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Processo n.º 617/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
Por sentença de 17 de Março de 2008, o juiz do 3º Juízo do Tribunal do Comércio
de Lisboa decidiu qualificar como culposa a insolvência da sociedade A., Lda.,
declarar afectado pela qualificação B., e, bem assim, declará-lo inibido, pelo
período de dois anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de
qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação
ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
A mesma sentença recusou, no entanto, a aplicação da norma do artº 189º, nº 2,
do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), com fundamento em
inconstitucionalidade, e, em consequência, entendeu não decretar a inabilitação
do afectado como decorreria dessa disposição em resultado da qualificação de
insolvência como culposa.
Encontra-se fundamentada na seguinte ordem de considerações:
“[…]
Assim sendo, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 1 e n.º 2, alínea i) do
CIRE [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas], a insolvência de A.,
Lda. é culposa, sendo afectado por esta qualificação o seu sócio e gerente, B..
Relevando o facto de, em 08/11/06, o processo principal ter sido declarado
encerrado, passando o presente incidente a seguir os seus termos como incidente
limitado, atingida a conclusão pela qualificação da insolvência como culposa,
nos termos do disposto no artigo 191º n.º 2, alínea c) do CIRE, a sentença
apenas conterá as menções previstas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 189º,
ou seja, a identificação das pessoas afectadas pela qualificação, a sua
inabilitação por um período de 2 a 10 anos e a sua inibição para o exercício do
comércio e ocupação de cargos sociais e outros por um período de 2 a 10 anos.
A inabilitação consequente à qualificação da insolvência como culposa é a
correspondente ao instituto jurídico previsto nos artigos 152º e sseguintes do
Código Civil, ou seja, uma situação de incapacidade de agir negocialmente,
traduzindo a inaptidão para, por acto exclusivo, sem o consentimento de outrem
praticar actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, tendo em
atenção as circunstâncias do caso, sejam especificados na sentença – artigo
153º, n.º 1, do Código Civil.
Nos termos do disposto nos artigos 18º e 26º da CRP [Constituição da República
Portuguesa] a todos é reconhecido o direito à capacidade civil, como decorrência
imediata da personalidade e subjectividade jurídicas, cobrindo quer a capacidade
de gozo quer a capacidade de exercício, sendo apenas permitida a restrição à
capacidade civil, para além do disposto no n.º 4 do referido artigo 26º CRP,
quando os motivos dessa restrição forem “... pertinentes e relevantes sob o
ponto de vista da capacidade da pessoa”, não podendo a restrição servir de pena
ou de efeito de pena – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da
República Portuguesa Anotada, 4ª edição, pág. 465.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional de 13/11/07 [Acórdão n.º
564/07], que aqui seguimos de perto, no caso da inabilitação em consequência da
qualificação da insolvência como culposa, nenhuma destas duas condições
(pertinência e relevância, por um lado e a não assunção de carácter de pena ou
efeito de pena) se encontra preenchida.
A inabilitação nestas circunstâncias não resulta de uma situação de incapacidade
natural, de uma inaptidão para a gestão autónoma dos seus bens, mas antes de uma
situação objectiva de impossibilidade do incumprimento de obrigações vencidas
imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos seus administradores, forma
de conduta que, por si só não indicia qualquer característica pessoal
incapacitante.
Tal inabilitação, por outro lado, em nada contribui para a consecução da
finalidade do processo de insolvência, ou seja, a satisfação dos interesses dos
credores, seja por via da liquidação do património e repartição do seu produto,
seja por via de um plano de insolvência. Igualmente não contribui eficazmente
para a tutela dos interesses gerais do tráfego, resguardando eventuais futuros
credores do inabilitado, que não terão legitimidade para arguir a invalidade dos
actos praticados por este sem o consentimento do curador, legitimidade de que
são titulares apenas o curador, o inabilitado quando recupere a capacidade plena
e os seus herdeiros.
Assim sendo, esta inabilitação surge com uma dimensão punitiva, “...
traduzindo-se numa verdadeira pena para o comportamento ilícito e culposo do
sujeito atingido” [acórdão citado]
Surge igualmente como uma medida inadequada e excessiva, especialmente porque
surge conjugada com a aplicação de inibição para o exercício do comércio.
Assim sendo, e tal como concluiu o Tribunal Constitucional, a disposição contida
no artigo 189º n.º 2, alínea b), do CIRE, é desconforme ao disposto no artigo
26º da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o artigo 18º da mesma
Lei Fundamental, razão pela qual se entende desaplicá-la, não se decretando, em
consequência, a inabilitação do afectado pela qualificação como culposa.
