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Processo n.º 50/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
(Conselheiro Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A A., S.A., intentou contra B. uma acção especial de insolvência, alegando, em
síntese, ser dona e legítima possuidora de duas livranças emitidas,
respectivamente, em 15.12.99, no valor de € 131.801,98, e 14.07.00, no valor de
€ 100.801,73, com datas de vencimento em 17.11.03, subscritas por C., Lda. e
avalizadas pelo Requerido que não foram pagas nas datas dos seus vencimentos,
nem em momento posterior, tendo ainda justificado o pedido de declaração de
insolvência com base na alegação de que o Requerido não cumpre as suas
obrigações, pendendo contra ele várias execuções e que não tem quaisquer bens ou
rendimentos.
Neste articulado a Requerente informou não saber quem eram os cinco maiores
credores do requerido.
Este deduziu oposição, por requerimento apresentado em 4-1-2007, mas só no dia
16-1-2007 veio indicar a lista dos seus cinco maiores credores.
Por despacho de 22-1-2007 considerou-se que a oposição tinha sido apresentada
fora do prazo e, em consequência, determinou-se o desentranhamento da oposição e
da lista dos seus cinco maiores credores, tendo sido proferida na mesma data
sentença que julgou confessados os factos alegados na petição inicial, por falta
de oposição, e declarou o requerido em estado de insolvência, por verificação
dos factos indiciários mencionados nas alíneas a) e b), do artigo 20.º, n.º 1,
do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O Requerido interpôs recurso destas decisões para o Tribunal da Relação do
Porto, tendo o mesmo sido julgado improcedente por acórdão de 28-6-2007.
Após não lhe ter sido admitido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o
Requerido recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual (LTC),
pretendendo ver fiscalizada a constitucionalidade das normas constantes do
artigo 30.º, nºs 2 e 5, do CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de
Março.
Concluiu do seguinte modo as suas alegações:
“1ª
O disposto no nº 2 do art. 30º do CIRE, mormente no inciso que comina a “pena de
não recebimento” da oposição do devedor quando não vai acompanhada da lista dos
5 principais credores, é inconstitucional, porque cria uma excepção
injustificada, no âmbito do processo civil, em que este sistema tem como
princípio director a sanação dos vícios dos articulados iniciais – petição e
contestação –, como decorre do disposto nos artigos 265°.2, 508°.3 e 508°.A, 1
c), violando por isso os princípios da unidade do sistema jurídico e da
proporcionalidade, bem como o disposto nos arts. 1º, 2º, 3º.1, 13º, 25º.1,
26º.1, 202º.1 e 204º.1, da Constituição.
2ª.
O facto da oposição ao pedido de declaração não ser acompanhada da lista dos
seus 5 maiores credores não causa qualquer empecilho ao desenvolvimento normal
da lide, até pelo facto desses outros credores não terem qualquer direito de
intervenção na fase declarativa do processo de insolvência.
Atenta a natureza dos bens jurídico-pessoais em jogo num processo de
insolvência, em que estão em causa direitos fundamentais do devedor, a cominação
do referido inciso impede o direito de defesa, por parte do devedor, desses seus
bens e direitos pessoais.
3ª.
O disposto no nº 5 do art. 30º do CIRE, na parte em que comina como confessados
factos alegado na petição inicial”, mormente quando a oposição não é recebida
porque não acompanhada da lista dos 5 principais credores, também é
inconstitucional, porque viola os princípios e normas invocadas na conclusão
1ª.
4ª.
Na acção de insolvência, mormente quando o requerido é uma pessoa humana, está
em causa: a sua dignidade pessoal e social, o seu direito de participar na
democracia económica, o seu direito de eleição para cargos políticos, a sua
integridade moral, o seu direito ao desenvolvimento da personalidade, o seu
direito à capacidade civil, ao bom nome, reputação e imagem, o seu direito à
mobilidade, o seu direito ao trabalho e administração patrimonial.
Com a declaração de insolvência, estes direitos são violentados, parcelados e/ou
limitados.
Como são direitos fundamentais do cidadão, admitindo-se a sua restrição, esta
terá que se fundar na salvaguarda de outros direitos ou valores idênticos ou
superiores.
