|
Processo n.º 217/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I- Relatório
1. A. e B., recorrem para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do
Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou a sentença que, em incidente
instaurado ao abrigo do artigo 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação
de Empresas (C.I.R.E.), os considerou responsáveis pela insolvência, qualificada
como culposa, da sociedade “C. Ldª” e, em consequência:
a) decretou a sua inabilitação, pelo período de três anos, para a prática de
quaisquer actos referentes ao seu património ou a patrimónios por si geridos que
não sejam de mera administração, sendo necessário para os demais (actos de
disposição de bens entre vivos) autorização de curador;
b) declarou os mesmos recorrentes inibidos, durante um período de cinco anos,
para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de
titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada
de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a
massa insolvente detidos pelos mesmos e condenou-os a restituir todos os bens ou
direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
2. Nas suas alegações perante este Tribunal, os recorrentes sustentaram o
seguinte:
“1ª - Os artigos 186º, nº 2, alíneas a) e d) e 189º nº 2 alínea b) do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo D.L. n.º 53/2004
de 18 de Março, alterado pelo D.L. n.º 200/2004 de 18 de Agosto, estabelecem uma
cominação de inabilitação do administrador cuja conduta culposa tenha
contribuído ou determinado a insolvência da empresa, presumindo a sua culpa caso
destrua, inutilize, oculte, ou faça desaparecer, no todo ou em parte
considerável, o património do devedor ou disponha de bens em proveito próprio ou
de terceiro.
2ª - Tais normas prevêem a inabilitação, em paralelo ou simultâneo com a
inibição, como uma verdadeira e própria incapacidade jurídica que o Código Civil
tipifica como modalidades, a menoridade (artigo 122º) a interdição (artigo 138º)
e a inabilitação (artigo 152º).
3ª - A capacidade jurídica definida no artigo 67º do Código Civil encontra
consagração no artigo 26° da Constituição da República Portuguesa como direito
fundamental em termos de a todos ser reconhecido o direito à capacidade civil
cujas restrições só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei.
4ª - Os motivos da restrição devem ser pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa e não pode servir de pena ou efeito de pena.
5ª - A restrição dos direitos fundamentais, como a capacidade civil, devem
obedecer aos requisitos de substância resultantes do artigo 18º da CRP, ou seja,
que vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido,
que seja exigida por essa salvaguarda, que seja apta para o efeito e se limite à
medida necessária para alcançar esse objectivo e que a restrição não aniquile o
direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito.
6ª - A inabilitação prevista no artigo 152º do Código Civil, como a interdição,
assenta na demonstração da incapacidade do cidadão de reger o seu património, ou
regê-lo convenientemente, pelo que o que se pretende prevenir com uma tal
limitação à capacidade jurídica do cidadão é o seu próprio interesse.
7ª - Ao invés, a inabilitação prevista no artigo 189º nº 2 alínea b) do CIRE
visa, primariamente, o interesse dos credores, e não o interesse do próprio
inabilitando, pelo que uma tal restrição da capacidade civil não é “pertinente”
e “relevante” sob o ponto de vista da capacidade da pessoa e não visa
salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido.
8ª - Na inabilitação a que se refere o artigo 189° do CIRE, além do interesse
protegido não ser o do próprio inabilitando mas sim dos credores da insolvente,
nada justifica uma tal restrição do direito fundamental na óptica de que a mesma
é inócua nos efeitos que produz no processo de insolvência ou mesmo nos próprios
interesses dos credores.
9ª - Tal inabilitação assume, pois, carácter ou natureza sancionatória, sendo
que a Constituição da República Portuguesa – artigo 26º – não consente que uma
restrição (como a inabilitação) de um direito fundamental (como a capacidade
jurídica) tenha um efeito de pena.
10ª - O que conduz ao decretamento da inabilitação é um juízo de culpabilidade
na insolvência que recai sobre a pessoa do administrador, culpa que se acha pelo
recurso a presunções “iuris et de iure” como as que vêm reflectidas no citado
artigo 186º nº 2 do CIRE.
11ª - O legislador ordinário, em matéria de restrições ao direito fundamental
como a capacidade civil não podia instituir um regime que, na forma (recurso a
presunções) e na substância (tipificação de situações que nada têm a ver com a
capacidade jurídica) facilitam o decretamento da inabilitação.