No tocante à medida da inibição para o exercício do comércio e ocupação, em
geral de cargos sociais, ponderando os factos apurados, nomeadamente ter-se
tratado de uma única interpelação não atendida, o tribunal entende adequado
fixar no mínimo legal o período de inibição.
[…]”.
Desta sentença o Ministério Público interpôs recurso obrigatório ao abrigo do
disposto no artº. 70º, nº 1, alínea a) da LTC, e, no seguimento do processo,
apresentou as seguintes alegações:
“1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida nos autos do incidente de qualificação das insolvência em que
é requerido B., em que se desaplicou a norma constante do artigo 189º, nº 2,
alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, invocando o
decidido por este Tribunal Constitucional no Acórdão nº 564/07.
Está neste momento perfeitamente sedimentado o entendimento que considera
violador da Lei Fundamental o regime constante de tal norma legal (cf., além do
citado Acórdão nº 564/07, as decisões sumárias nºs 615/07 e 85/08).
Nenhuma questão nova suscitando o caso dos autos, afigura-se que deverá ser
aplicada tal corrente jurisdicional.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º É inconstitucional, por ofensa do artigo 26º, nº 1, conjugado com o artigo
18º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 189º, nº 2,
alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 53/04, na parte em que se impõe que o juiz, na sentença que
qualifique a insolvência como culposa, demite a inibição do administrador da
sociedade comercial declarada insolvente.
2º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida”.
Cumpre apreciar.
II. Fundamentação
Constitui objecto do presente recurso a norma do artigo 189º, n.º 2, alínea b)
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março.
É o seguinte o teor da referida disposição:
“Artigo 189.º
Sentença de qualificação
1 — (…)
2 — Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;
b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um
período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de
órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa
insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação
na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
3 - (…)”.
A norma do artigo 189º, n.º 2, alínea b), do CIRE já foi apreciada pelo Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 564/07, de 13 de Novembro (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), que, a julgou inconstitucional, por ofensa ao
artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da República, no
segmento em que consagra o direito à capacidade civil.
O juízo de inconstitucionalidade constante do mencionado aresto assentou nas
seguintes considerações:
“[…]
Comecemos pela apreciação da alegada inconstitucionalidade material do artigo
189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE.
8. É manifestamente infundada a imputação de violação de qualquer das normas
constitucionais invocadas no recurso. De facto, não se vê que o decretamento da
inabilitação, como efeito necessário de uma situação de insolvência, afecte uma
posição jurídica contemplada pelo âmbito normativo de protecção dos artigos
30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.ºs 1 e 2, 61.º e 62.º da CRP, colidindo com os bens
aí constitucionalmente garantidos.
Já a diferente conclusão temos que chegar, no que toca à violação do artigo 18.º
e do artigo 26.º da CRP, na parte em que este reconhece o direito à capacidade
civil.
De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a
correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto
nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, Carvalho
Fernandes, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente
pelo devedor”, Themis, ed. esp., 2005, 97. Trata-se, pois, de uma situação de
incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto
exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de
disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de
cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código
Civil).
Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência
imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a
capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que,
contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas
variantes, é algo de quantificável, uma posse susceptível de gradações, de
detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando
afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter
excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da
personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa
profunda” (Orlando de Carvalho, Teoria geral do direito civil, polic., Coimbra,
1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos
pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão
dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser
decretada.
Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as
restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam
legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena
ou de efeito de pena” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a
inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de
ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um
estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas
(artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos
seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente,
indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus
interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa
de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de
características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa
situação.
Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação
ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no
regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural
que, nesse regime, a fundaram.
E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos
credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade
do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um
processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do
património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos
credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência
(…).»
Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo,
tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o
administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens
integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).
Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma
incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos
praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão
feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o
caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na
justa medida, os interesses dos credores.
Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o
Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade
constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual
Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º
da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil,
mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há
unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de
“incapacidade”) […]».
Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também
que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir
eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a
posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de
acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a
invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador.
Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil,
aplicável, com as devidas adaptações, por remisão dos artigos 156.º e 139.º do
mesmo Código – v., por todos, C. Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª
ed. por A. Pinto Monteiro/P. Mota Ppinto, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao
curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos
seus herdeiros.
A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode,
pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o
comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.
Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um
mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a
sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área
(designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois
não se vê que outros possam ser utilizados.
Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis
diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele
perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos
ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para
além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)).
Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da
insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode
deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea
b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da
República.
[…]”.
É para esta fundamentação que agora se remete, como tal se confirmando o juízo
de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código
da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 53/04, de 18 de Março, por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o artigo
18.º, da Constituição da República, no segmento em que consagra o direito à
capacidade civil;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar o juízo de
inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
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