5ª.
A limitação ou inibição do exercício dos direitos descritos na conclusão
anterior só pode operar pela via da acção judicial, em processo comum civil ou
penal, com todas as garantias de defesa predisposta na lei constitucional e
ordinária – substantiva e processual –, quanto a esta ou seja, e quanto à lei
ordinária, como decorre, “inter alia”, do disposto nos arts. 69º, 345º.1 e 354º
do CC e arts. 485º e 1510º do CPC.
Atento o disposto nessas normas, a confissão dos factos por falta de
contestação, mormente quando esta é desentranhada dos autos por falta da lista
dos 5 maiores credores, que não intervêm na fase declarativa do processo,
prevista na norma em apreço, é inconstitucional porque aqueles direitos são
indisponíveis, e os factos que podem ser causa da sua limitação ou inibição têm
que ser judicativamente apurados pelo Tribunal competente.
6ª.
As normas em apreço neste recurso são produto da ideologia económica que
pontifica no nosso País, em que a lógica da concentração capitalista, mormente
do capitalismo financeiro, sobrepoja a lógica de uma sociedade assente nos
valores da Pessoa Humana (Humanismo), e foram induzidas, como todo o Código que
as acolhe, pela pressão dos grandes grupos económicos e financeiros, que vêm
generalizando e alastrando a situação de pobreza e proletarização do povo
português, contra a letra e o espírito da Constituição. Essas normas, bem como a
lei que as acolhe, não têm qualquer correspondência com a consciência colectiva
ético-jurídica do povo português que, na sua imensa maioria, referenda
diariamente a filosofia constitucional.
7ª
As disposições dos nºs 2 e 5 do art. 30º do CIRE violam:
a) O princípio da unidade do sistema jurídico, com referência ao art. 13º da
Constituição, porque cria normas especiais que colidem com as normas
substantivas e processuais de direito geral, sem qualquer fundamento que
justifique a diferença;
b) o princípio da proporcionalidade, porque não existe qualquer razão que as
funde, ou seja, não há direito ou interesse de igual ou superior valor, que
justifique a quebra de direitos de defesa e a ficção da confissão de factos que
atingem direitos fundamentais do cidadão;
c) o art. 1º da CRP, porque tal forma de legislar é incompatível com as bases do
ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana, a justiça e a solidariedade.
d) o art. 2º da CRP, porque incompatível com a ideia e princípio de direito;
e) Os arts. 31º, 202°.1 e 204°.1 da CRP, porque é forma de alienar a soberania
popular aos desígnios do poder económico, e de condicionar os tribunais no
exercício da administração da justiça em nome do povo;
f) O art. 13º da CRP, porque não respeitam a dignidade social e prejudicam o
direito de defesa daqueles a quem é imputada a situação de insolvência;
g) Os arts. 25º.1 e 26º.1 da CRP, porque enfraquecem a defesa dos direitos
referidos na conclusão 4ª.
Termos em que o disposto nos nºs 2 e 5 do art. 30º do CIRE, devem ser julgados
inconstitucionais”.
A recorrida, A., S.A., contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
A admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do
artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso – depende da decisão
recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões
normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Só quando a norma aplicada for relevante para a decisão da causa é que se
justifica a intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso.
Na verdade, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade dispõe de
uma peculiar natureza incidental e desempenha uma função instrumental em termos
de o conhecimento das questões de constitucionalidade só ser devido nos casos
em que a decisão a tomar possa interferir utilmente no julgamento da questão de
mérito.
Apesar da redacção da decisão da 1ª instância suscitar dúvidas sobre qual foi o
fundamento ou fundamentos que determinaram o desentranhamento da contestação
apresentada pelo requerido no processo de insolvência, o Tribunal da Relação do
Porto, no acórdão recorrido, considerou que a ordem de desentranhamento teve
como fundamento o facto da oposição não vir acompanhada da lista dos cinco
maiores credores, tendo decidido o recurso interposto nessa pressuposição,
socorrendo-se de interpretação do disposto no artigo 30.º, n.º 2 e 5, do CIRE.
