|
Processo n.º 773/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – AA, melhor identificado nos autos, reclama para o Tribunal
Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, na sua actual redacção (LTC), do despacho proferido pelo
Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu o recurso de
constitucionalidade, interposto do Acórdão de 15 de Julho de 2008, proferido
nesse Tribunal.
2 – Com interesse para a decisão, colhe-se dos autos:
2.1 – Inconformado com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
que julgou improcedente o recurso interposto do Acórdão prolatado no 1.º Juízo
Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, que condenara o arguido na pena de 16
(dezasseis) anos de prisão, o ora reclamante interpôs recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, que sintetizou as conclusões impugnatórias, nos seguintes
termos:
“1) Deficiências das gravações das provas, nos mesmos termos em que a
questão foi colocada no recurso para o Tribunal da Relação, invocando que «está
em causa a garantia do duplo grau de jurisdição e o cerne dos direitos e
garantias de defesa do arguido, como consagrados no artigo 32°, nº 1 e nº 5º da
Constituição da República Portuguesa, tal como, visivelmente, no artigo 6º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
Argumenta que sempre será inconstitucional admitir-se valor ao julgamento quando
não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o
arguido de poder impugnar devidamente a decisão proferida sobre a matéria de
facto, por violação do artigo 32°, nºs 1 e 2 da Constituição da República
Portuguesa (Conclusões 1.ª a 12.ª).
2) Inexistência das duas queixas que tenham sido tempestivamente apresentadas
por parte de CC pelo alegado crime de ameaças e, noutro momento, pelo alegado
crime de violação de domicilio, falta de legitimidade e legalidade no
procedimento criminal – questões também já suscitada na Relação (Conclusões 13.ª
a 17.ª).
3) Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP relativamente à condenação pelos crimes de
sequestro, coacção grave, violação e homicídio qualificado na forma tentada
contra a sua ex-namorada BB (Conclusões 18.ª a 22.ª).
4) Violação do art. 127.º e inconstitucionalidade da interpretação e aplicação
do desse princípio, «no sentido de que o julgador pode, sem qualquer fundamento
concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender na sua
decisão factos objectivos cientificamente atestados». (23.ª a 36.ª, 37.ª a 42.ª
(relativamente ao crime de violação) e também 59.ª, tudo isto de mistura com
alegação de vícios do art. 410.º, n.º 2: erro notório e insuficiência da matéria
provada para a decisão).
5) Inconstitucionalidade da interpretação do artigo 349° do Código Civil e do
artigo 125° do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal, na
falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de
apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado facto, por violação
do artigo 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (Conclusão
43.ª).
6) Violação do princípio in dubio pro reo e princípio da presunção de inocência,
consagrado no artigo 32°, n° 2, da Constituição da República Portuguesa, a
propósito dos crimes de ameaça, de violação de domicílio e de violação, de
mistura com vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP: alíneas b) e c) – Conclusões
44.ª a 47.ª).
7) Intenção de matar , contestação da “frieza de ânimo” e novos vícios do art.
410.º, n.º 2), violação do art. 127.º, do art. 32.º da Constituição (Conclusões
48.ª a 62.ª), 87.ª a 89.ª).
8) Atenuante de bom comportamento e a convicção do tribunal (Conclusões 63.ª a
67.ª).
9) Limitação de testemunhas de defesa em atropelo à lei e às garantias
constitucionais do arguido (art. 283.º, n.º 3, alínea d) do CPP e 32., n.º 1 e 2
da Constituição) – Conclusões 68.ª a 75.ª).
10) Impugnação do dolo eventual no crime de homicídio (violação da presunção de
inocência e do in dubio pro reo (Conclusões 76.ª a 82.ª).
11) Qualificação dos factos pelo crime de homicídio negligente (negligência
consciente) ou por ofensas à integridade física do art. 144.º do CP, ou ofensas
à integridade física graves, a título de negligência consciente, nos termos do
artigo 148°, nºs 1 e 3, do mesmo diploma legal (Conclusões 83.ª a 86ª).
12) Hipótese do crime de homicídio privilegiado, do art. 133.º do CP,
considerando todo o circunstancialismo anterior e actual aos acontecimentos de 2
de Março de 2005 (Conclusões 90.ª e 91.ª)..
13) Medida da pena: confissão de alguns factos, o que não podia deixar de ser
inferido pelo exame crítico das provas; antecedentes criminais; circunstâncias
de relacionamento concreto entre o arguido e a vítima, criticando-se o
fundamento de prevenção geral invocado e invocando-se a propósito a violação do
art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; tempo passado pelo arguido
na prisão e comportamento irrepreensível do arguido (restantes conclusões)”.
2.2 – Analisando as questões equacionadas pelo recorrente, o Supremo
Tribunal de Justiça decidiu:
“(...)
Conceder provimento parcial à questão prévia do Ministério Público e,
em consequência rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso interposto pelo
arguido AA relativamente a todos os crimes com excepção dos crimes de violação e
homicídio;
- Rejeitar, por inadmissibilidade, o mesmo recurso relativamente às questões
interlocutórias (deficiência das gravações; inexistência de queixa relativamente
ao crime de violação de domicílio; limitação de testemunhas);
- Rejeitar por manifesta improcedência o mesmo recurso relativamente às questões
da matéria de facto e dos vícios do art. 410º, n.º 2, do CPP, violação do
princípio da livre apreciação da prova (arts. 127.º e 125.º do CPP), violação do
princípio in dubio pro reo, questão da intenção de matar, qualificação do crime
de homicídio, e improcedente quanto à medida das penas dos crimes de violação e
homicídio;
- Conceder parcial provimento ao recurso no tocante à medida da pena única, pelo
que se revoga nessa parte a decisão recorrida e se condena o arguido na pena
única de 14 (catorze) anos de prisão”.
Esta decisão abonou-se nos seguintes fundamentos:
“(...)
9.1. Questão prévia
9.1.1. O Ministério Público levantou a questão da recorribilidade da decisão
relativamente a todos os crimes pelos quais o arguido foi condenado, com
excepção do crime de homicídio, defendendo a sua rejeição com base em não terem
sido aplicadas penas, por cada um de tais crimes, superiores a 8 anos de prisão
e terem sido confirmadas pela Relação de Coimbra, pelo que só o crime de
homicídio, cuja pena aplicada foi de 10 (dez) anos de prisão, e a pena única
(cúmulo jurídico de todas as penas aplicadas) deveriam ser conhecidos.
A decisão da 1.ª instância foi proferida no domínio da lei anterior às
alterações introduzidas no Código de Processo Penal (CPP) pela Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, mas a decisão da Relação foi já proferida no domínio da lei
nova.
No âmbito da lei anterior, era conhecida a jurisprudência deste STJ a respeito
do art. 400, n.º 1, alínea f) do CPP, pois é tal preceito que está em causa na
vertente situação. O STJ só conhecia, em recurso de acórdãos proferidos pelas
relações, que confirmassem decisão condenatória da 1.ª instância, dos crimes,
singularmente considerados, cuja pena aplicável fosse superior a 8 anos. É que
de acordo com o disposto no referido preceito, não era admissível recurso de
acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que
fosse aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso
de infracções. Entendia-se que era como se cada um dos referidos crimes fosse
objecto de um processo, sendo a competência do tribunal determinada por conexão,
nos termos do art. 25.º do CPP. Se cada um dos crimes tivesse sido julgado
separadamente no processo atinente a esse crime, não haveria lugar a recurso
para o STJ, por força de ao crime não ser aplicável pena de prisão superior a
cinco anos.
