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Processo n.º 528/2008
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. No processo crime que corre no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da
Comarca de Guimarães foi proferido despacho a ordenar a notificação de A. e
demais arguidos, nos termos do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, para “querendo, no
prazo de 30 dias procederem ao pagamento das prestações em dívida, acrescida dos
juros respectivos e do valor das coimas aplicáveis, o qual deverá ser comprovado
nos presentes autos, informando-os de que o mencionado pagamento determinará a
extinção do procedimento criminal”.
Inconformado, A. recorreu para a Relação de Guimarães argumentando
que os factos imputados na pronúncia teriam sido despenalizados pela alínea b)
do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006,
de 29 de Dezembro, devendo os autos ser arquivados por extinção do procedimento
criminal, nos termos do artigo 2.º n.º 2 do Código Penal. E, em resposta ao
parecer então emitido pelo Ministério Público, o recorrente sustentou o
seguinte:
[…]
25. Aliás, a seguir-se esse entendimento, admitindo que o processo prossiga a
sua tramitação, implica se admita a existência de um processo sem que contudo
haja crime punível, violando-se o artigo 262.º n.º 1 do Código de Processo
Penal, e consubstancia ainda a violação dos mais elementares direitos de defesa,
consagrados no disposto no artigo 32.º n.º 1 da CRP, designada e principalmente
do direito de não ser submetido a julgamento sem que previamente sejam
submetidos a inquérito os factos subjacentes à incriminação.
[…]
36. A existir uma norma adjectiva que permita o preenchimento de condições
objectivas de punibilidade na fase de julgamento pelo tribunal, tal norma deverá
ser declarada inconstitucional, por violação dos mais elementares direitos de
defesa, consagrados no disposto no artigo 32.º n.º 1 da CRP.
[...]
2. A Relação de Guimarães, por acórdão de 3 de Dezembro de 2007, julgou
improcedente o recurso, ponderando ainda que “bem decidiu o senhor juiz a quo ao
ordenar que se diligenciasse pela efectivação da notificação a que alude o art.
105.º, n.º 4, al. b) do RGIT”.
Notificado, A. apresentou reclamação contra o aresto, que a Relação
indeferiu por acórdão de 7 de Abril de 2008, na sequência do qual o recorrente
interpôs o recurso de inconstitucionalidade ora em análise, ao abrigo do
disposto no n.º 1 alínea b) do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional (LTC – Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro)
“para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo
262.º, CPP, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1 da CRP”.
3. O recurso foi recebido e as partes alegaram, após o que o
relator convidou o recorrente a pronunciar-se sobre questão que enunciou da
seguinte forma:
Notificado do acórdão proferido na Relação de Guimarães em 7 de Abril de 2008, o
recorrente A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da LTC, com fundamento na invocada 'inconstitucionalidade da
norma constante do n.º 1 do artigo 262º do CPP'.
É no requerimento de interposição que o recorrente fixa o objecto do
recurso. Não tendo sido feita menção a qualquer configuração particular da norma
resultante da sua aplicação concreta, o objecto do presente recurso é
constituído, unicamente, pela norma que se extrai do teor literal do n.º 1
aludido preceito do Código de Processo Penal.
Acontece que na alegação apresentada ao Tribunal o recorrente alega ser
inconstitucional quer a norma resultante 'do artigo 262º do Código de Processo
Penal' com o sentido de que 'admite que o processo penal prossiga a sua
tramitação, sem que contudo haja crime punível', como ainda uma outra norma,
identificada sem referência a qualquer preceito legal, mas com o sentido de
'permitir o preenchimento de condições objectivas de punibilidade na fase de
julgamento, por iniciativa do próprio tribunal'.
Acresce que da análise da peça apresentada resulta a convicção de que, a existir
norma que o recorrente pretenderia impugnar, por inconstitucional, ela seria a
que foi efectivamente aplicada na Relação, no acórdão recorrido, retirada da
'nova redacção' do artigo 105º do RGIT matéria que, não tendo sido incluída no
objecto de presente recurso, não pode ser conhecida.
Em suma, não podendo ser alterado o seu objecto, o Tribunal deverá não
conhecer do recurso.
A questão é oficiosamente suscitada por forma a que o recorrente possa
pronunciar-se sobre ela, em 10 dias.
O recorrente respondeu, dizendo:
“ (…) Salvo o devido respeito, diferentemente do afirmado por V. Ex.ª, a
pretensão do recorrente com a interposição do presente recurso não é nem nunca
foi a de impugnar, por inconstitucional, a interpretação dada nas instâncias ao
artigo 105º do RGIT. Isto não obstante, de facto, haja sido essa a interpretação
dada pela Relação de Guimarães ao recurso interposto.