Tendo o recurso de constitucionalidade como alvo o acórdão do Tribunal da
Relação do Porto, o resultado da fiscalização de constitucionalidade das normas
ou interpretações normativas do artigo 30.º, n.ºs 2 e 5, do CIRE, pode
determinar uma alteração dos fundamentos do acórdão recorrido e,
consequentemente, do sentido da sua decisão, pelo que importa conhecer do mérito
do recurso interposto.
Relativamente à aplicação do n.º 2, do artigo 30.º, do CIRE, a decisão recorrida
considerou que deve ser desentranhada a oposição que não se mostra acompanhada
de informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido, sem
que seja facultado a este a oportunidade de suprir tal deficiência.
Mercê da instrumentalidade do recurso de constitucionalidade é apenas este
entendimento que deve ser fiscalizado, relativamente ao estatuído no n.º 2, do
artigo 30.º, do CIRE.
2. Do mérito do recurso
Dispõe o artigo 30º, do C.I.R.E.:
1 - O devedor pode, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, à qual é aplicável o
disposto no n.º 2 do artigo 25.º.
2 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o devedor junta com a oposição,
sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão
do requerente, com indicação do respectivo domicílio.
3 - A oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se
na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na
inexistência da situação de insolvência.
4 - Cabe ao devedor provar a sua solvência, baseando-se na escrituração
legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem
prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º.
5 - Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo
12.º e o devedor não deduzir oposição, consideram-se confessados os factos
alegados na petição inicial, e a insolvência é declarada no dia útil seguinte ao
termo do prazo referido no n.º 1, se tais factos preencherem a hipótese de
alguma das alíneas do n.º 1 do artigo 20.º”.
Na lógica da fundamentação do acórdão recorrido a aplicação da norma constante
do n.º 5, onde se estatui as consequências da falta de oposição do requerido em
processo de insolvência, tem como pressuposto prévio a aplicação à situação
processual sub iudicio da norma constante do n.º 2, onde se estabelece como
sanção para a falta de indicação dos cinco maiores credores do requerido o não
recebimento da oposição, pelo que deve analisar-se, em primeiro lugar, a
constitucionalidade do disposto no n.º 2, na interpretação que dele fez a
decisão recorrida, uma vez que, na hipótese de se concluir por um juízo de
censura, perde utilidade a apreciação da norma contida no referido n.º 5, uma
vez que este deixa de ser aplicável.
Para uma compreensão sistemática do disposto no n.º 2, do artigo 30.º, do CIRE,
há que proceder à sua leitura em conjugação com o que consta dos artigo 23.º,
n.º 2, b), e n.º 3, e 37.º, n.º 3, do mesmo Código.
Na alínea b), do n.º 2, do artigo 23.º, determina-se que o requerente da
declaração de insolvência na respectiva petição deve identificar os cinco
maiores credores do requerido, com exclusão do próprio requerente. E no n.º 3,
do mesmo artigo, permite-se que, não sendo possível ao requerente credor
efectuar essa indicação, este solicite que a mesma seja efectuada pelo devedor
requerido.
É precisamente esta mesma identificação dos cinco maiores credores, acrescida da
indicação do domicílio destes, que o n.º 2, do artigo 30.º, impõe que o
requerido junte com a oposição deduzida ao pedido de declaração de insolvência.
E o artigo 37.º, n.º 3, ao estabelecer um modo de citação privilegiada da
sentença que venha a declarar a insolvência do requerido dos cinco maiores
credores conhecidos, com exclusão do requerente – citação pessoal ou carta
registada conforme tenham residência habitual, sede ou domicílio em Portugal -,
revela a finalidade da exigência daquela informação.
Esta forma privilegiada de chamamento dos cinco maiores credores do requerido
aos termos do processo de insolvência tem origem no anterior Código dos
Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (CPEREF).