Esta jurisprudência, que podia dizer-se maioritária, senão mesmo uniforme, tinha
uma variante na 5.ª Secção Criminal: a de que o Supremo Tribunal podia (devia)
rever a pena única aplicada num concurso de crimes, quando a pena aplicável,
segundo os critérios do art. 77.º, n.º 2 do CP, tivesse um limite máximo
superior a 8 anos. Desse modo, embora não se conhecesse dos crimes cujas penas
singularmente aplicáveis não fossem superiores a 8 anos de prisão e fossem
confirmadas, em recurso, pelas relações, revia-se a pena única nas condições
acima referidas e controlava-se a sua conformidade com os critérios específicos
a que a lei mandava atender para a sua determinação concreta. Isto, claro está,
se tal pena única tivesse sido posta em causa no recurso.
No presente caso, segundo a jurisprudência focada, só dois dos crimes singulares
pelos quais o arguido foi condenado estavam em condições de serem conhecidos, em
recurso, pelo STJ: o crime de homicídio tentado qualificado (arts. 131.º, 132.º,
nºs 1 e 2, alínea i), 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP, quer na
redacção actual, quer na redacção anterior) e o crime de violação, do art.
164.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, também na redacção anterior e na actual,
pois as penas abstractamente aplicáveis a cada um deles ultrapassam os 8 anos de
prisão, tendo em conta o limite máximo aplicável. Também a pena única, segundo a
variante acima focada e que sempre foi perfilhada por esta Secção Criminal,
seria objecto de revisão por este Tribunal, tanto mais que foi impugnada no
recurso.
Na redacção actual do art. 400, n.º 1, alínea f), passou a falar-se em pena
aplicada em vez de pena aplicável e deixou de se fazer referência ao concurso de
crimes.
Art. 400.º
1 – Não é admissível recurso
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8
anos.»
Deste modo, por um lado, restringe-se o âmbito da recorribilidade, na medida em
que a referência, agora, não é a pena aplicável, mas a pena efectivamente
aplicada e, por outro lado, amplia-se essa recorribilidade, ao menos em relação
àquela corrente jurisprudencial que atendia somente aos crimes singulares,
independentemente do concurso de crimes, não admitindo a revisão da decisão,
mesmo em relação à pena única que fosse superior a 8 anos, quando todos os
crimes, singularmente considerados, fossem puníveis com pena não superior a esse
limite e a Relação tivesse confirmado a condenação.
Actualmente, se é a pena aplicada que constitui a referência da recorribilidade,
essa pena tanto pode ser a referida a cada um dos crimes singularmente
considerados, como a que se reporta ao concurso de crimes (pena conjunta ou pena
única). O legislador aferiu a gravidade relevante como limite da dupla conforme
e como pressuposto do recurso da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de
Justiça pela pena efectivamente aplicada, quer esta se refira a um crime
singular, quer a um concurso de crimes. O que significa que o STJ está obrigado
a rever as questões de direito que lhe tenham sido submetidas em recurso ou que
ele deva conhecer ex officio e que estejam relacionadas com os crimes cuja pena
aplicada tenha sido superior a 8 anos de prisão, e também a medida da pena do
concurso, se a aplicada nesse âmbito for superior a 8 anos de prisão, ainda que
os crimes que fazem parte desse concurso, singularmente considerados, tenham
sido punidos na 1.ª instância com penas inferiores ou iguais a tal limite e
confirmadas pela Relação. Dir-se-ia que o legislador, na querela que, a certa
altura, dividiu a jurisprudência sobre a questão da pena aplicável ou pena
aplicada, no recurso das decisões das relações para o STJ, tomou partido por
esta última, embora com um sentido diferente dos termos em que a questão era
jurisprudencialmente colocada, pois, neste domínio, a pena aplicada só era de
tomar em conta para efeitos de (não) recorribilidade para o STJ, se não houvesse
recurso do Ministério Público, caso em que, por força do princípio da “proibição
da reformatio in pejus, a pena aplicada não podia ser agravada, convertendo-se
então na pena aplicável.
Por outro lado, na questão que dividiu a jurisprudência quanto aos poderes de
revisão da pena única, quando aos crimes singulares não coubesse pena superior a
8 anos, mas a pena do concurso excedesse esse limite, dir-se-ia que o legislador
optou, nessa querela, pela tese da revisão da pena única, ou seja, pela
possibilidade de revisão da medida da pena conjunta aplicada a um concurso de
crimes por tribunal de 1.ª instância e confirmada pela Relação, ainda que. a
decisão não fosse recorrível quanto aos crimes singulares.
Uma coisa parece certa: com esta reforma, o legislador pretendeu, em matéria de
recursos, “aliviar a carga” do STJ, acentuando a linha da reforma anterior e
reservando para o Supremo Tribunal os casos de maior gravidade. Desde logo, o
art. 400.º, n.º 1, alínea f), que temos vindo a analisar, ao tomar como
referência da recorribilidade para o STJ a pena efectivamente aplicada, em vez
da pena aplicável, restringiu substancialmente os casos de recurso para o mais
alto tribunal, pois só no caso de ter sido aplicada pena superior a 8 anos de
prisão, que tenha sido confirmada pela Relação, se admite recurso para o STJ –
casos, portanto, que são já de grande gravidade.
E mesmo nos casos de recurso directo do tribunal colectivo para o STJ (art.
432.º, alínea c), foi restringida significativamente a possibilidade desse
recurso, pois, para além da exigência, que vinha já da anterior reforma, de o
recurso visar exclusivamente matéria de direito passar a estender-se também ao
recurso do tribunal de júri, o pressuposto relativo à pena deixou de referenciar
a pena aplicável para passar a referir a pena aplicada. Com efeito, só são
recorríveis para o STJ os acórdãos do tribunal colectivo ou do tribunal de júri,
que, visando exclusivamente matéria de direito, tenham aplicado pena superior a
5 anos de prisão.
Mesmo que se leve em conta que a pena aplicada tanto é a relativa à pena
singular, como à pena conjunta, a possibilidade de recurso directo para o STJ
foi drasticamente restringida, pois só serão passíveis de tal recurso as
decisões do tribunal colectivo ou de júri que isoladamente tenham aplicado por
um crime pena superior a 5 anos ou que, num concurso de crimes, tenham aplicado
uma pena única superior àquele limite, ainda que as penas parcelares aplicadas
sejam iguais ou inferiores a 5 anos. Neste caso, porém, o recurso será restrito
à medida da pena única, a menos que alguma das penas parcelares seja também
superior a 5 anos, caso em que o recurso abrange essas penas parcelares e a pena
conjunta (Acórdão de 02-04-2008, Proc. n.º 415/08, da 3.ª Secção).
Na verdade, seria um contra-senso, na perspectiva focada de restrição do recurso
para o Supremo Tribunal, que o legislador, ao falar de pena aplicada em
concreto, em vez de pena aplicável em abstracto, pretendesse levar o STJ a
conhecer de todos os crimes que formam um concurso de infracções, mesmo que tais
crimes correspondam àquela noção que normalmente se designa de criminalidade
bagatelar ou que, tendo já passado pelo crivo da Relação, e não sendo crimes de
bagatela, viram as respectivas condenações confirmadas por aquela, até um limite
de gravidade tido como razoável (na opção legislativa, 8 anos de prisão), a
partir do qual se justifica a revisão do caso pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Deste modo, como se afirma no Acórdão de 21/10/2007, Proc. n.º 1772/07, da 3.ª
Secção: «Temos, assim, dois momentos possíveis de definição de pena com sujeição
a critérios diferentes: a definição das penas parcelares que modelam a moldura
penal dentro da qual será aplicada a pena conjunta resultante do cúmulo jurídico
e, posteriormente, a definição da pena conjunta dentro dos limites propostos por
aquela. É quanto a nós evidente que as penas parcelares englobadas numa pena
conjunta que está sujeita à regra da dupla conforme só podem ser objecto de
recurso, desde que superiores a 8 anos de prisão. Por outras palavras: dir-se-á
que está, então, em causa a forma como se produziu a pena conjunta do concurso
superior a 8 anos de prisão e não qualquer uma das penas parcelares
relativamente à qual foi cominada pena inferior àquele limite».