12ª - Não constitui fundamento sério, equilibrado, adequado, exigível e
proporcional decretar a inabilitação de um cidadão só porque se presume culpado
da insolvência, presunção essa alicerçada no simples facto do sujeito ter
inutilizado ou ocultado bens do património do devedor ou disposto dos bens do
devedor em proveito pessoal ou de terceiro reproduzido art.º 186º, nº 2, alíneas
a) e d) do CIRE, norma que, assim, viola os princípios da proibição do excesso,
da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade em sentido restrito.
13ª - O art. 186º, n.º 2 do CIRE, ao fixar uma presunção de culpa dos
administradores do devedor, presunção essa inilidível, ou seja, sem
possibilidade de prova em contrário, padece de flagrante inconstitucionalidade
(orgânica e material), pois os administradores da insolvente poderão ter
praticado o facto, inclusive a coberto de um dever, mas não podem sequer tentar
demonstrar e provar que não tiveram culpa no facto e na situação de insolvência.
14ª - A Lei n.º 39/2003 de 22 de Agosto – art. 2º, n.º 5, 6, 7 e 8 – autorizou o
Governo a prever, no processo de insolvência, um incidente de qualificação da
insolvência como fortuita ou culposa, prescrevendo-se que ela será culposa
quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação,
dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou
de facto, caso em que o Juiz deverá declarar a inabilitação do administrador.
15 - Ao presumir-se, automaticamente, a culpa e cominar-se com as consequências
previstas no art. 189º, n.º 2 do CIRE nos casos do art. 186º, n.º 2, o
legislador ordinário ultrapassou e violou os poderes legislativos conferidos
pela citada Lei de autorização legislativa.
16ª - Para além de que se está a violar clara e inequivocamente os mais
elementares princípios e direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o
direito ao trabalho protegido (artigo 58º, n.º 1 da CRP), o direito à livre
escolha de uma profissão (artigo 47, n.º 1 da CRP), o direito à iniciativa
económica privada (artigo 61º da CRP) e o direito à propriedade privada (artigo
62º da CRP).
17ª - Assim, os artigos 186º, nº 2, alíneas a) e d) e 189º nº 2 alínea b) do
CIRE são orgânica e materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos
artigos 18°, 26º, 165º e 198º da CRP e bem assim dos princípios da
proporcionalidade e da proibição do excesso, da adequação e da exigibilidade,
normativos e princípios que, entre outros, foram violados pela sentença
recorrida.
18ª - Inconstitucionalidade já reconhecida pelo Acórdão n.º 564/2007 e pela
Decisão Sumária n.º 615/2007, quanto à norma do artigo 189º, n.º 2, alínea b) do
CIRE, por ofensa ao artigo 26º, conjugado com o artigo 18º, da CRP, no segmento
em que consagra o direito à capacidade civil.”
3. O Ministério Público salientou que a norma da alínea d) do n.º 2
do artigo 186.º do CIRE não foi aplicada pela decisão recorrida, que a presunção
de culpa é ilidível e, invocando jurisprudência do Tribunal (acórdão n.º 564/07
e decisões sumárias n.ºs 615/07, 85/08 e 288/08), concluiu nos termos seguintes:
“1º
É inconstitucional, por ofensa do artigo 26º, nº 1, conjugado com o artigo 18º
da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 189º, nº 2, alínea b)
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei
nª 53/04, de 18 de Março, na parte em que se impõe que o juiz, na sentença que
qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador
da sociedade comercial declarada insolvente.
2°
Não é inconstitucional a norma do artigo 186º, nº 2, alínea a), do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que prevê uma presunção
ilidível de culpa para os gerentes que hajam feito desaparecer parte
considerável do património da sociedade requerida.”
4. Ouvidos sobre as questões suscitadas nas alegações do Ministério Público, os
recorrentes vieram reconhecer que houve lapso na invocação da alínea d) do n.º 2
do artigo 186.º do CIRE. No mais, sustentaram que o n.º 2 do artigo 186.º
estabelece uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa.
II- Fundamentação
5. Após a resposta dos recorrentes às observações do Ministério
Público, ficou claro que o objecto do presente recurso é constituído pelas
normas do artigo 186.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do
C.I.R.E., estando dele excluída a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º, preceito
aplicado na sentença de 1.ª instância, mas afastado pelo acórdão recorrido.
Aquelas normas foram efectivamente aplicados pela decisão recorrida, cuja ratio
decidendi integram, pelo que cumpre verificar se, pelas razões alegadas ou
quaisquer outras (artigo 79.º-C da LTC), são desconformes a regras ou princípios
da Constituição da República.