No domínio deste Código, logo após a instauração do processo, quer este
assumisse a modalidade da recuperação de empresa ou da falência, e desde que não
houvesse motivos para indeferimento liminar da petição, era de imediato citado
não só o devedor, mas também a generalidade dos credores – ou só estes no caso
de apresentação à falência - para se pronunciarem sobre o pedido. A intervenção
da generalidade dos credores na fase anterior à declaração de falência resultava
duma visão universal do processo de falência em toda a sua extensão, incluindo a
sua fase declarativa, contrariamente ao que sucedia no anterior regime previsto
no Código de Processo Civil.
Para ser possível a citação do maior número de credores, deveria o devedor,
quando fosse o requerente, apresentar a relação de todos os credores e
respectivos domicílios, com a indicação do montante dos seus créditos, datas de
vencimento e garantias de que beneficiavam (artigo 16.º, a), do CPEREF), e
quando o requerente fosse um credor ou o Ministério Público deveriam estes
oferecer todos os elementos que possuíssem relativamente ao passivo e activo do
devedor, o que contemplava necessariamente a indicação dos credores conhecidos
(artigo 17.º, n.º 1 e 3, do CPEREF).
Na sua versão original, o CPEREF previa que o devedor e os dez maiores credores
conhecidos fossem citados pessoalmente, enquanto os restantes credores eram
chamados por edital (artigo 20º, n.º 3), tendo o Decreto-lei n.º 315/98, de 20
de Outubro, reduzido o número de credores citados pessoalmente para cinco.
Pretendia-se deste modo assegurar o conhecimento efectivo pelos credores mais
importantes do pedido de declaração de falência do devedor, de modo a estes
terem a possibilidade de se oporem a tal pretensão, sendo consideradas as suas
razões.
Mas o CIRE encarou a fase declarativa do processo de insolvência numa
perspectiva diferente, retomando o figurino do regime do processo especial de
falência previsto no Código de Processo Civil, vigente até à aprovação do
CPEREF. Como esclarecem CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “agora a fase
inicial do processo que se desenrola até à prolação da sentença declaratória de
insolvência, obedece à estrutura geral da acção declarativa comum,
desenvolvendo-se com carácter restrito e privado, entre demandante e demandado,
dispensando-se por isso, a audição de quem quer mais que seja nos casos de
apresentação do devedor (cfr. art.º 28.º), visto que, aí, não há sequer esta
dicotomia. Todos os outros envolvidos apenas são chamados a intervir, após a
declaração de insolvência, não já para se pronunciarem sobre o estado do
devedor, mas, simplesmente, para exercerem os direitos que a nova situação lhes
confere.” (in. “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”,
vol. I, pág. 166, da ed. de 2005, da Quid iuris).
Apesar dos credores não requerentes não serem agora citados para intervirem
nesta fase inicial do processo de insolvência, sendo apenas citados para
reclamarem os seus créditos após a declaração de insolvência, manteve-se a
forma privilegiada de citação para os cinco maiores credores (artigo 37.º, n.º
3, do C.P.C.), obrigando-se as partes da fase declarativa, mas sobretudo o
devedor, a fornecerem antecipadamente (na fase de apresentação dos articulados)
a sua identificação de modo a que, declarada a insolvência, se possa proceder de
imediato à sua citação pessoal ou por carta registada, caso residam no
estrangeiro (esta obrigação não constava, contudo, do Anteprojecto de Código que
acompanhou a Proposta de Lei de Autorização Legislativa).
Entendeu o legislador sancionar a falta desta indicação pelo devedor no
articulado de oposição com o não recebimento da oposição, tendo o acórdão
recorrido entendido que esta sanção deve ser aplicada sem sequer se dar
oportunidade ao devedor contestante de suprir essa falta.
É este entendimento do acórdão recorrido, cuja conformidade com os parâmetros
constitucionais convocáveis cumpre verificar. Nesta tarefa, o Tribunal
Constitucional não está limitado às normas ou princípios constitucionais
invocados pelo recorrente.
A garantia da via judiciária estatuída no artigo 20.º, da C.R.P., conferida a
todos os cidadãos para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos, abrange não só a atribuição do direito de acção judicial, mas também
a garantia de que o processo, uma vez iniciado, deve seguir as regras de um
processo equitativo, conforme impõe o n.º 4, do referido artigo 20.º.
