|
Processo n.º 462/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
I- Relatório
1. A. interpôs recurso da sentença de 4 de Outubro de 2007, do
Tribunal Judicial da Comarca de Arraiolos (processo de contra-ordenação n.º
129/07.4TBARL), que julgou improcedente a impugnação da decisão da Governadora
Civil do Distrito de Évora, de 12 de Dezembro de 2006, mantendo a sanção
acessória de inibição de conduzir pelo período de 120 dias, que lhe fora
aplicada pela prática da contra‑ordenação prevista e punida pelas disposições
conjugadas dos artigos 68.º, n.º 1, alínea a) e 76.º, alínea a), do Regulamento
de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1
de Outubro, e dos artigos 138.º e 146.º, alínea l), do Código da Estrada.
Por acórdão de 8 de Abril de 2008, o Tribunal da Relação de Évora
negou provimento ao recurso, na parte que interessa, com os seguintes
fundamentos:
“Da alegada inconstitucionalidade do nº 4 do art.175º do Código da Estrada.
[omitido]
No caso do artº 175º, se, como se disse, o autuado escolheu uma das modalidades
ao seu alcance e elegeu a do pagamento, então apenas poderá apresentar a sua
defesa, restrita (isto é, limitada) à gravidade da infracção e à sanção
acessória aplicável.
Quer dizer, neste caso, e tendo pago por querer, tal como no caso anterior, não
podendo também reaver qualquer quantia ou diferencial, pode discutir duas
coisas: a gravidade da infracção e a sanção acessória aplicável, como resulta da
copulativa sublinhada.
Deste modo, à identidade de situações (aceita-se a diferença da existência das
duas alternativas no caso do artº 175º porque, estando presente, o autuado ou
paga ou garante) corresponde a incongruência de, tendo havido pagamento em
qualquer dos casos, apenas no caso do artº 175º se poder ver reduzida uma
infracção muito grave para grave (ou, pelos vistos, até para leve), com a
consequência de relevo que é o registo do condutor.
Apesar desta incongruência, como é salientado no dito aresto, é de aceitar que a
intervenção posterior ao pagamento da coima é a que resulta do acima exposto
para cada uma das situações analisadas.
O pagamento efectuado pelo arguido/recorrente, traduzindo um acto de
conformação, impede-o, como é óbvio, de posteriormente, discutir a prática da
infracção estradal que foi tida em consideração na fixação da sanção acessória.
É este na verdade o sentido da jurisprudência que temos por mais representativa:
cfr., vg. os Ac. da Rel. de Guimarães, de 4-6-2007, proc.º n.º 599/07- 1ª, rei.
Cruz Bucho, de 5-7-2007, proc.º n.º 122 1/07, rel. Tomé Branco [salientando
nomeadamente que “se o recorrente entendia que não tinha praticado a infracção
então não pagava a coima e discutia a sua verificação, sendo certo que neste
caso tinha de “prestar o depósito, também imediatamente, de valor igual ao
mínimo da coima prevista para a contra-ordenação praticada - art. 173º, n.º 2
CE, pelo que ao optar pelo pagamento voluntário, aceitou que a sua defesa se
tivesse de restringir apenas à sanção acessória”, in www.dgsi.ptj, de
29-10-2007, proc.º n.º 1658/072ª, rel. Cruz Bucho, Ac. da Rel. do Porto de
11-3-1998, proc.º 9741181, rel. Des.º Teixeira Pinto, de 19 de Julho de 2006
proc.º 0644050, rei. Des.º Jorge Jacob, 10-1-2007, proc.º n.º 0645886, rel.
Ernesto Nascimento, 14-3-2007, proc.º n.º 0647091, rel. Jorge Jacob, 23-5-2007,
proc.º n.º 0740433, rel. Artur Oliveira, de 14-11-2007, proc.º n.º 0744109, rel.
Ernesto Nascimento, todos in www.dgsj.pt.