Aderindo a esta tese, dir-se-á que a lei actual é, no caso, mais restritiva de
direitos do arguido, pois, tendo a decisão recorrida confirmado a da 1.ª
instância, só admitiria recurso para o STJ relativamente ao crime de homicídio e
à pena conjunta, ao passo que, segundo a lei antiga, admiti-lo-á relativamente
aos crimes de violação (punível em abstracto com pena de 3 a 10 anos de prisão),
ao crime de homicídio qualificado tentado, punível em abstracto com pena de 2
anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, e à pena conjunta.
Ora, a lei nova aplica-se imediatamente, nos termos do art. 5.º do CPP, salvo se
da sua aplicação imediata resultar “agravamento sensível e ainda evitável da
situação processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa” ou
“quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo” (alíneas a) e b)
daquele normativo).
A decisão recorrida foi proferida no domínio da lei nova; porém, a decisão da
1.ª instância foi proferida ainda no domínio da lei antiga, abrindo-se, então,
uma nova fase processual – a fase do recurso – e, nessa altura, o arguido podia
recorrer da decisão da Relação que lhe fosse desfavorável com o âmbito que se
assinalou à lei antiga – um âmbito mais alargado do que o permitido pela lei
nova. Consequentemente, será essa a lei aplicável ao caso, porque da aplicação
imediata da lei nova resulta «agravamento sensível e ainda evitável da situação
processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa».
Deste modo, a questão prévia não é totalmente procedente, devendo aplicar-se ao
caso a lei antiga e, em consequência, conhecendo-se do recurso interposto
relativamente aos crimes de violação, de homicídio e à medida da pena conjunta.
Em contrapartida e logicamente não é admissível o recurso relativamente aos
crimes de coacção grave, de ameaça, de sequestro, dos dois crimes de violação de
domicilio, dos dois crimes de detenção ilegal de arma, do crime de resistência e
coacção sobre funcionário e do crime de evasão.
Em consequência, rejeita-se o recurso relativamente a esses crimes, nos termos
dos arts. 400.º, n.º 1, alínea f), 414.º, nºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1, todos do
CPP, na versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29
de Agosto, com ressalva da revisão da pena conjunta, onde as penas parcelares
aplicadas por esses crimes serão objecto de consideração da pena única, nos
termos do art. 77.º, nºs 1 e 2 do CP.
9.2. Questões interlocutórias
9. 2.1. Relativamente à questão da deficiência das gravações
A deficiência das gravações da prova, no caso de existir, constitui uma mera
irregularidade sujeita à disciplina do art. 123.º do CPP, e portanto devendo ser
arguida pelo interessado no prazo aí estipulado como repetidamente tem afirmado
este Tribunal (Cf. os acórdãos de 15/2/2006, Proc. n.º 4012/05, desta 5.ª
Secção, de 15/2/2006, Proc. n.º 2874/05, da 3.ª Secção e de 13/9/2006, Proc. n.º
1934/06, também da 3.ª Secção). Isto, porque em matéria de nulidades, vigoram os
princípios da legalidade e da tipicidade, ou seja, a violação ou inobservância
das disposições da lei só acarreta nulidade quando esta estiver expressamente
prevista. Nos casos em que a nulidade não for cominada, o acto ilegal é
irregular. Ora, o arguido não suscitou a irregularidade da deficiência das
gravações nos termos e prazo do art. 123.º do CPP, o que implicava a sanação da
irregularidade, se a houvesse.
De qualquer forma, o Tribunal da Relação de Coimbra conheceu da questão,
concluindo, após minuciosa análise, que não se verificou «a existência de
qualquer irregularidade de gravação que possa inquinar a reapreciação da prova.
Trata-se de decisão interlocutória que não põe termo à causa e da qual não é
admissível recurso para o STJ, nos termos do art. 400.º, n.º 1, alínea c) do
CPP, na versão anterior, entendendo-se que «pôr termo à causa» significa que «a
questão substantiva que é objecto do processo fica definitivamente decidida» e,
consequentemente que não põe termo à causa aquela questão que não é impeditiva
de o processo prosseguir para a sua apreciação, por não ser atinente ou conexa
com a questão substantiva ou então que está para além da questão substantiva já
resolvida (cf. acórdão deste STJ de 29/6/2005, Proc. n.º 1845/05 – 3ª, Sumários
dos Acs. STJ, Boletim, n.º 92, p. 101).Por outras palavras: decisão
interlocutória é a decisão que tem como consequência o arquivamento ou
encerramento do objecto do processo, mesmo que se não tenha conhecido do mérito
(entre outros, os Acs. de 21.2.02, proc. n. 131/02-5.ª, de 12/10/03, Proc. n.º
2634/03 – 5.ª e 19/7/2006, Proc. n.º 1949/06 – 3.ª).Na versão actual da alínea
c) do art. 400.º do CPP, não é admissível recurso «de acórdãos proferidos, em
recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo”. Ora
esta expressão não significa outra coisa senão “decisão que põe termo ao litígio
da forma sobredita”. A questão das gravações é uma questão prévia e como tal foi
tratada, não sendo nesse sentido atinente ou conexa com a questão substantiva,
essa sim objecto de apreciação da decisão final.
De forma que: a questão não devia ter sido conhecida, por não ter sido arguida a
irregularidade respectiva; tendo-o sido e partindo do pressuposto que a Relação
dela conheceu legalmente, a decisão não é recorrível para o STJ, pelo que o
recurso é de rejeitar quanto a tal questão.
9.2.2. Inexistência de queixa relativamente aos crimes de ameaça e de violação
de domicílio falta de pressuposto de procedibilidade.
Trata-se também de decisão interlocutória que a Relação conheceu, tendo a
questão sido objecto de decisão anterior da 1.ª instância, que a apreciou em
sede de audiência de julgamento (despachos de fls. 1011 e 1016, constantes da
acta de audiência). Como tal, valeriam para aqui as considerações anteriormente
feitas, se não acrescesse uma outra razão: a de se tratar de questão relativa a
crimes que não admitem recurso para este Tribunal, por força da rejeição do
recurso nessa parte (Cf. ponto 9.1. – parte final).
9.2.3. Limitação de testemunhas de defesa.
Esta questão também foi suscitada e decidida em audiência de julgamento, sem que
o recorrente reagisse por meio do competente recurso. Como tal, transitou em
julgado.
Apesar disso, a Relação sufragou expressamente a decisão da 1.ª instância,
fazendo-o, todavia, por uma razão de reforçar o acerto de tal decisão.
Como tal, esta questão é de rejeitar por manifestamente improcedente.
10. Decisão de fundo
Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP.
10.1. O recorrente arguiu estes vícios a respeito dos crimes de sequestro,
coacção grave, violação de domicílio, ameaça, violação e homicídio.
Só em relação aos dois últimos a questão será conhecida, por força da rejeição
do recurso relativamente aos outros crimes.
Mas diga-se já: esta questão também é claramente para rejeitar por manifesta
improcedência.