No domínio do processo civil, onde se insere o processo especial de insolvência,
avulta a regra do contraditório e da proibição da indefesa que lhe está
associada, donde resulta, na sua acepção primária, que não seja
constitucionalmente legítima a actuação de uma norma que não conceda à parte
demandada oportunidade de deduzir a sua defesa, acabando esta por se ver
confrontada com uma decisão condenatória, cujos fundamentos de facto ou de
direito não teve possibilidade de contraditar (vide, sobre o princípio do
contraditório em processo civil, Lopes do Rego, em “Os princípios
constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade, dos ónus e
cominações e o regime da citação em processo civil”, em “Estudos em homenagem ao
Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa”, pág. 836 e seg., Lebre de Freitas, em
“Introdução ao processo civil”, pág. 96 e seg., da ed. de 1996, da Coimbra
Editora, e Jorge Miranda, em “Constituição e processo civil”, em “Direito e
Justiça”, vol. VIII, tomo 2, pág. 19 e seg.).
E, apesar de vigorar, na definição da tramitação do processo civil, uma ampla
discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões
de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre
as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu
incumprimento, isso não significa que as soluções adoptadas sejam imunes a um
controle de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são
funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as cominações ou preclusões
que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas à
gravidade e relevância da falta, nomeadamente pelo seu carácter irremediável ou
definitivo, impossibilitador de qualquer ulterior suprimento (vide, neste
sentido, Lopes do Rego, na ob. cit., pág. 839 e seg.).
Tendo o CIRE optado por manter a citação pessoal ou por carta registada dos
cinco maiores credores, apesar da intervenção destes ocorrer apenas na fase de
reclamação de créditos após a declaração de insolvência, tal como sucedia no
regime do Código de Processo Civil anterior à aprovação do CPEREF, revela-se
adequada a exigência de que o devedor informe antecipadamente o tribunal sobre
os elementos identificativos dos seus cinco maiores credores, uma vez que se
trata de um ónus de fácil cumprimento, considerando a posição privilegiada do
devedor para prestar tal informação, permitindo, assim, que aquela citação
ocorra em data próxima após a declaração da falência.
E quanto ao momento em que deve ser prestada esta informação, é compreensível,
por razões de simplicidade, que tenha sido escolhido o da apresentação da
oposição pelo devedor, quando este não é o requerente da insolvência, uma vez
que esta fase declarativa não admite outros articulados, para além da petição
inicial e da oposição, seguindo para julgamento logo após a dedução desta,
quando a haja (artigo 35.º, do CIRE). Aí, se for declarada a insolvência, haverá
que designar-se logo prazo para a reclamação de créditos, sendo citados os
cinco maiores credores conhecidos, com exclusão do que tiver sido requerente
(artigos 36º, al. j), e 37.º, n.º 3, do CIRE).
Pode-se, pois, concluir que o ónus estabelecido a cargo do devedor revela-se
funcionalmente adequado aos fins do processo, não sendo uma exigência puramente
formal, arbitrariamente imposta, sem qualquer sentido útil para a tramitação
processual, nem dificulta de modo excessivo ou intolerável a actuação
procedimental imposta aos intervenientes processuais.
Mas ao contrário do CPEREF que não previa qualquer cominação específica para a
falta de indicação pelo requerente dos credores a citar, o CIRE estabeleceu como
cominação para a falta de cumprimento deste ónus pelo devedor-requerido, o não
recebimento da oposição por ele apresentada ao pedido de declaração da sua
insolvência.
O não recebimento da oposição tem como consequência a confissão dos factos
alegados na petição inicial, nos termos do n.º 5, do artigo 30.º, do CIRE (vide,
neste sentido, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, na ob. cit., pág. 171),
sendo a insolvência declarada se esses factos preencherem a hipótese de alguma
das alíneas do n.º 1, do artigo 20.º, do CIRE (n.º 5, do artigo 30.º, do CIRE),
o que copia a solução geral dada pela lei processual civil para a revelia
operante (artigo 484.º, n.º 1, do CPC), devendo, contudo, ter-se presente que os
factos enumerados nas referidas alíneas do n.º 1, do artigo 20.º, são meramente
indiciários duma situação de insolvência (vide, neste sentido, Carvalho
Fernandes e João Labareda, na ob. cit., pág. 132, e Lebre de Freitas, em
“Pressupostos objectivos e subjectivos da insolvência”, em Themis, número
especial de 2005, pág. 17-18).