Como vem sendo sublinhado em vários acórdãos que se debruçaram sobre esta
matéria, admitir que o arguido que pagasse a coima pelo mínimo viesse de seguida
discutir a verificação da contra-ordenação, traduzir-se-ia, em termos práticos,
no total subversão do sistema legalmente consagrado, pois a possibilidade legal
de liquidação da coima pelo mínimo traduz uma contrapartida legalmente concedida
ao arguido que se conforma com a prática da infracção, renunciando à
possibilidade de discutir a sua existência, sem embargo de lhe ser sempre
admissível impugnar a sanção acessória, a sua medida ou os termos em que foi
fixada.
E nem se diga que com semelhante interpretação ocorre violação do direito de
defesa do arguido. É que, em última ratio, a opção pelo pagamento voluntário,
com renúncia à discussão da existência da infracção e correspondente benefício
no montante da coima aplicável é sempre do arguido. Se este, porventura,
entender que não praticou a infracção e que a aplicação da coima é injusta,
então não a pagará voluntariamente e discutirá a verificação da
contra-ordenação, usufruindo de todas as garantias que a lei lhe concede.
Tendo procedido ao pagamento voluntário da coima, o arguido renunciou à
discussão da existência da infracção.
Acresce que ao contrário do que preconiza o recorrente, entendemos que, o
art.l75º, nº 4 do C. da Estrada que reza que o pagamento voluntário da coima não
impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e
à sanção acessória aplicável, com o devido respeito, não infringe as garantias
de defesa constitucionalmente consagradas.
Com efeito, como lucidamente é referido no acórdão da Relação de Coimbra, de
12-12-2007, proc.nº 109/07.OTBCDN, relatado pelo Exmº Desembargador Fernando
Ventura aquela norma constitui regime processual próprio do direito estradal,
especial em relação ao que decorre do regime geral das contra-ordenações,
constante do D.L. 433/82, de 27/10, foi justificada pelo legislador do D.L.
44/2005, de 23/02, pela consideração de que se estava perante infracções em
massa e que a aplicação do regime geral permitira o prolongamento excessivo dos
processos, com perda do efeito dissuasor da sanção.
Procurou-se, dessa forma, atingir maior celeridade.
Assim, com referência ao momento do levantamento do auto, impôs o legislador a
notificação do acoimando de diversos direitos e cominações, entre as quais “do
prazo concedido e do local para a apresentação da defesa” (artº 175º, nº 1, al.
d) do CE) e “da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, do
prazo e modo de o efectuar, bem como das consequências do não pagamento” (artº
175º, n°1, al. e) do CE).
Esse e outros conteúdos obrigatórios da notificação, constam do verso do auto,
cujo triplicado é entregue ao autuado.
Por via dessa obrigatórias advertências, fica o acoimado com o conhecimento de
que pode apresentar defesa e fazer ou não o pagamento voluntário da coima pelo
mínimo. Se o fizer, garante que o valor da coima não será aumentado mas,
correspondentemente, renúncia à impugnação relativamente à verificação da
infracção. Mas, em inteira liberdade, pode igualmente não efectuar esse
pagamento e preservar a possibilidade de impugnar também a verificação da
contra-ordenação, o que basta para respeitar o direito de acesso ao Direito e à
tutela efectiva, consagrados nos artºs. 20º e 268º, nº 4 e assegurar a
possibilidade de defesa, de acordo com artº 32º, nº 4, todos da CRP.
Em bom rigor, a norma do artº 175º, nº 4 do C.E não comporta, como pretende o
recorrente, qualquer presunção quanto à verificação da contra-ordenação nem
confere valor confessório ao pagamento. O regime instituído, por razões de
celeridade, não é mais do que a renúncia ao recurso relativamente aos factos que
integram os elementos constitutivos da infracção contra-ordenacional referida no
auto e nestes mencionados.