A questão da aplicação do artigo 105º do RGIT, na sua última redacção, tem dois
planos de análise distintos. No primeiro desses planos, a questão vem sendo
abordada sob o prisma do direito substantivo. Desembocou ela, como sabe, no
entendimento, hoje largamente maioritário, de que a alteração legislativa
introduzida configura uma condição objectiva de punibilidade.
No segundo desses dois planos de análise está a questão de natureza
exclusivamente processual, ou seja, a questão de saber se o tribunal pode actuar
como actuou, introduzindo em fase de julgamento no processo um facto – qual seja
o não pagamento após notificação especialmente feita com esse fim, do imposto e
acessórios (coima e juros), a que se refere o artigo 105.º n.º 4 alínea b) do
RGIT – não descrito na acusação e que consubstancia a referida condição
objectiva de punibilidade.
Ora, embora não nos custe reconhecer que na Relação de Guimarães a questão não
foi devidamente explicada pelo recorrente na sua motivação, o certo é que foi
esta questão de natureza exclusivamente processual, a questão que o recorrente
suscitou perante a Relação de Guimarães, consoante decorre da análise das
conclusões de recurso e do posterior requerimento em que arguiu a nulidade do
primeiro acórdão da relação de Guimarães.
Como dissemos atrás, o artigo 105.º do RGIT veio impor uma condição objectiva de
punibilidade, nos termos da qual a conduta típica, ilícita e culposa descrita no
artigo 105.º. do RGIT apenas será punível se «A prestação comunicada à
administração tributária através da correspondente declaração não for paga,
acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30
dias após notificação para o efeito.»
Tal condição de punibilidade não pode – em nossa modesta opinião e como ensina
Figueiredo Dias – deixar de merecer e gozar da protecção legal de que beneficia
o tipo.
Por isso dizemos nós que, sob o ponto de vista processual, o recorrente apenas
poderá ser julgado com base em factos que sejam objecto de inquérito, factos
entre os quais se conta, pelas razões atrás expostas, aquele que integra a
referida condição objectiva de punibilidade.
Ou seja, para nós, à face do disposto no artigo 262.º do CPP, o recorrente
apenas poderá ser julgado pelo crime de abuso de confiança após inquérito que
conclua existirem indícios suficientes de que o recorrente, no prazo de 30 dias
contado após notificação para pagar a prestação tributária, coimas e juros, não
entregou à mesma tributária, total ou parcialmente, prestação tributária
deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar.
Para nós, o artigo 262.º do CPP, na única interpretação consentânea com a
Constituição da República, consagra uma garantia de índole processual segundo a
qual ninguém pode ser julgado com base em factos – incluídos os que integram a
condição objectiva de punibilidade – sem que os mesmos sejam objecto de prévio
inquérito.
Queremos com isto significar que a verificação ou preenchimento da própria
condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do
RGIT, terá de ser objecto de inquérito, tal como se prevê no referido artigo
262.º do CPC.
Daí que, em nossa opinião, uma vez ocorrida a alteração legislativa que
introduziu uma condição objectiva de punibilidade, a única solução
processualmente admissível seja a de fazer extinguir o processo criminal para
que, através de novo inquérito ou da reabertura do preexistente, se investiguem
de novo os factos, designadamente os factos que integram a referida condição
objectiva de punibilidade.
Não se respeitando este princípio segundo o qual ninguém deve ser sujeito a
julgamento sem que todos os factos que sustentam a incriminação sejam objecto de
prévio inquérito, está-se a abrir a porta a situações como a verificada no
processo, em que o recorrente, enquanto arguido, viu aberta a fase de julgamento
com base numa acusação da qual não consta a referida condição objectiva de
punibilidade, ou seja, viu aberta a fase de julgamento sem estarem sequer ainda
verificados os factos que poderão sustentar a sua condenação, uma vez que a
notificação em causa foi ordenada e produzida já com o julgamento em curso.
Entende assim o recorrente que, tendo esta alteração legislativa, designadamente
a introdução do artigo 105.º do RGIT, vindo impor uma condição objectiva de
punibilidade, a sua repercussão no processo penal, em face do disposto no artigo
262.º do CPP, terá de ser apenas uma: a de voltar ao inquérito para que esses
factos que constituem a condição objectiva de punibilidade sejam dele objecto.
