectadas. O Tribunal fundamentou do seguinte modo a decisão
proferida:
“ […]
III. Fundamentação de Direito
A qualificação da insolvência – artigos 188.º e seguintes do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas – visa apurar se a insolvência é
fortuita, ou, pelo contrário, culposa.
A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em
consequência da conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus
administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do
processo de insolvência – artigo 186.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas.
Por outro lado, a prova dos factos-índice do artigo 186.º, n.º 2 conduz a
presunção juris et de jure de uma insolvência culposa [ «Considera-se sempre
culposa (...)»] enquanto que a afirmação dos factos-índice do artigo 186.º, n.º
3 conduz tão-só a uma presunção juris tantum de culpa grave [«Presume-se a
existência de culpa grave (...)»], ilidível mediante prova em contrário.
Para fundamentar o parecer de qualificação da insolvência como culposa
apresentou o Sr. Administrador, a título principal, o argumento de que a
contabilidade da devedora e as respectivas demonstrações económicas e
financeiras não tinham correspondência com a realidade da empresa.
Importará então saber o fundamento avançado pelo Sr. Administrador da
Insolvência para sustentar o seu parecer de qualificação quedou provado e, em
caso afirmativo, averiguar se a sua afirmação implica o efeito que dele foi
retirado.
Vejamos, então.
Neste contexto, assumem relevância os factos dados como provados nos pontos 6 e
9 da matéria assente, deles se retirando que, efectivamente, os indicadores de
actividade e os indicadores financeiros constantes dos balanços e demonstrações
de resultados da devedora relativos aos exercícios económicos dos anos de 2002 a
2006 não correspondiam à sua verdadeira realidade económica e financeira durante
aquele período de tempo.
Tal evidência não pode deixar de ser subsumível ao disposto na alínea h) do n.º
2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,
integrando, sem sombra de dúvida, o conceito de contabilidade fictícia aí
contido a circunstância de, no recurso de 5 exercícios económicos consecutivos,
a contabilidade da devedora ter apresentado indicadores que não encontravam
correspondência com a sua real situação económica e financeira.
Ora, tendo isto como certo e estando em causa, no caso da manutenção de
contabilidade fictícia, uma das presunções inilidíveis do artigo 1 86.º, n.º 2,
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a consequência a retirar
só poderá ser a de que terá necessariamente de ser atribuído carácter culposo à
insolvência, ficando afectado pela qualificação o seu único gerente, B..
Nos termos do disposto no artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas, na sentença que qualifique a
insolvência como culposa, o juiz deve decretar a inabilitação das pessoas
afectadas por um período de 2 a 10 anos.
À semelhança do entendimento adoptado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
564/2007, [...] também é nossa opinião que a norma em causa tem única e
exclusivamente um escopo punitivo, visando sancionar o comportamento dos
sujeitos por ela atingidos.
Nesta medida, utilizando as palavras vertidas no citado Acórdão, o regime
instituído infringe directamente o direito fundamental à capacidade civil,
consagrado no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, afectando-o
no seu âmbito de garantia efectiva, sem que este juízo tenha de ser mediatizado
por qualquer outro valor negativo de constitucionalidade. [...]
Consequentemente, decide-se não aplicar o normativo em análise ao caso concreto
por considerar que o mesmo é inconstitucional por ofensa ao artigo 26.º,
conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da República Portuguesa, na parte
em que consagra o direito à capacidade civil […]”.
2. Notificado, o Ministério Público veio interpor recurso obrigatório para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º n.º 1 alínea a) da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, alterada pela Lei n.º 13-A/96, de 26 de
Fevereiro. Neste Tribunal o representante do Ministério Público concluiu a sua
alegação do seguinte modo:
1.º
É materialmente inconstitucional, por violação desproporcionada ao artigo 26.º
da Constituição, na parte em que consagra o direito à capacidade civil, a norma
constante do artigo 189.º, n.º 2, alínea b) do Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, ao
impor ao juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, que
decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada
insolvente.
2.º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.
II.
Fundamentação:
3. O presente recurso é interposto da sentença que recusou aplicar, com
fundamento em inconstitucionalidade material, a norma constante do artigo 189.º
n.º 2 alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com
expressa adesão aos fundamentos do Acórdão do Tribunal Constitucional nº
564/2007, publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 13 de Fevereiro de
2008.