Como ainda se refere no dito aresto, outras situações de renúncia ao recurso, em
virtude de condutas dos sujeitos processual, encontravam-se no regime processual
penal anterior à Lei 48/2007, designadamente com referência às declarações
referidas nos artºs. 364º, nºs 1 e 2, 389º, nº 2 e 391º E, nº 2. Também aí são
estabelecidas situações em que a aquiescência ou ausência de posição no sentido
da documentação da prova equivale à renúncia ao recurso em matéria de facto, sem
que fosse posto em crise a sua conformidade com a Constituição da República.
Assim, com o devido respeito, entendemos que neste conspecto não assiste razão
ao recorrente.
[…]”
2. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos
seguintes termos:
“- o recurso é interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada
pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (L.T.C.);
- o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora foi tirado em 08 de Abril de
2008 e o douto Acórdão n.º 45/2008 do Tribunal Constitucional foi tirado no
Processo n.º 676/07 – 2ª Secção, em 23 de Janeiro de 2008;
- pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no art.º
175º, n.º 4, do Código da Estrada, na versão que actualmente lhe confere o
Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, sobre o segmento da redacção que
constitui o último parágrafo da mencionada norma estradal por integrante da
presunção inilidível que acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do
arguido enquanto restrito à possibilidade de abranger o âmbito delineado pela
gravidade da infracção e aplicável sanção de inibição de conduzir.
- tal norma viola os art.ºs 20º, n.ºs 1 e 5, 32.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4, da
Constituição da República Portuguesa;
- a questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos a fls. 6 do recurso
da decisão administrativa para o Tribunal Judicial de Arraiolos, a fls. 7 a 10
do recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Évora e a fls. 2 e 3 na
resposta ao parecer do M.P. junto do Tribunal da Relação de Évora;
[…]”
3. Notificadas as partes notificadas para alegações, o recorrente
concluiu as que apresentou da seguinte forma:
“I - O artigo 175º, nº 4, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º
44/2005, de 23 de Fevereiro, viola dos artigos 20º, n.º s 1 e 5, 32º, n.º 1 e
268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, na sua interpretação
segundo a qual, pagando voluntariamente a coima, ao Arguido não é consentido, na
fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção
acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção.
II - Tal interpretação viola os direitos constitucionalmente consagrados aos
arguidos, pois presume-os culpados sem lhes dar a possibilidade de discutir a
existência de infracção perante um Tribunal.
III - Ao fazê-lo retira as garantias constitucionais de defesa, de processo
justo e equitativo e, de tutela jurisdicional efectiva.
IV - Interpretada neste sentido a norma ideal aplicada pelo Tribunal “a quo” dá
a um órgão da administração a capacidade de avaliar um acto de um cidadão,
tomando-o como urna confissão – tal competência reservada aos tribunais sendo
livre a interpretação dessa mesma confissão pelo juiz da causa;
V - A Constituição dá ao indivíduo a garantia jurisdicional dos seus direitos,
através de um processo justo e equitativo – esta norma estradal retira
claramente esta mesma garantia, criando presunções que não podem ser ilididas,
pois podem ser fruto de condicionalismos circunstanciais que levem o Arguido a
pagar, sem ter consciência de que está a assumir algo que pode não querer
assumir, sem o discutir perante órgão isento, “a posteriori”
VI - A Lei fundamental, dá o direito aos cidadãos de discutir as decisões
tomadas pelos órgãos administrativos, mas a norma em apreço vem restringir esse
mesmo direito à discussão da sanção e da sua gravidade, mas não a existência
desta – esta restrição a este direito é completamente desproporcional - violando
as normas de restrição previstas na nossa Lei Fundamental!
VII - O Tribunal “a quo”, ao aplicar a norma em causa, já anteriormente julgada
inconstitucional em douta sentença do Tribunal Constitucional, está, igualmente,
a fazer uma restrição destes direitos inadmissível, na nossa modesta opinião!
VIII - Deve ser, portanto, interpretada esta norma de forma a permitir ao
Arguido discutir em sede própria, o Tribunal, e não na berma de uma qualquer
estrada perante um órgão policia. a sua culpa, nem se deve presumir culpado um
Arguido, sem se lhe dar as suas garantias de defesa.