Vejamos as conclusões do arguido a tal propósito:
18) Mesmo à partida gravemente coarctado para efeitos de reapreciação da matéria
de facto pelo Tribunal da Relação, não pode o arguido, de forma alguma, se
conformar com a sua condenação pelos crimes de sequestro, coacção grave,
violação e homicídio qualificado na forma tentada contra a sua ex-namorada
BB.19). Como já se dizia perante o Tribunal da Relação em recurso e ora perante
V. Ex.as com atenção para com o teor da decisão sob recurso, apesar de estar o
arguido tão limitado no exercício do direito fundamental de defesa em sede de
matéria de facto pelas falhas comprovadas e de relevo da gravação da prova em
audiência, a verdade é que o próprio teor e termos dos Acórdãos anteriores nessa
matéria pecam, de forma flagrante, pelos vícios previstos no artigo 410°, nº 2,
do Código de Processo Penal. 20) No que se consegue ouvir apenas das respostas
das testemunhas, deparamos com um discurso absolutamente incoerente, ficcionado,
manipulador de BB e suas amigas, não hesitando aquela, suposta vítima de
violação, em apelidar o arguido de mero amigo ou parceiro com quem mantinha
relações íntimas, tendo o mesmo sido referido pelas suas amigas, que
manifestaram expressamente nunca terem gostado do miúdo que atrapalhava as suas
saídas nocturnas e que, para elas, o facto de BB manter relações sexuais com ele
não significava um namoro a sério, mas não mais do que ir com um amigo ao café.
21) É desde logo contrário à lógica e senso comum, assim perceptível por
qualquer pessoa – diga-se o homem minimamente atento – que se possa dar entender
que as palavras da ofendida BB, que se disse vítima de sequestro, coacção grave
e violação, possam ser isentas e servir por si, à revelia da restante prova e na
falta de prova, para condenar o arguido por tudo o que dissesse e disse. 22) A
prova documental – que existe nos autos -foi totalmente desconsiderada pelo
Tribunal, com decisões contrárias ao seu teor, destacando-se a apreciação, que
deveria sim ter sido vinculada e correcta, do Relatório do Conselho Nacional de
Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls.
736 e ss dos autos. 23) Interpretação e aplicação do princípio constante do
artigo 127° do Código de Processo Penal no sentido de que o Julgador pode, sem
qualquer fundamento concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou
desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados é
inconstitucional, por violação do artigos 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da
República Portuguesa. 24) Para além de desconsiderar factos e elementos
probatórios carreados aos autos, sem fundamento objectivo e plausível, o
Tribunal selecciona e interpreta, como bem quer, alguns outros elementos
probatórios, de forma puramente subjectiva e, assim, arbitrária e desconforme ao
propósito de prossecução da descoberta material. 25) O princípio da livre
apreciação da prova tem, inevitavelmente, limites, desde logo os que decorrem
das regras da experiência comum e do propósito maior da descoberta da verdade,
com vista ao do fim último da realização de Justiça. 26) E interpretação do
artigo 127° do Código de Processo Penal no sentido de que a livre apreciação da
prova corresponde a uma valoração meramente subjectiva por forma a suprir as
insuficiências dos elementos probatórios, ou desconsiderando e contrariando a
prova produzida, sem fundamento concreto e objectivo, é desconforme à
Constituição da República Portuguesa, por violação do artigo 32°, nºs 1 e 2
deste diploma fundamental. 27) Os vícios na apreciação da prova são tão graves e
evidentes no caso e na decisão em apreço que a verdade é que qualquer pessoa –
nem necessariamente o homem médio minimamente atento – que tome e tenha já
tomado contacto com esta condenação logo conclui pela sua incoerência e
injustiça. 28) Sobre os alegados crimes de sequestro e coacção grave e, acima de
tudo, violação contra a demandante BB, tal como os alegados crimes de ameaças e
violação de domicílio contra CC, pedimos nós a V. Excelências se conheça dos
vícios previstos no artigo 410°, nº 2, a), b) e c), do Código de Processo Penal
que efectivamente ressaltam quer da decisão ora sob recurso, quer da decisão de
1a instância que naquela se reproduz e se dá como correcta. 29) Relativamente às
testemunhas de AA, a predisposição para não atender a qualquer coisa que pudesse
ser dita pelas mesmas sobre os factos evidenciou-se logo com a imposição por
parte do Tribunal (que, ainda por cima, não ficou gravada) de que o arguido
escolhesse das 20 apresentadas apenas 5, as abonatórias, não tendo todas as
demais sido chamadas, como se apenas ao arguido devesse interessar a descoberta
da verdade e a boa decisão da causa. 30) O Tribunal efectivamente não
considerou, sem argumento plausível para o efeito e respeito pela equitatividade
processual, tudo o que disseram aquelas duas e restantes testemunhas de defesa
sobre a vida e relacionamento do casal AA e BB. 31) Não considerou o que
efectivamente disseram algumas das próprias testemunhas de acusação – os
vizinhos da mãe de BB – que, com isenção, refutaram qualquer tipo de investida
do arguido contra a BB ou mãe desta, sequer presença que se notasse perto da
casa destas, contrariando directamente o que aquelas disseram e quiseram dar a
entender. 32) O Tribunal deixou de atender, sem justificação, a factos concretos
e perfeitamente contextualizados, sustentados por elementos de prova, que
refutam por inteiro qualquer acto de coacção e/ou sequestro de BB enquanto
namorava com o arguido, incorrendo, assim, para além do erro notório que se
evidencia no texto do Acórdão, no vício de insuficiência para a decisão sobre a
matéria de facto. 33) Invoca o Tribunal as mensagens que constam do auto de
leitura do telemóvel de BB, de fls. 152 e ss, mas, atenta a globalidade dessas
mensagens – como constantes dos autos – e o contexto amoroso, não compreendemos
o valor que se pretendeu atribuir a apenas algumas delas, escolhidas e
descontextualizadas pelo Tribunal. 34) O que faz o Tribunal, manifestamente, é
desconsiderar factos e provas que os sustentaram, ou mesmo decidir contra a
prova produzida, com uma valoração e apreciação puramente subjectiva e
tendenciosa da causa. 35) Interpretação do artigo 127° do Código de Processo
Penal no sentido de que a livre apreciação da prova corresponde a uma valoração
meramente subjectiva por forma a suprir as insuficiências dos elementos
probatórios, ou desconsiderando e contrariando a prova produzida, sem fundamento
concreto e objectivo, é desconforme à Constituição da República Portuguesa, por
violação do artigo 32°, nºs 1 e 2 deste diploma fundamental. 36) Existe, pois,
atento o disposto e o teor do Acórdão recorrido, ta! como do Acórdão de 1a
instância que reproduz, desde logo na condenação do arguido pelos alegados
crimes de coacção grave e sequestro ERRO NOTÓRIO e INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO
SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA – que se pede sejam, em Vossa Justiça,
conhecidos, com as devidas consequências legais. 37) O 1º Juízo Criminal de
Viseu entendeu, ou melhor, presumiu considerar-se provado que o arguido violou a
sua namorada durante determinado período temporal, tendo o Tribunal da Relação
anuído ao mais surpreendente raciocínio e sua grave consequência de condenação
do arguido pelo crime de violação, de forma perfeitamente adversa às regras da
experiência comum e alheia à prova produzida nos autos. 38) Tão evidente é a
falta de prova nesse sentido, que o Tribuna! de Viseu se socorreu, em sede de
convicção sobre a matéria de facto que considerou provada, de uma presunção de
que o arguido praticou com culpa factos capazes de subsumir-se no tipo legal do
crime de violação. 39) Não há desde logo qualquer elemento probatório objectivo,