Se assim não acontecer, ou seja, se a introdução dessa alteração legislativa não
tiver essa repercussão no processo em curso, através da adequada interpretação
do artigo 262.º do CPP – o que apenas sucederá se se interpretar o artigo 262.º
do Código de Processo Penal, no sentido em que o mesmo admite que o processo
penal prossiga para além do inquérito não obstante falte à conduta do arguido o
não acatamento da notificação para pagar a que se refere a alínea b) do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT – violar-se-ão as garantias de defesa relativas ao processo
penal, consagradas no disposto no artigo 32.º da Constituição da República
Portuguesa.
Ou seja, para nós, tendo o M.mº Juiz da 1.ª Instância, quando o processo se
encontrava já em fase de julgamento, ordenado a notificação prevista no artigo
105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, com vista à verificação da condição objectiva de
punibilidade, em vez de ordenar a extinção do processo ou o seu regresso à fase
de inquérito, afim de ser cumprida tal condição, fez uma interpretação do artigo
262 do CPP violadora das garantias de defesa consagradas no artigo 322.º da CRP.
Ora, esta interpretação do artigo 262.º do CPP é que constitui o objecto do
presente recurso, tal como foi fixado pelo recorrente no respectivo requerimento
de interposição.
Nas alegações apresentadas nesta instância de recurso, o recorrente expôs, neste
contexto, os seus argumentos concluindo no sentido da inconstitucionalidade do
referido artigo 262.º, na interpretação sufragada no acórdão da Relação
recorrido.
Assim, dúvidas não restam relativamente à questão de qual seja o artigo que o
recorrente pretende que seja apreciado sob o ponto de vista da sua
inconstitucionalidade”.
4. Cumpre decidir, começando pela questão prévia que resulta do acima referido
despacho do relator.
O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC tem natureza
normativa, visando apreciar a conformidade constitucional de normas
efectivamente aplicadas como ratio decidendi na decisão recorrida. Ficam fora do
objecto possível deste tipo de recursos outras determinações jurídicas, como as
próprias decisões jurisdicionais, designadamente aquelas que adoptaram as normas
impugnadas e que só indirectamente podem ser sindicadas, precisamente por via da
alegação de inconstitucionalidade formulada contra tais normas.
Incumbe ao recorrente a tarefa de seleccionar, no requerimento de interposição,
o objecto do seu recurso, assim delimitando o campo de conhecimento do Tribunal.
Nessa peça, o recorrente indicou a norma do n.º 1 do artigo 262º do Código de
Processo Penal como objecto do recurso.
Ora, a verdade é que não foi essa a norma que a Relação de Guimarães aplicou
para fundamentar a decisão de indeferir a pretensão do recorrente.
Com efeito, tal decisão fundamentou-se especialmente, como se observa do acórdão
de 3 de Dezembro de 2007 e do acórdão de 7 de Abril de 2008, na norma do n.º 4
do artigo 105º do RGIT. É certo que o recorrente invocou o disposto no referido
n.º 1 do artigo 262º do Código de Processo Penal – o inquérito compreende o
conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime,
determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as
provas, em ordem à decisão sobre a acusação – a mérito da sua pretensão, visando
com isto obter uma solução que, por decorrência lógica, fizesse concluir pela
impropriedade da interpretação adoptada quanto à natureza do pressuposto
resultante da nova redacção do aludido n.º 4 do artigo 105º do RGIT. Mas o
correspondente argumento, segundo o qual as diligências relativas à notificação
do arguido para pagamento das quantias em causa só poderiam ser praticadas em
fase de inquérito, foi claramente rejeitado pela Relação de Guimarães,
designadamente no segundo dos referidos acórdãos, ao continuar a perfilhar o
entendimento de que tais diligências podiam ser validamente ordenadas na fase de
julgamento, por força da interpretação adoptada do referido n.º 4 do artigo 105º
do RGIT, bem diversa daquela que o recorrente invocara no seu recurso.
Assim analisada a causa, pode concluir-se que pretender questionar uma norma
retirada do artigo 262º do Código de Processo Penal com o sentido de que 'admite
que o processo penal prossiga a sua tramitação, sem que contudo haja crime
punível', conforme o recorrente enunciou ao suscitar a questão na Relação de
Guimarães – para além de pretender retirar do preceito um sentido normativo que
ele manifestamente não comporta e que, de resto, não foi adoptado na decisão
recorrida –, traduz, quando muito, uma crítica directa à decisão em si mesma
considerada, mas sem que, com isso, se suscite uma questão de
inconstitucionalidade normativa.
Tanto basta para poder concluir, e com toda a segurança, que o Tribunal
Constitucional não pode dele conhecer.
5. Em face do exposto, o Tribunal decide não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
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