Efectivamente, no aludido aresto o Tribunal pronunciou-se pela
inconstitucionalidade material da referida norma pelos seguintes fundamentos
(pontos 8. e 9. do aresto):
«[...] Já a diferente conclusão temos que chegar, no que toca à violação do
artigo 18.º e do artigo 26.º da CRP, na parte em que este reconhece o direito à
capacidade civil.
De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a
correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto
nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, CARVALHO
FERNANDES, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente
pelo devedor”, Themis, ed. esp., 2005, 97. Trata-se, pois, de uma situação de
incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto
exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de
disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de
cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código
Civil).
Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência
imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a
capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que,
contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas
variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de
detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando
afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter
excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da
personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa
profunda” (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil, polic., Coimbra,
1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos
pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão
dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser
decretada.
Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as
restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam
legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena
ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a
inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de
ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um
estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas
(artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos
seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente,
indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus
interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa
de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de
características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa
situação.
Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação
ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no
regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural
que, nesse regime, a fundaram.
E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos
credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade
do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um
processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do
património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos
credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência
(…).»
Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo,
tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o
administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens
integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).
Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma
incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos
praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão
feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o
caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na
justa medida, os interesses dos credores.
Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o
Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade
constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual
Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º
da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil,
mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há
unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de
“incapacidade”) […]».
Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também
que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir
eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a
posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de
acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a
invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador.
Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil,
aplicável, com as devidas adaptações, por remisão dos artigos 156.º e 139.º do
mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª
ed. por A.PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao
curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos
seus herdeiros.
A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode,
pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o
comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.
Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um
mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a
sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área
(designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois
não se vê que outros possam ser utilizados.
Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis
diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele
perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos
ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para
além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)).
Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da
insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode
deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea
b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da
República.»
E, mais à frente, diz-se:
«[...] Mas, nem a inconstitucionalidade material do artigo 189.º, n.º 2, alínea
b) resulta da incidência, no seu âmbito, do disposto no n.º 3 do artigo 186.º,
nem essa inconstitucionalidade se comunica, por arrastamento, a esta norma. Isto
porque aquele veredicto não resulta da leitura conjugada dos dois preceitos, da
projecção normativa de um sobre o outro. A inabilitação, como efeito necessário
de uma insolvência culposa, à margem de qualquer falta de qualidade pessoal do
inabilitado, é sempre, em si mesmo considerada, independentemente da forma como,
em concreto, vier regulado aquele fundamento, uma solução ferida de
inconstitucionalidade. Qualquer causa dessa medida incapacitante que não tenha a
ver com a protecção do inabilitado perante deficiências na sua personalidade
natural atenta contra o artigo 26.º da CRP.
Não é, insiste-se, por poder ser decretada “com fundamento em factos ocorridos
em momento anterior à lei que a prevê”, ou por ter a sua aplicação facilitada
por um regime de presunção de culpa, que a inabilitação prevista no artigo
189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE é uma medida em desconformidade com a
Constituição da República. É-o porque, sendo instrumentalizada para sancionar
uma insolvência culposa, se constitui como uma restrição à capacidade dissociada
do único fundamento capaz de a legitimar: a protecção do inabilitado perante uma
falta de capacidade natural. Desta forma, o regime instituído infringe
directamente o direito fundamental à capacidade civil, consagrado ao artigo 26.º
da CRP, afectando-o no seu âmbito de garantia efectiva, sem que este juízo tenha
que ser mediatizado por qualquer outro valor negativo de
constitucionalidade.[...]»
4. Não havendo razões para divergir desta jurisprudência, a que se adere,
decide-se sem necessidade de outras considerações, por absoluta similitude da
questão em análise, julgar materialmente inconstitucional, por violação do
artigo 26º, conjugado com o artigo 18º no segmento em que consagra o direito à
capacidade civil, ambos da Constituição, a norma constante do artigo 189º n.º 2
alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, na parte que impõe que o juiz, na sentença,
decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada
insolvente.
III.
Decisão:
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao
recurso. Sem custas.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
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