concreto e consistente que permita, em respeito pelos princípios da presunção de
inocência e in dubio pro reo, concluir, muito menos presumir a prática do crime
de violação e, com isto, se entender ter-se prosseguido o fim da descoberta
material e realização de Justiça. 40) O discurso da demandante a que se submetem
ambos os Tribunal Judicial de Viseu e o Tribunal da Relação está repleto de
contradições e incoerências crassas, sem apoio possível na realidade aos olhos
de qualquer pessoa, diga-se o homem médio minimamente atento. 41) O Tribunal de
Viseu desatendeu e decidiu mesmo contra prova documental, que é, como diz o
Tribunal da Relação no Acórdão recorrido, de apreciação vinculada – é o caso do
relatórios suscitados, solicitados e juntos aos autos, de que se destaca o
Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem, atestando aquilo que, de resto, é
facto público e notório: a toma de anabolizantes tem como efeitos secundários a
hipertensão arterial e perturbações da libido, ou seja, falta de desejo e
impotência sexual. 42) Para além do erro notório que se evidencia na decisão
sobre a matéria de facto relativa também ao crime de violação, verifica-se
ainda, à semelhança do que sucedeu, simultaneamente, sobre os alegados crimes de
coacção grave e sequestro, que o Tribunal Judicial de Viseu, sem que o Tribunal
da Relação o tenha minimamente considerado e sanado, decide contra a prova e
desatende factos e elementos probatórios de relevo sem fundamento algum, pelo
que peca a decisão sobre recurso também pelo vício de insuficiência para a
decisão sobre a matéria de facto.(…). 46) Mesmo sem gravação ou transcrição que
o possibilite com a precisão que a situação e caso impõem – com a maior
gravidade no que aos factos de 2 de Março de 2005 respeita –, o Tribunal da
Relação pretende apoiar, mais uma vez, a decisão do 1o Juízo Criminal de Viseu
de condenar o arguido por homicídio qualificado na forma tentada. 47) Dar-se
como provado facto em desfavor do arguido com base em desconhecimento ou dúvidas
das testemunhas constitui violação do princípio in dúbio pro reo e princípio da
presunção de inocência como consagrado no artigo 32°, nº 2, da Constituição da
República Portuguesa. 48) Quisesse o arguido matar BB, fosse esse o seu
objectivo, tinha-o efectivamente feito, concentrando-se nela e apontando a zonas
vitais, estando junto a ela, sendo a própria prova indiciária coincidente com o
que relatou o arguido com todo o pormenor. 49) Contrariamente ao que diz o
Tribunal da Relação, é do senso comum, lógica, coerência numa apreciação cuidada
dos factos que, àquela distância, com experiência de armas, quisesse o arguido
matar a demandante tinha-o feito. 50) Aliás, fosse esse o seu objectivo
desmedido e premeditado, teria morto a demandante ainda dentro da casa cuja
porta arrombou. 51) Os disparos foram um acidente, num momento único,
excepcional de tensão extrema, momento com que o arguido foi naquele instante
surpreendido e que nunca antes havia sido vivido peio arguido que nem registo
criminal tinha para além de uma condução sem habilitação aos 16 anos e, isto,
apesar de trabalhar desde muito novo em meios por natureza susceptíveis de gerar
conflitos. 52) Emoção, tensão extrema, quando rodeado por agentes da PSP que
avançaram a correr para ele com armas empunhadas – circunstâncias excepcionais a
que já não se refere o Tribunal da Relação. 53) Frieza é tudo o que não
caracteriza este caso e nenhum sentido faz que se conclua pela mesma naquele
circunstancialismo e, aliás, também em contradição, ao mesmo tempo que dizia o
Tribunal Judicia! de Viseu que pretendia punir mais o arguido para reprimir os
crimes passionais de que se fala nos media, veio depois imputar-lhe frieza nos
disparos que em segundos deflagraram e se sucederam rapidamente, num momento
extremo de tensão em que convergiram rapidamente todas as emoções e desespero
maior. 54) Há contradição, erro notório, insuficiência para a decisão sobre a
matéria de facto e violação grosseira do princípio da presunção de inocência na
forma como se decidiu dar como provado como o arguido praticou os factos de 2 de
Março de 2005. 55) Nas páginas 55 a 57, refere-se o Tribunal da Relação a quanto
invocou o arguido sobre factos que deveriam ter sido atendidos, porque
suscitados e relevantes para a boa decisão da causa, e que deveriam ter sido
dados como provados atenta a existência de elementos probatórios
inultrapassáveis nesse sentido. 56) Ao contrário do que referiu o Tribunal de
Viseu – ironizando, inclusive, despropositadamente a questão pertinente do uso e
efeitos dos anabolizantes – e o que refere agora o Tribunal da Relação, as
oscilações da libido, ou seja, falta de desejo, a atrofia e a impotência sexual,
para além de abundantemente publicitados a título de alerta, constam, com
evidência, do Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem a fls. 736, tal como
do subsequente Partial Agreement in the Social and Public Health Filed, do
Conselho da Europa, a fls738 e ss, sendo tal prova documental técnica de
apreciação vinculada. 57) Para além desses efeitos a nível do desempenho sexual
dos utilizadores de esteróides, constam também, como efeitos outros secundários
principais, hipertensão artéria! e aumento de agressividade {vide mesmos
Relatório do Conselho Nacional de Andidopagem e Partial Agreement in the Social
and Public Health Field, a fls. 736 e ss), aos quais acresce, como é do senso
comum, o stress próprio de quem se dedica intensivamente, como era o caso do
arguido, a competições. 58) O Julgador não pode impor decisão contrária a factos
cientificamente atestados e publicitados, sem sequer invocar fundamento
objectivo e lógico concreto para esse decisão, sendo, para mais, os factos em
causa de relevo maior para a boa decisão da causa, revelando-se, na sua
desconsideração, insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto. 59)
Interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127° do Código de
Processo Penal no sentido de que o Julgador pode, sem qualquer fundamento
concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender na sua
decisão factos objectivos cientificamente atestados é inconstitucional, por
violação do artigos 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa. 60)
O Tribunal da Relação desconsidera os factos avançados, de forma genuína, pelas
testemunhas arroladas pela defesa no sentido de que ouviram – o que ouviram e
onde – à demandante dizer ao arguido em público, a título de provocação e
humilhação de cariz sexual derivada da toma de esteróides, referindo que tais
FACTOS E ELEMENTOS PROBATÓRIOS são um argumento não credível pois BB,
conhecedora da personalidade do arguido, não se atreveria a tal, muito menos à
frente dos amigos do recorrente. 61) Em vez de considerar, com a mínima
objectividade e cuidado com vista à descoberta da verdade, aqueles factos, o
Tribunal afasta-os a priori porque prejudicam a condenação do arguido. 62) A
desconsideração de factos e elementos probatórios com relevo para a decisão
porque divergem do propósito de condenação do arguido constitui flagrante
violação do artigo 32°, n°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, para
além de crassa violação do artigo 6o da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem. Foi propositadamente que transcrevemos neste lugar esta massa
inextricável de conclusões. Através delas, só se pode tirar uma conclusão: o
recorrente confunde vícios da matéria de facto que inquinam a própria decisão de
facto na sua génese e na sua estrutura com a apreciação e valoração da prova
produzida em audiência de julgamento.
Ora, sendo a prova produzida aquilo que o recorrente ataca directamente, não é a
questão dos vícios que está em causa, mas a matéria de facto que foi discutida e
objecto de prova nas instâncias e que ele transporta de novo para este Tribunal.