IX - Deve, enfim, permitir-se ao Arguido, discutir a sua culpa, a par da
gravidade e sanção acessória da coima, mesmo que este, já a tenha pago
voluntariamente a coima aplicada, pois tal presunção de culpa é inadmissível e
não poderá nunca, ser julgada de tal forma, ou seja, perante um pagamento
apropriado e dentro dos comportamentos cívicos normais de um cidadão, ou poderá,
este mesmo, pensar que a ela está obrigado, sem consciência de que estará a
“confessar a sua culpa” - acreditará, sem que é em sede de julgamento que se
discutirá essa mesma.
X - De outra forma, restringem-se os direitos fundamentais mais essenciais.
XI - Só assim se poderá, de facto e de direito, obter JUSTIÇA.
XII - Em nosso modesto entender, o último parágrafo do art.º 175º, n.º 4 do
Código da Estrada, na versão actual do Dec.-Lei n.º 44/05 de 23 de Fevereiro, é
inconstitucional, face ao estabelecimento de uma presunção inilidível, que
acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido, por violação do
art.º s 18º, n.º. 2, 20º, n.º s 1 e 5, e 268º, n.º 4, da Constituição da
República Portuguesa, quando estipula que, depois de paga a coima, apenas se
pode apresentar defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição
do direito de conduzir aplicável, sem possibilidade de discutir a
verificação/cometimento da contra-ordenação.”
O Ministério Público contra-alegou, concluindo que:
“1º
É ao recorrente que incumbe o ónus de delimitar o objecto do recurso de
fiscalização concreta interposto, delineando a interpretação normativa que tendo
sido feita na decisão recorrida – pretende submeter ao Tribunal Constitucional.
2º
Não coincidem as interpretações normativas de um mesmo preceito legal, aplicado
pelo acórdão recorrido e questionado pelo recorrente perante o Tribunal
Constitucional, quando – excluindo expressamente a relação que o regime
constante do artigo 175º, nº 4, do Código de Estrada traduza o estabelecimento
de uma presunção inilidível – reportando antes a questão do limite ao âmbito da
defesa a uma “renúncia ao recurso” – o recorrente vai delinear o objecto do
recurso precisamente em função de tal norma ser integrante de “presunção
inilidível”.
3º
Termos em que não deverá conhecer-se do recurso interposto.”
4. Notificado para se pronunciar sobre a questão obstativa ao
conhecimento do objecto do recurso suscitada pelo Ministério Público nas
contra‑alegações, o recorrente disse o seguinte:
“1) Nos presentes Autos desde o seu inicio foram restringidos ao ora Recorrente
os mais elementares direitos, liberdades e garantias, consignados na C.R.P.
2) Ao Recorrente foi-lhe retirado o Direito de Defesa, estatuído nos art.º s
18.º, n.º 2, 32º, n.ºs 2 e 10, 204.º, e 268º, n.º 4 da Constituição da República
Portuguesa.
3) O Recorrente nos pontos 1 a XII das Conclusões do Recurso que apresentou a
esse douto Tribunal, delimitou o objecto do Recurso, indicando a decisão e a
parte da decisão que pretende impugnar.
4) Porque por seu turno um Tribunal aplicou – num Processo, ao Recorrente –
normas que infringem o disposto na Constituição. (Cfr. o art.º 204.º, da mesma
C.R.P.) e,
5) Quando faz referência à expressão “presunção inilidível” o que quis dizer foi
que quer no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora – dos Autos – quer no
douto Acórdão do Venerando Tribunal Constitucional n.º 45/08, citado nos Autos,
“implicitamente se via valorada”, na óptica do Recorrente
Porém,
6) Salvo o devido respeito, que é muito, ao longo das suas Conclusões neste
Recurso o Recorrente o que sempre defendeu foi:
- Que a interpretação do art.º 175º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção do
Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, segundo a qual – pagando
voluntariamente a coima, ao Arguido não é consentido, na fase de impugnação
judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de
conduzir, discutir a existência da infracção – viola dos art.ºs 20º, n.º s 1 e
5, 32.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Por,
- em nosso modesto entender, a citada interpretação violar os direitos
constitucionalmente consagrados aos arguidos, pois presume-os culpados sem lhes
dar a possibilidade de discutir a existência de infracção perante um Tribunal.