Estamos perante a previsão duma pesada cominação para a falta de cumprimento do
dever de indicar os cinco maiores credores de modo a permitir a sua posterior
citação pessoal ou por carta registada para reclamação de créditos – o não
recebimento da oposição apresentada pelo devedor requerido, com a consequente
confissão dos factos alegados pelo requerente para fundamentar a declaração de
insolvência do requerido. Esta cominação retira à parte demandada a
possibilidade da sua defesa ser valorada, acabando esta por se ver confrontada
com uma decisão, cujos fundamentos de facto e de direito não tiveram em
consideração a oposição por ela manifestada.
Aplicando este dispositivo, o acórdão recorrido entendeu que deve ser
desentranhada a oposição que não se mostra acompanhada de informação sobre a
identidade dos cinco maiores credores do requerido, uma vez que não tendo essa
informação sido prestada no momento fixado na lei, tal falta já não é
susceptível de ser suprida.
Ora, não respeitando a falta assim sancionada aos elementos essenciais
componentes da defesa apresentada, mas sim a dados úteis a uma eventual ulterior
fase processual que o legislador, por razões de simplicidade e celeridade,
entendeu deverem ser prestados conjuntamente com a oposição ao pedido de
declaração de insolvência, a aplicação fulminante de tal cominação revela-se
flagrantemente desproporcionada à falta cometida.
Na verdade, os motivos que conduziram o legislador a associar a prestação da
informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido à
apresentação da oposição por este são incapazes de justificar que as
consequências do incumprimento daquela prestação incidam de forma tão drástica
sobre o direito do requerido se defender.
A concordância prática entre os valores da simplicidade e celeridade processual
e o respeito pelo princípio da proibição da indefesa nesta situação tem de ser
possível, sem necessidade de se chegar ao extremo de, em desproporcionada
homenagem àqueles valores, se sacrificar completamente este princípio
fundamental do direito processual.
E mesmo que se entenda que a informação sobre a identidade dos cinco maiores
credores também poderá ser utilizada pelo juiz para a sua audição oficiosa na
audiência de julgamento, para apuramento dos factos subjacentes à emissão do
juízo de insolvência, todas as considerações acima efectuadas reveladoras duma
visível desproporção entre a sanção cominada e a falta cometida, continuam a ser
válidas. Respeitando esta utilidade na prestação da informação em causa ao
domínio da prova e não ao da exposição dos fundamentos da acção e da defesa
perante o tribunal, continua a sua associação aos articulados, designadamente ao
de oposição, a apoiar-se em meras razões de simplicidade e celeridade que, como
já se referiu, não são suficientes para justificar uma preclusão irremediável do
direito à defesa.
Tendo-se evidenciado que a cominação prevista no n.º 2, do artigo 30.º, do CIRE,
para a falta de indicação dos cinco maiores credores conjuntamente com a
oposição deduzida, é manifestamente desproporcionada, sobretudo quando nem
sequer se admite a possibilidade do suprimento dessa falta, deve considerar-se
que a interpretação efectuada pela decisão recorrida viola a exigência
constitucional do processo equitativo, constante do artigo 20.º, n.º 4, da
CRP., julgando-se procedente o recurso.
Considerando-se inconstitucional a interpretação normativa do artigo 30.º, n.º
2, do CIRE, perfilhada pelo acórdão recorrido, o que obriga à reformulação desta
decisão, fica prejudicada a apreciação da invocada inconstitucionalidade do n.º
5, do mesmo artigo, uma vez que a sua aplicação resultava do sentido daquela
interpretação normativa aqui julgada inconstitucional.