6. Comecemos por evocar os preceitos em que se inserem as normas cuja
conformidade à Constituição é questionada.
O artigo 186.º do CIRE dispõe o seguinte:
“Artigo 186.º
Insolvência culposa
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em
consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus
administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do
processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma
pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo
ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros,
causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu
proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento
por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma
actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em
proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na
qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração
deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com
grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade
organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou
praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação
patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de
colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo
188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito
ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à
devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
E o artigo 189.º do mesmo Código estabelece:
“Artigo 189.º
Sentença de qualificação
1 - A sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita.
2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;
b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um
período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de
órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa
insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação
na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
3 - A inibição para o exercício do comércio tal como a inabilitação são
oficiosamente registadas na Conservatória do Registo Civil…”.
7. Sustentam os recorrentes que o Governo, ao introduzir as
presunções de culpa constantes do n.º 2 do artigo 186.º com as consequências
previstas no n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, excedeu os poderes conferidos pela
respectiva lei de autorização legislativa, ferindo as normas em causa de
inconstitucionalidade orgânica.
Vejamos, tendo presente que o recurso tem o objecto que foi
delimitado no n.º 5 do presente acórdão.
7.1. Quanto ao vício de inconstitucionalidade orgânica imputado à norma da
alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, importa lembrar que o Tribunal já
apreciou questão semelhante no acórdão n.º 564/07 (disponível no site
www.tribunalconstitucional.pt), tendo decidido que o diploma que aprovou o
C.I.R.E. (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março) ao estabelecer uma presunção
de culpa – o que nesse acórdão se apreciava era a presunção estabelecida no n.º
3 do artigo 186.º do CIRE, mas a ponderação efectuada é perfeitamente
transponível para a norma da alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo 186.º – não
extravazou, no aspecto considerado, do objecto, sentido e limites da lei de
autorização legislativa ao abrigo da qual foi editado: a Lei n.º 39/2003, de 22
de Agosto.
Como nesse acórdão se refere, o detalhe adiantado para o regime de
qualificação da insolvência na Lei n.º 39/2003 (designadamente no artigo 2.º
deste diploma legal) não significa que a lei de autorização tenha um carácter
esgotante da disciplina da matéria, de modo a retirar ao legislador autorizado
qualquer poder de ulterior conformação normativa. Condicionando e restringindo
mais fortemente o espaço de intervenção legislativa do Governo, essas
disposições, de acentuado carácter normativo-material, não o inibem da
enunciação de conteúdos concretizadores e integrativos da regulação já
configurada, nos seus traços fundamentais.
O estabelecimento de uma presunção de culpa pelo artigo 186.º, n.º
2, alínea a), do C.I.R.E. em face de determinado comportamento do administrador
da sociedade insolvente – “quando…tenham…destruído, danificado, inutilizado,
ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património
do devedor” – mantém incólume o regime substantivo fixado na lei de autorização,
adicionando-lhe uma norma de cariz processual, que em nada contende com aquele
regime, antes verdadeiramente se harmoniza com a sua razão inspiradora.
Nem se diga que em parte alguma a Lei n.º 39/03 autorizou
explicitamente a criação desta presunção de culpa (supondo, agora, que de uma
presunção verdadeiramente se trate). Essa solução legislativa está
suficientemente coberta pelas autorizações genéricas contidas no artigo 1.º, n.º
3, alínea a), e no artigo 2.º, n.º 5, daquela lei, legitimadoras de
desenvolvimentos normativos compatíveis, como o é o prescrito no artigo 186.º,
n.º 2, alínea a), do CIRE, com a regulação pré-fixada.
7.2. Os recorrentes não desenvolvem qualquer argumentação específica, no campo
da inconstitucionalidade orgânica, relativamente à norma da alínea b) do n.º 2
do artigo 189.º do CIRE. Assim, também não vislumbrando o Tribunal razões para
essa imputação, julga-se a arguição deste vício, quanto a esta norma,
manifestamente improcedente.
Deste modo, concluindo-se pela não verificação da alegada
inconstitucionalidade orgânica, cumpre passar à apreciação do vício de
inconstitucionalidade material que os recorrentes imputam às mesmas normas.