Assim sendo,
7) Salvo o devido respeito, que é muito por outra e melhor opinião, são
coincidentes as interpretações normativas referidas.”
Cumpre decidir, começando pela questão suscitada pelo Ministério
Público.
II- Fundamentos
5. O Ministério Público suscitou a questão prévia do não
conhecimento do objecto do recurso, alegando não existir coincidência entre o
sentido normativo que o recorrente quer ver fiscalizado e aquele que foi
efectivamente aplicado pelo acórdão recorrido. Salienta que este acórdão afastou
expressamente a perspectiva de que o n.º 4 do artigo 175.º do Código da Estrada
estabelece uma presunção inilidível da prática da infracção, considerando,
antes, que o sentido da norma é o de que pagamento espontâneo e voluntário da
coima implica renúncia ao recurso relativamente aos factos que integram os
elementos constitutivos da infracção.
Efectivamente, para que um recurso possa ser admitido ao abrigo da
alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tem de verificar-se uma dupla relação
de identidade:
- Em primeiro lugar, exige-se que a norma que o recorrente quer ver apreciada
tenha sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida, como sua ratio
decidendi;
- Em segundo lugar – e aqui reside o pressuposto específico desta abertura de
recurso para o Tribunal Constitucional – tem de haver identidade entre a norma
efectivamente aplicada na decisão recorrida e a norma anteriormente julgada
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Não basta que possa ser
sustentado que as mesmas razões que levaram a julgar inconstitucional
determinada norma justificariam que juízo de igual sentido fosse formulado a
propósito da norma aplicada na decisão recorrida (cfr., quanto ao âmbito, aos
pressupostos e à razão de ser deste recurso, por exemplo, o acórdão n.º 586/98,
publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Março de 1999).
Assim, cumpre apurar se a norma especificada pelo recorrente corresponde à norma
aplicada pela decisão recorrida e, se for caso disso, se a norma aplicada por
esta decisão é idêntica à julgada inconstitucional pelo Tribunal no acórdão n.º
45/2008.
6. No recurso interposto para a Relação discutia-se a aplicação e o
alcance da norma do n.º 4 do artigo 175.º do Código da Estrada, designadamente
as consequências decorrentes do pagamento voluntário da coima quanto ao âmbito
posterior da defesa do arguido no processo contra-ordenacional. Questionava-se a
inconstitucionalidade do segmento normativo da parte final do preceito, quando
interpretado no sentido de que, paga voluntariamente a coima pelo mínimo, apenas
era possível ao arguido apresentar defesa restrita à gravidade da infracção e à
sanção de inibição de conduzir, não lhe sendo permitido discutir a prática da
contra-ordenação.
A este respeito, o acórdão recorrido começa por dar notícia da divergência
jurisprudencial relativamente à questão da constitucionalidade da norma em
causa, alinhando pela corrente que entende que não padece de
inconstitucionalidade a interpretação do n.º 4 do artigo 175.º e do n.º 5 do
artigo 172.º, do Código da Estrada, segundo a qual o pagamento voluntário da
coima impede o agente de discutir a existência da contra-ordenação, sendo-lhe
apenas permitido apresentar defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção
acessória aplicável.
Mas, apreciando a argumentação do recorrente a esse propósito, o acórdão
recorrido afirma expressamente que a norma do n.º 4 do artigo 175.º do Código da
Estrada não comporta qualquer presunção quanto à verificação da
contra-ordenação, nem confere valor confessório ao pagamento voluntário da
coima, antes lhe atribuiu o efeito de “renúncia ao recurso relativamente aos
factos que integram os elementos constitutivos da infracção contra-ordenacional
referida no[s] auto[s] e nestes mencionados.” Isto é, em termos decisivos, o
acórdão retira da parte final do n.º 4 do art.º 175.º do Código da Estrada
apenas o sentido de que o pagamento voluntário da coima implica a renúncia, por
parte do arguido, à impugnação dos factos que no auto de notícia lhe são
imputados.