Um tal recurso da matéria de facto não é admissível para o Supremo Tribunal de
Justiça, que apenas tem competência, como tribunal de revista, para apreciar
matéria exclusivamente de direito (arts. 432.º, alínea c) e 434.º do CPP, na
redacção actual – anteriormente, excluíam-se apenas as decisões do tribunal de
júri). Mas mesmo em relação aos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, os quais,
como se sabe, têm de resultar patentemente do texto da decisão recorrida,
encarado em si mesmo, sem recurso a elementos extrínsecos, como sejam,
nomeadamente, as provas produzidas em audiência de julgamento, embora sem
excluir a possibilidade de conjugar esse texto com as regras gerais da
experiência comum, este Tribunal tem entendido uniformemente o seguinte: O
recurso da matéria de facto, ainda que restrito aos vícios do art. 410.º, n.º 2
do CPP (a chamada revista alargada) tem actualmente (isto é, depois da reforma
introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) de ser interposto para a
Relação, e da decisão desta que sobre tal matéria se pronuncie já não é
admissível recurso para o STJ, pelo que se haverão de considerar precludidas
todas as razões que foram ou podiam ser invocadas nesse recurso, cuja decisão
esgota os poderes de cognição nessa matéria (Cf., entre outros, os recentes
acórdãos de 1/6/2006, Proc. n.º 1427/06 – 5.ª e de 22/6/2006, Proc. n.º 1923-06
– 5.ª e no mesmo sentido SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, O Novo Código E Os
Recursos, 2001, edição policopiada, pgs. 9 e 10).Esta interpretação colhe apoio
na redacção introduzida pela aludida reforma na alínea d) do art. 432.º do CPP,
que passou a conter a locução, antes inexistente, visando exclusivamente o
reexame da matéria de direito. É de notar que a redacção actual, não só
reconfirma, como alarga esta solução, na medida em que a alínea c), que passou a
englobar a matéria das anteriores alíneas c) e d), dispõe que se recorre para o
Supremo Tribunal de Justiça “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri
ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos,
visando exclusivamente o reexame da matéria de direito”. Por conseguinte,
pretendendo interpor-se recurso de acórdão final do tribunal colectivo (ou de
júri, na redacção actual) quanto à matéria de facto, seja por via da impugnação
da apreciação e valoração da prova produzida, seja por meio da alegação de
vícios do art. 410.º, n.º 2, tal recurso há-de ser dirigido ao Tribunal da
Relação, que é uma instância que aprecia matéria de facto e de direito, ao invés
do STJ que aprecia exclusivamente matéria de direito. A decisão da 2.ª instância
é definitiva quanto a tal matéria, não podendo reeditar-se no recurso para o STJ
as razões que fundaram a alegação desses vícios para a Relação e que já foram
apreciadas. Se os recorrentes interpuseram recurso para a Relação em que
suscitaram divergências relativas à matéria de facto nas quais se inclui a que
agora retomam, tendo a Relação decidido sobre tais questões, a matéria de facto
tem de ser considerada como assente, não podendo tal questão ser retomada no
recurso para o STJ, restrito que está à reposição da matéria de direito (cfr.
disposições conjugadas dos arts. 432.º, al. d), e 434.º do CPP (Ac. de
15-10-2003, Proc. n.º 1882/03 - 3.ª Secção). Esta interpretação colhe inclusive
o apoio doutrinário de Germano Marques da Silva, que assim se pronuncia no seu
Curso de Processo Penal III, 2.ª Edição, Editorial Verbo 2000, p. 371: Recente
jurisprudência do STJ tem considerado que a norma do art. 410.º do CPP deve ser
interpretada restritivamente, não sendo aplicável aos recursos referidos na
alínea d), do artigo 432.º. Parece-nos acertada esta orientação, pois, se se
verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º e houver
razões para crer que a renovação da prova permitirá evitar o reenvio do
processo, a relação deve desde logo proceder à sua renovação. Acresce que tendo
havido documentação da prova, o tribunal da relação pode também decidir com base
na prova documentada, o que o STJ não pode fazer por não ter poderes de decisão
em matéria de facto. É claro que uma tal interpretação é feita sem prejuízo de o
STJ conhecer dos citados vícios oficiosamente, nos termos do disposto no art.
434.º do CPP e da jurisprudência fixada por este Tribunal no Acórdão n.º 7/95,
de 19 de Outubro, publicado no DR 1.ª S/A, de 28/12/95. Em tal caso, porém, o
STJ conhece oficiosamente desses vícios, não porque possam ser alegados em novo
recurso que verse os mesmos depois de terem sido apreciados pela Relação, mas
quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que,
por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer
de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como
plausíveis. Uma tal interpretação não colide com o direito ao recurso, enquanto
parte integrante do direito de defesa consagrado no art. 32.º, n.º 1 da
Constituição, pois o referido direito alcança satisfatoriamente as exigências
constitucionais com o asseguramento de um grau de recurso para um tribunal
superior, neste caso a Relação. Mas se é assim no respeitante aos vícios do art.
410.º, nº 2 do CPP, muito mais o há-de ser num recurso como o do recorrente,
que, afinal, visa tão-só a reanálise e reinterpretação da prova produzida, com o
pretexto de que o tribunal “a quo” errou notoriamente na interpretação e
valoração que fez dessa prova, ou incorreu em contradição insanável ou ainda que
a prova produzida é insuficiente para a condenação (o que não corresponde, em
nenhum caso, à alegação dos erros-vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP), alegando
ainda o recorrente que o tribunal “a quo” extravasou o “poder de livre
apreciação da prova”. Com efeito, o recorrente não faz outra coisa senão invocar
depoimentos e declarações produzidos em julgamento, pretenso desprezo da prova
produzida por parte do tribunal de 1.ª instância (note-se: da 1.ª instância,
quando a decisão recorrida é a da Relação, que já apreciou as questões agora
reeditadas), condenação sem provas ou por puro arbítrio do tribunal, etc.
reincidindo na impugnação da matéria de facto que fez no recurso para a Relação
e pretendendo extrair outras conclusões da prova produzida que levem a uma
diferente decisão da matéria de facto. Simplesmente, o Supremo Tribunal de
Justiça funciona como tribunal de revista, como já se disse, e, por isso, só
reexamina matéria de direito, o que o recorrente ignora de uma forma patente,
colocando o seu recurso, neste âmbito, sob o ângulo da manifesta improcedência.
Concluímos, pois, que o recurso interposto, visando a matéria de facto, é
manifestamente improcedente.10.2. O mesmo se diga da pretensa violação do art.
127.º do CPP.