8. O acórdão recorrido interpretou a norma da alínea a) do n.º 2 do
artigo 186.º do CIRE como fazendo corresponder à demonstração de que o
administrador da sociedade insolvente destruiu, danificou, inutilizou, ocultou,
ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor –
conduta que considerou provada e imputou aos recorrentes – uma presunção
inilidível de culpa, conducente à qualificação da insolvência como culposa com
as consequências inerentes. Aliás, no mesmo sentido vai a generalidade da
doutrina (Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas anotado, vol. II, pág. 14, Menezes Leitão, Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, pág. 175, 2ª ed., Carneiro da
Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, in Estudos
Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, vol.
II, pág. 963).
Este entendimento implica que se considere a situação de insolvência
da sociedade imputável ao administrador contra quem se prove uma das condutas
previstas, sem possibilidade de o interessado demonstrar (ou de o tribunal
verificar oficiosamente) que, apesar da prova do comportamento descrito na
norma, o juízo de censura não se justifica (sobre o funcionamento desta
presunção vide Carneiro da Frada, na ob. cit., pág. 965-966).
As presunções legais são ilações que a lei tira de um facto
conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil).
Mediante a demonstração de um determinado facto (o facto base da presunção),
cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios
probatórios gerais, intervém a lei para concluir pela existência de outro facto
(o facto presumido).
Neste sentido, é duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º
do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz
corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que
um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível)
ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste
sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a
enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou
concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa.
De todo o modo, numa ou noutra perspectiva (presunção inilidível de
culpa, factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa), o legislador
prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como
requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE
contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência. Ora, mais do
que a determinação da natureza da norma (estabelecimento de uma presunção juris
et de jure ou qualificação jurídica dos factos tipificados), o que é decisivo
para a questão de constitucionalidade suscitada é que, perante a prova de
determinados comportamentos dos administradores da sociedade insolvente, se
conclui pela verificação desse requisito, sem necessidade, nem sequer
possibilidade, de um juízo casuístico efectuado pelo julgador perante todo o
circunstancialismo do caso concreto.
É esta consequência jurídica, esta limitação do campo de valoração
judicial autónoma do significado normativo da conduta prevista e,
correspondentemente, do âmbito da defesa potencial do interessado, que importa
confrontar com as normas e princípios constitucionais alegadamente violados.
A garantia da via judiciária para defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos envolve, não apenas a atribuição aos interessados de um
direito de acção judicial, mas também o direito a um processo equitativo (n.º 4,
do artigo 20.º, da C.R.P.). Neste direito inclui-se a proibição da indefesa, ou
seja, a exigência de que o processo seja estruturado de tal modo que não impeça
as partes de apresentar as suas razões de facto e de direito, de oferecer as
suas provas e de controlar as provas do adversário e de discretear sobre os
resultados de umas e outras (cf., referindo outros, acórdão n.º 658/06,
www.tribunalconstitucional.pt).
Isso não obsta, porém, a que o legislador estabeleça presunções
iuris et iure, com as consequentes limitações ao âmbito da prova dos factos que
as poderiam infirmar, desde que as mesmas visem atingir um fim legítimo e não se
revelem desproporcionadas.
Ora, o estabelecimento da presunção em análise tem a vantagem de
evitar a subjectividade inerente a um juízo de censura ético-jurídico, ao mesmo
tempo que supera as dificuldades de apuramento de todo o circunstancialismo que
envolveu a situação de insolvência. São objectivos perfeitamente
legítimos, alicerçados não só em razões de segurança jurídica, mas também de
justiça material, que justificam uma limitação ao âmbito de apreciação e,
consequentemente, ao objecto de prova, mediante a imposição normativa (ex vi
legis) de uma conclusão jurídica, perante a verificação de certos factos que o
interessado pode discutir nos termos gerais.
Na previsão normativa em apreciação, o facto que o legislador
considerou suficiente para impor a qualificação da insolvência como culposa foi
a destruição, danificação, inutilização, ocultação, ou desaparecimento, no todo
ou em parte considerável, do património do devedor. Ora, a prática de actos que
determinem a perda ou subtracção de parte considerável dos bens que constituíam
o património do comerciante em quebra, caracterizando-se a situação de
insolvência por uma incapacidade do devedor de cumprimento das suas obrigações
vencidas (artigo 3.º do C.I.R.E.), é determinante dessa insolvabilidade, num
juízo de adequação social‑normativo (Carneiro da frada, ob. cit. pág. 966).