Sucede que o recorrente, ao enunciar a questão de constitucionalidade, se afasta
desta formulação, na medida em que integra no segmento normativo objecto do
presente recurso o entendimento de que tal restrição constitui “uma presunção
inilidível que acarreta a derrogação do direito de defesa amplo do arguido”.
Deste modo, se a “presunção inilidível” a que o recorrente se refere respeita à
própria existência da contra-ordenação (tanto a factualidade, como a respectiva
qualificação jurídica), assistirá razão ao Ministério Público quando sustenta
não existir coincidência entre a interpretação normativa que o recorrente
pretende ver apreciada e a que foi aplicada como ratio decidendi pelo acórdão
recorrido. Na verdade, o acórdão apenas atribuiu ao pagamento voluntário da
coima o sentido de renúncia à discussão dos factos que integram os elementos
constitutivos da infracção. Divergência que obsta ao conhecimento do recurso,
por não haver coincidência entre o sentido normativo aplicado pelo acórdão
recorrido e aquele que o recorrente submete a apreciação.
7. Acresce – e este é um obstáculo inultrapassável mesmo para quem,
tratando a apontada divergência como mera deficiência terminológica suprível,
entenda que o anterior não procede – que não há coincidência entre a dimensão
normativa anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal e aquela que o
acórdão recorrido extraiu do n.º 4 do artigo 175.º do Código da Estrada. Pelo
que, ainda que se reconduza o sentido enunciado pelo recorrente ao entendimento
adoptado pelo acórdão recorrido, nunca se verificará o pressuposto necessário
para que do recurso se conheça ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da
LTC.
Com efeito, o acórdão n.º 45/2008 julgou inconstitucional “a interpretação do
artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-lei n.º
44/2005, de 23 de Fevereiro, segundo a qual, paga voluntariamente a coima, ao
arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão
administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir
a existência da infracção”. O que se disse neste aresto foi que não respeita “os
requisitos constitucionais do acesso aos tribunais para tutela efectiva de
direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um processo
equitativo, no âmbito de um processo judicial de impugnação de uma decisão
administrativa de cariz sancionatório, o critério normativo segundo o qual o
pagamento voluntário da coima por contra‑ordenação rodoviária impossibilita o
arguido de discutir em tribunal a própria existência da infracção”, “[…] quer se
considere que na base de tal entendimento se encontra o estabelecimento de uma
presunção inilidível, quer a atribuição de valor probatório absoluto à confissão
do arguido que estaria implícita na sua opção pelo pagamento voluntário da
coima”.
Ora, o entendimento de que o segmento normativo questionado do n.º 4 do artigo
175.º do Código da Estrada apenas comporta uma renúncia à impugnação dos factos
constitutivos da infracção é diverso e menos restritivo do que aquele que o
acórdão fundamento julgou inconstitucional. Não é a mesma coisa dizer que a
norma impede a discussão da existência da infracção e atribuir-lhe, somente, o
sentido de vedar a discussão dos factos que integram os elementos constitutivos
da contra‑ordenação. Perante o entendimento do n.º 4 do artigo 175.º do Código
da Estrada que o acórdão recorrido acabou por adoptar, sempre fica ressalvada a
possibilidade de defesa, na fase de determinação da sanção acessória, quanto à
qualificação jurídica dos factos, se não também a possibilidade de o arguido
invocar causas de exclusão da ilicitude e da culpa. O que a dimensão normativa
anteriormente julgada inconstitucional não contempla.
Assim, não existindo identidade entre a norma efectivamente aplicada
na decisão recorrida e a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo
Tribunal Constitucional no acórdão n.º 45/2008, não ocorre o fundamento de
admissibilidade de recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro.
III- Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso;
b) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze)
unidades de conta.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
|