*
Decisão
Nestes termos decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo,
consagrado no n.º 4, do artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, a
norma do artigo 30.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas, na interpretação segundo a qual deve ser desentranhada a oposição que
não se mostra acompanhada de informação sobre a identidade dos cinco maiores
credores do requerido, sem que a este seja facultada a oportunidade de suprir
tal deficiência.
b) Julgar prejudicada a apreciação da constitucionalidade da norma contida no
n.º 5, do artigo 30.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
c) Conceder provimento ao recurso;
d) Ordenar a reforma da decisão recorrida em função do precedente juízo de
inconstitucionalidade.
*
Custas pela recorrida, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 19 de Novembro de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por não poder acompanhar o julgamento do acórdão segundo o qual a
norma constitucionalmente impugnada viola o direito constitucional a um processo
equitativo.
A tese que fez vencimento abonou-se no entendimento de que a
cominação estabelecida no n.º 2 do art.º 30.º do CIRE - não recebimento da
oposição, concretizado através de desentranhamento do respectivo articulado,
quando recebido pela secretaria – “para a falta de indicação dos cinco maiores
credores conjuntamente com a oposição, é manifestamente desproporcionada,
sobretudo quando nem sequer se admite a possibilidade de suprimento dessa
falta”.
Para nós, porém, o ónus de juntar, com a oposição, a lista dos cinco
maiores credores do devedor não se configura manifestamente como excessivo, em
termos de dificultar, intoleravelmente, a sua defesa.
De facto, não se antolha aqui, em abstracto, qualquer razão que
permita considerar particularmente gravoso o cumprimento desse ónus, quer em
face das menções que são legalmente exigidas – apenas o nome e o domicílio do
credor –, quer também, perante a constatação de que, como relevou o Tribunal a
quo, se trata de “algo que é do conhecimento pessoal do devedor e que este
poderá facilmente elaborar, no prazo da oposição (10 dias), mesmo que não tenha
contabilidade organizada”.
Estamos perante factos que são do conhecimento, pessoal e imediato,
do devedor, que não carecem de qualquer esforço de investigação, nomeadamente,
para apuramento do concreto montante de cada crédito, pois este não integra a
exigência legal: não conseguimos lobrigar como é que não seja de exigir de
qualquer devedor que este saiba identificar, imediatamente, quem são os seus
cinco maiores credores.
Pelo reduzidíssimo número de credores, cuja indicação é pedida, e
pela quota de influência que têm os respectivos créditos na sua situação
económico-financeira, qualquer pessoa, no lugar de devedor, imediatamente os
pode identificar sem qualquer esforço.
Depois, para o cumprimento de um ónus de tão facílimo cumprimento, o
devedor dispõe de largos 10 dias!
Por outro lado, a referida exigência manifesta-se, também, funcional
e finalisticamente, adequada ao processo em causa, designadamente, quando se
considere a conveniência do conhecimento desses elementos antes de ser proferida
a decisão que declare a insolvência.
Embora, no novo regime do CIRE esses cinco maiores credores (ou
quaisquer outros) não tenham de ser citados para se pronunciarem sobre o pedido,
a par do devedor cuja insolvência é pedida, no caso de acção intentada por um
credor (em contrário do regime anteriormente vigente), como dá nota o acórdão,
tal não significa que a sua identificação não se apresente como necessária e
adequada para uma justa composição do conflito.
Para o CIRE, o processo de insolvência passou a ser um processo de
interesse público.
A rápida satisfação possível dos credores do insolvente corresponde,
nos dias de hoje, a uma necessidade do funcionamento saudável e sustentado da
economia de mercado.
Não está, apenas, em causa a protecção do interesse particular de
cada credor, mas, também, do interesse público de que a economia não seja
tolhida pela inacção, em tempo actual, dos instrumentos jurídicos que regulam as
relações económico-financeiras entre os seus agentes.
A celeridade, na cobrança dos créditos vencidos, constitui,
insofismavelmente, um meio privilegiado de realizar esses interesses.
Ora, um dos principais objectivos prosseguidos pelo CIRE foi,
precisamente, conseguir os ganhos possíveis da celeridade, eliminando,
nomeadamente, actos processuais.