Perante tais factos, credencia-se como razoável e adequado que, sem mais, o
legislador considere a situação de insolvência culposa, para os referidos
efeitos (Repare-se que a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos
da decisão de causas penais ou de responsabilidade civil – cfr. artigo 185.º do
C.I.R.E.). São tão flagrantemente reprováveis e aptos para causar a situação de
insolvência que a indiscutibilidade do inerente juízo de culpa se revela
adequada aos fins em vista com a qualificação da falência.
Pode, pois, concluir-se que os objectivos visados com o
estabelecimento da automática inerência do juízo normativo de culpa à prova da
verificação da situação descrita no artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do C.I.R.E.,
são legítimos e que essa automaticidade ex vi legis se revela adequada,
necessária e razoável, como meio de atingir esses objectivos, sem que o núcleo
essencial da exigência constitucional do processo equitativo seja atingido, pelo
que a respectiva norma não se mostra ferida de inconstitucionalidade.
Por último, não sendo a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 286.º
do C.I.R.E. que estabelece as consequências da responsabilidade pela falência
culposa – estas são cominadas no artigo 189.º do C.I.R.E. – não se vislumbra
fundamento mínimo para sustentar a discussão acerca da alegada violação, por
aquela norma do direito ao trabalho (artigo 58.º, n.º 1 da CRP), do direito à
livre escolha da profissão (artigo 47.º, n.º 1, da CRP), do direito à iniciativa
económica privada (artigo 61.º da CRP) ou do direito de propriedade (artigo 62.º
da CRP).
O recurso improcede, pois, quanto à norma da alínea a) do n.º 2 do
artigo 186.º do CIRE.
9. O artigo 189.º, nº 2, alínea b), do C.I.R.E., passou a incluir a
inabilitação nas medidas aplicáveis aos administradores de sociedade comercial
responsáveis pela insolvência culposa, cumulativamente com a inibição para o
exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de
sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade
económica, empresa pública ou cooperativa (artigo 189.º, n.º 2, alínea c), do
C.I.R.E).
Apreciando a constitucionalidade desta imposição de inabilitação
disse o Tribunal no acórdão n.º 564/2007:
'8. É manifestamente infundada a imputação de violação de qualquer das normas
constitucionais invocadas no recurso. De facto, não se vê que o decretamento da
inabilitação, como efeito necessário de uma situação de insolvência, afecte uma
posição jurídica contemplada pelo âmbito normativo de protecção dos artigos
30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.ºs 1 e 2, 61.º e 62.º da CRP, colidindo com os bens
aí constitucionalmente garantidos.
Já a diferente conclusão temos que chegar, no que toca à violação do artigo 18.º
e do artigo 26.º da CRP, na parte em que este reconhece o direito à capacidade
civil.
De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a
correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto
nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, CARVALHO
FERNANDES, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente
pelo devedor”, Themis, ed. esp., 2005, 97. Trata-se, pois, de uma situação de
incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto
exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de
disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de
cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código
Civil).
Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência
imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a
capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que,
contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas
variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de
detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando
afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter
excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da
personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa
profunda” (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, polic., Coimbra,
1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos
pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão
dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser
decretada.
Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as
restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam
legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena
ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a
inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de
ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um
estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas
(artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos
seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente,
indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus
interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa
de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de
características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa
situação.
Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação
ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no
regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural
que, nesse regime, a fundaram.
E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos
credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade
do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um
processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do
património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos
credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência
(…).»
Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo,
tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o
administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens
integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).
Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma
incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos
praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão
feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o
caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na
justa medida, os interesses dos credores.
Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o
Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade
constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual
Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º
da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil,
mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há
unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de
“incapacidade”) […]».
Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também
que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir
eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a
posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de
acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a
invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador.
Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil,
aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do
mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª
ed. por A.PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao
curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos
seus herdeiros.
A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode,
pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o
comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.
Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um
mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a
sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área
(designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois
não se vê que outros possam ser utilizados.
Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis
diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele
perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos
ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para
além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)).
Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da
insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode
deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea
b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da
República.”
É esta jurisprudência que se reitera.
10. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento parcial ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 53/2004, de 18 de Março;
b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do mesmo
diploma, por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição
da República, no segmento em que consagra o direito à capacidade civil;
c) Ordenar a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o juízo de
inconstitucionalidade ora formulado.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
|