Com efeito, o recorrente invoca, como se disse, a violação do princípio da livre
apreciação da prova, consignado no art. 127.º do CPP para justificar a sua
discordância da decisão da matéria de facto. Mas trata-se, obviamente, no
contexto da motivação de recurso, de um mero pretexto para pôr em crise a
decisão sobre a questão factual, que não de uma verdadeira questão de direito. A
livre apreciação da prova significa, basicamente, uma ausência de critérios
legais que predeterminem ou hierarquizem o valor dos diversos meios de prova
(veja-se Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol. 1974, págs. 202 e
segs.). A livre apreciação da prova pode envolver, como é natural, uma grande
dose de subjectivismo, pois é impossível desligar o julgador da sua experiência
pessoal, da sua cultura, das suas ideias de vida, da sua moral, etc. Porém, tal
«princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável
e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida» (obra citada). A
discricionariedade com que o julgador aprecia a prova não pode confundir-se com
arbitrariedade. Por isso, «a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a
critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo
(...) A verdade 'material' que se busca em processo penal não é o conhecimento
ou apreensão absolutos de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade
de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente,
inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata de conhecimento de
acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão
de meios de prova que, por sua natureza – e é o que se passa sobretudo com a
prova testemunhal... – se revelam particularmente falíveis» (idem). Perante tal
princípio da livre apreciação da prova, «uma das funções primaciais de toda a
sentença (maxime, da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento
da decisão. As considerações feitas dão exigência de que as comprovações
judiciais sejam sempre motiváveis» (idem). Por isso, o art. 97º obriga a que
todos os actos decisórios – sentenças, despachos e acórdãos – sejam
fundamentados. E tal fundamentação tem de incidir, não só sobre os aspectos de
interpretação da lei, como era tradicional, mas também sobre a decisão da
matéria de facto, pelas razões já apontadas. Efectivamente, o art.º 374º, n.º 2,
dispõe sobre a elaboração da sentença que «ao relatório segue-se a
fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem
como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos
motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». Em suma, o
princípio da livre apreciação da prova está intimamente conexionado com a
fundamentação da decisão, proscrevendo uma interpretação caprichosa e imotivada
da prova produzida e exigindo a motivação da convicção decisória em termos que
se reconduzam a critérios objectivos, de modo a que o processo lógico seguido
pela decisão seja perceptível pelos seus destinatários e controlável pelos
tribunais superiores. Foi isto que disse o Tribunal Constitucional, ao acentuar
que “este princípio da livre apreciação da prova não é absoluto, e não se
confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de
todo em todo imotivável. O julgador deve observância a regras de experiência
comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios
objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo” (acórdão nº
1165/96 de 19 de Novembro; BMJ, 461, 93). Ora, no caso sub judice, o recorrente
não impugna propriamente a decisão recorrida sob esse prisma da falta de
motivação, da arbitrariedade, da ausência de critérios objectivos na avaliação e
interpretação da prova ou falta do seu exame crítico, enfim, na postergação de
regras da experiência comum. Não é que não impute tudo isso à decisão recorrida,
o seu ataque à decisão assenta primacialmente na referida impugnação da prova
produzida, em termos em tudo semelhantes aos que fez no recurso para a Relação.
Ou seja, o recorrente passa por cima do que a lei prescreve acerca dos poderes
de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, continuando prisioneiro de uma fase
– a da apreciação e valoração das provas – que já foi ultrapassada. Em todo o
caso diga-se que a decisão da 1.ª instância, que foi confirmada também nesse
aspecto pelo Tribunal da Relação, está motivada de acordo com os critérios que
foram enunciados acima, suportando perfeitamente, em termos de lógica,
racionalidade, regras gerais da experiência comum e exame crítico das provas, as
opções tomadas em matéria de facto.
10.3. O recorrente invoca ainda, nas conclusões 23.ª e 59.ª (precisamente
iguais, como tantas vezes sucede ao longo do extenso e prolixo rol conclusivo)
que a «interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127° do Código
de Processo Penal no sentido de que o Julgador pode, sem qualquer fundamento
concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender na sua
decisão factos objectivos cientificamente atestados é inconstitucional, por
violação do artigos 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa».
Já vimos que esta conclusão é ela própria infundamentada e arbitrária, não se
surpreendendo na decisão, quer da 1.ª instância, quer da Relação, cada qual ao
seu nível decisório, nada que na respectiva fundamentação das opções tomadas
indicie arbítrio, capricho, falta de indicação das competentes razões ou exame
crítico das provas que serviram para formar a respectiva convicção, pelo que a
invocação da violação do art. 32.º, n.º 1 da Constituição é meramente
emblemática.
Mas tentemos ver o que quer dizer exactamente o recorrente com aquele “sem
qualquer fundamento concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou
desatender (…) factos objectivos cientificamente atestados”.
Antes do art. 23.º das conclusões, o recorrente, sempre no seu intento de
impugnar indevidamente o decidido em matéria de facto, contesta, entre outros, o
crime de violação, afirmando que “É desde logo contrário à lógica e senso comum,
assim perceptível por qualquer pessoa - diga-se o homem minimamente atento - que
se possa dar entender que as palavras da ofendida BB, que se disse vítima de
sequestro, coacção grave e violação, possam ser isentas e servir por si, à
revelia da restante prova e na falta de prova, para condenar o arguido por tudo
o que dissesse e disse”.
“A prova documental – que existe nos autos -foi totalmente desconsiderada pelo
Tribunal, com decisões contrárias ao seu teor, destacando-se a apreciação, que
deveria sim ter sido vinculada e correcta, do Relatório do Conselho Nacional de
Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls.
736 e ss dos autos”.
Por seu turno, antes do art. 59 das conclusões, o arguido refere-se aos
“acontecimentos de 2 de Março de 2005”, e estes acontecimentos dizem respeito à
introdução na casa de MC, onde estava a assistente BB, ao sequestro desta pelo
arguido e ao disparo da arma (revólver) que levava consigo sobre a referida BB,
primeiro na direcção da cabeça, depois na zona abdominal (factos descritos em
V), supra 8.1.)
Em suma, na parte relevante para a decisão, refere-se ao crime de homicídio. E,
nos arts. 56, 57 e 58 das conclusões, diz:
56) Ao contrário do que referiu o Tribunal de Viseu – ironizando, inclusive,
despropositadamente a questão pertinente do uso e efeitos dos anabolizantes -e o
que refere agora o Tribunal da Relação, as oscilações da libido, ou seja, falta
de desejo, a atrofia e a impotência sexual, para além de abundantemente
publicitados a título de alerta, constam, com evidência, do Relatório do
Conselho Nacional de Antidopagem a fls. 736, tal como do subsequente Partial
Agreement in the Social and Public Health Filed, do Conselho da Europa, a fls738
e ss, sendo tal prova documental técnica de apreciação vinculada. 57) Para além
desses efeitos a nível do desempenho sexual dos utilizadores de esteróides,
constam também, como efeitos outros secundários principais, hipertensão artéria!
e aumento de agressividade (vide mesmos Relatório do Conselho Nacional de
Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls.
736 e ss), aos quais acresce, como é do senso comum, o stress próprio de quem se
dedica intensivamente, como era o caso do arguido, a competições. 58) O Julgador
não pode impor decisão contrária a factos cientificamente atestados e
publicitados, sem sequer invocar fundamento objectivo e lógico concreto para
esse decisão, sendo, para mais, os factos em causa de relevo maior para a boa
decisão da causa, revelando-se, na sua desconsideração, insuficiência para a
decisão sobre a matéria de facto. Por conseguinte, quer num caso, quer noutro
(violação, homicídio), o recorrente refere-se (pelo menos é o que parece
resultar das suas pouco explícitas conclusões) aos célebres efeitos dos
anabolizantes no comportamento do arguido, tanto ao nível de agressividade,
hipertensão e stress, como ao nível da falta de desejo, atrofia e impotência
sexual. São esses, pelos vistos, os factos cientificamente comprovados.
Pois bem: mais uma vez se constata que se anda sempre à volta do mesmo problema:
a prova produzida, a sua interpretação e valoração, como se o Supremo Tribunal
fosse uma terceira instância de apreciação de facto.
Mas, uma vez que se imputa à decisão recorrida a divergência acintosa de
resultados de exames periciais, vejamos como a Relação encarou o problema:
IV) Matéria de facto considerada não provada pela decisão recorrida. Pretende o
arguido que se dê como provado que: a) o arguido praticava e entrava em
competições de powerlifting, fazendo uso de asteróides anabolizantes, cujos
efeitos secundários são, entre os demais, como cientificamente atestado,
hipertensão arterial, aumento de agressividade, impotência sexual e oscilações
da libido, ou seja, falta de desejo sexual; b) BB tinha o hábito de humilhar o
arguido em público, entre amigos e mesmo patrões deste, tecendo comentários e
provocações sobre o seu desempenho sexual, no sentido de que a não conseguia
satisfazer devido ao uso de anabolizantes; c) o arguido começou a andar
perturbado em função da sua relação com a BB, a partir do momento em que esta
mudou o seu comportamento para com aquele, deixando-o no desconhecimento de por
onde andava e permitindo que as suas amigas ingerissem na relação dos dois.