A não citação dos credores, antes da sentença de declaração de
insolvência, mas apenas depois, e, aqui, já, para reclamarem os seus créditos,
explica-se por esta razão.
Com essa não citação, e os incidentes a que a sua realização poderia
dar lugar, obtêm-se fortes ganhos de celeridade.
Mas, se o devedor deduz oposição aos fundamentos de insolvência,
alegados por um credor requerente, então, tem todo o sentido que ele indique,
por mor dos princípios do due processo off law, os seus cinco maiores credores,
a fim de permitir ou possibilitar ao tribunal um acesso, facilitado e atempado,
a fontes de informação, relativamente a factos com manifesto interesse para a
averiguação do preenchimento dos pressupostos da declaração da insolvência.
Como é consabido, já no domínio do CPEREF se impunha ao juiz o
poder-dever de “realizar as diligências necessárias à averiguação dos
pressupostos invocados e recolher os elementos que o habilitem a decidir” (assim
rezava o artigo 24.º, com redacção aproximada à estabelecida no § 5 –
Verfahrensgrundsätze – da Insolvenzordnung alemã).
Actualmente, o artigo 11.º do CIRE consagra o princípio do
inquisitório no processo de falência, nos termos do qual o juiz pode decidir com
base em factos que não tenham sido alegados pelas partes, o que, como referem
Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação
de Empresas Anotado, vol. I, Lisboa, 2006, p. 102), “contem implícita a
faculdade do juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem
como recolher as provas e informações que entender convenientes”.
Ora, estando a operacionalidade deste princípio influenciada por um
obstáculo de monta, dados os “prazos muito apertados legalmente impostos ao juiz
para a prática dos pertinentes actos que lhe incumbem” (Luís Carvalho Fernandes
e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado,
vol. I, Lisboa, 2006, pp. 102-103), bastando referir a este propósito o facto
de a audiência de discussão e julgamento dever ser “logo marcada (...) para um
dos cinco dias subsequentes” e do juiz ter de proferir a sentença no prazo de
cinco dias (cf. os n.os 1, 4 e 8 do artigo 35.º do CIRE), bem se compreende que
o dever de indicação por parte do devedor seja sujeito a uma sanção que o demova
de apresentar uma oposição para puro ganho de tempo.
Daí que o referido ónus se deva considerar justificado no plano
endoprocessual.
Não se olvidando que alguns autores, como Luís Carvalho Fernandes e
João Labareda (op. cit., p.171), consideram que a disposição em causa consagra
uma “solução radical e dura”, há-de convir-se que, mesmo defronte da
consequência processual, aí implicada, o intuito compulsório subjacente à
teleologia da norma se releva coerente com a tutela dos interesses mencionados,
com o grau de exigência subjacente ao cumprimento do referido ónus e com a
manifesta previsibilidade da sanção processual (cf., Carlos Lopes do Rego “Os
princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos
ónus e cominações e o regime da citação em processo civil, in Aa. Vv., Estudos
em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 846
e ss.).
Nessa óptica, ponderando em particular as exigências impeditivas do
estabelecimento de ónus processuais de carácter excessivo ou desproporcionado,
dir-se-á que a satisfação da condição legal de que depende o exercício do
direito de defesa não representa um constrangimento excessivo ou de difícil
realização, pelo que, fora dos casos em que estejam preenchidos os pressupostos
do justo impedimento, o não recebimento da oposição terá de imputar-se a uma
actuação voluntaristicamente não diligente por parte do devedor.
A meu ver, o acórdão invadiu o terreno do legislador, impondo a sua
leitura sobre a proporcionalidade entre os meios e fins visados pela medida
legislativa, fora dos casos de erro manifesto ou de evidência.
É que continuamos a ter por boa a doutrina que foi sufragada no
Acórdão n.º 187/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:
“[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente
da administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do
legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se
importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é
social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem
fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
[…] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua
avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os
efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias
geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de
apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem
sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a
posição do legislador.
[…] a própria averiguação jurisdicional da existência de uma
inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma
determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de
apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve
deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e
economicamente complexa.”.
Benjamim Silva Rodrigues
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