Considera ainda que o Tribunal recorrido devia ter dado como provado o bom
comportamento anterior do recorrente. A este respeito cumpre referir que o
Tribunal tinha que se pronunciar sobre os factos da acusação/pronúncia e da
contestação, bem como daqueles outros que resultassem da discussão da causa que
tidos como relevantes para a decisão, com incidência directa no 'recorte de
vida' submetido à sua apreciação ou com relevo para a determinação da medida
concreta da pena. Não sobre tudo o que o recorrente pudesse vir a considerar
relevante, em seu critério, a posteriori. Ora o Tribunal deu como provado, neste
âmbito, que 'o arguido tomava anabolizantes para obter melhores performances na
actividade de powerlífting que praticava' – cfr. ponto IX 1 dos factos provados.
Não tinha que se pronunciar sobre os possíveis efeitos secundários, não só
porque não foram alegados, mas também porque eram indiferentes para o
conhecimento da responsabilidade criminal do arguido. Aliás, alegando que tomava
os anabolizantes 'para obter melhores performances' na actividade desportiva,
não se vê como pudesse ter efeitos contrários para outros efeitos também de
ordem física. Pronunciando-se sobre factos alegados na contestação, o Tribunal
tomou posição — e só isso lhe competia — decidindo dar como não provado que 'à
data dos factos e, desde de Janeiro de 2005, o arguido estivesse com as
faculdades alteradas devido a substâncias que tomava e fosse hipertenso' – cfr.
fls. 17 do acórdão. Tendo-o feito, mais uma vez, não de forma arbitrária, mas
com base em parecer técnico, emitido pelo Conselho Nacional Antidopagem, junto a
fls. 736-788, motivado em literatura médica que anexou, onde em resumo se refere
que 'não se encontra descrito qualquer efeito que, de qualquer modo, afecte o
discernimento de quem ingira tais medicamentos'. Sobre o parágrafo b) supra
referido, o tribunal também deu como não provado que «BB tivesse humilhado o
arguido a ponto de denegrir as suas capacidades sexuais perante amigos comuns».
Fundamentando o julgamento sobre tal matéria a fls. 17 e 18 do acórdão. Ora para
além da explicação dada pelo tribunal recorrido, para que se remete, por
reproduzida supra, não é credível, minimamente, que BB, conhecedora da
personalidade do arguido, se atrevesse a tal. Muito menos à frente dos amigos do
recorrente. A própria BB relata dois episódios, ocorridos em Maio, logo cerca de
dois meses após o início da relação, em que refere que o arguido a agrediu,
factos que o arguido acabou por reconhecer, embora dando explicação diferente
para tais comportamentos. Todo o conjunto da matéria de facto provada, desde
logo a confessada pelo arguido revelam uma personalidade autoritária e
dominadora que não se coaduna de modo algum com a atitude passiva do arguido,
perante as alegadas afrontas que a BB ousava lançar-lhe, corno quiseram fazer
crer as testemunhas FF e GG.
Este trecho da decisão é o mais claro desmentido das afirmações do recorrente,
quer no que toca ao arbítrio que imputa à decisão, quer no que respeita à
divergência não fundamentada de juízo científico.
Por conseguinte, continua a ser manifestamente improcedente a alegação do
recorrente.
10.4. O recorrente invoca a violação do princípio in dubio pro reo e da
presunção de inocência, que não são exactamente a mesma coisa. Com efeito, como
salienta CASTANHEIRA NEVES, o princípio in dubio pro reo é «o correlato
processual» da exclusão do ónus da prova, ou seja o que o princípio postula é «a
prova efectiva da infracção, ou, inversamente, a inadmissibilidade de uma
condenação por uma infracção não provada…» (Sumários de Processo Criminal,
lições policopiadas, Coimbra 1968, p. 56/57)
Ora, tem este Tribunal entendido que o STJ só pode sindicar a aplicação do
princípio in dubio pro reo, se da decisão resultar que o tribunal recorrido
ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida,
decidiu contra o arguido (entre outros, os Acórdãos de 5/6/03, Proc. n.º 976/03
– 5.ª, de 12/7/05, Proc. n.º 2315/05 – 5.ª e de 7/12/05, Proc. n.º 2963/05.
3ª,), ou ainda quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela
resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as
regras da experiência comum, ou seja, naqueles casos em que se possa constatar
que a dúvida só não foi reconhecida em virtude de erro na apreciação da prova,
nos termos do art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP (entre outros, os Acórdãos de
30/10/01, Proc. n.º 2630/01 – 3.ª, de 6/12/2002, Proc. n.º 2707/02 – 5.ª e de
24/11/05, Proc. n.º 2831/05 – 5ª).
Em síntese e numa formulação que parece bem acomodada à natureza do princípio e
aos poderes de cognição do STJ, escreveu-se no Acórdão de 20/10/05, Proc. n.º
2431/05): «A sindicância do princípio in dubio pro reo está limitada aos
aspectos externos da formação da convicção das instâncias: há-de ficar-se pela
exigência de que tal convicção seja objectivada e motivada na análise crítica
das provas, dela sendo a expressão de um processo racional convincente que
suporte a conclusão final do tribunal recorrido pela valoração feita deste ou
daquele meio de prova». Por conseguinte, a violação do princípio in dubio pro
reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em
matéria de apreciação e valoração da prova, pode ser sindicado pelo STJ.
Todavia, essa sindicação tem de exercer-se dentro dos limites de cognição desse
Tribunal, devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos
análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, ou seja: quando, seguindo o
processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, a conclusão
retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o
arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas
irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. Ora,
o recorrente, ao levantar a questão da violação do princípio in dubio pro reo,
fá-lo mais uma vez como forma de encapotadamente atacar a apreciação e valoração
da prova produzida feitas pelas instâncias. Na realidade, o que ele pretende é
opor à convicção a que chegaram as instâncias a sua própria visão das coisas.
Neste sentido, as dúvidas quanto à prova estão na sua maneira de a verem e
interpretarem, não na decisão recorrida. Da fundamentação desta, conjugada com a
motivação da convicção da decisão da 1.ª instância não resulta que, ao darem-se
como provados os respectivos factos nos pontos questionados, se tivesse decidido
contra o arguido, não obstante a persistência de dúvidas razoáveis. Por outro
lado, dada a forma como o tribunal de 1.ª instância motivou a convicção e que o
Tribunal da Relação acolheu na sua fundamentação, reinterpretando-a à luz dos
problemas postos, não se surpreende nenhuma conclusão que não seja suportada, em
matéria de apreciação e exame crítico da prova, pelo processo lógico e racional,
integrado pelas regras gerais da experiência, que conduziu à convicção. Como
tal, é também manifestamente improcedente o recurso quanto a tal questão.
10.5. No que diz respeito ao crime de homicídio, o recorrente começa por
impugnar a intenção de matar, sempre na óptica da não aceitação da interpretação
e valoração da prova produzida em julgamento – o que. para o dizermos, mais uma
vez, está para além dos limites de cognição deste Tribunal. Tal resulta
manifestamente das conclusões do recurso acima transcritas (47.º a 62.ª - ponto
10.1.)
Como tal, nem vale a pena perder tempo com a alegação do recorrente. De resto, a
Relação, com uma detenção e uma erudição dignas de aplauso, faz uma alongada
excursão sobre a questão da prova da intenção de matar. Certo é que a
factualidade provada, que se deve considerar definitivamente assente, pelos
motivos constantemente repetidos ao longo deste acórdão, apontam inequivocamente
no sentido da intenção de matar , pois, “ao disparar sobre a mencionada BB, da
forma como o fez, o arguido agiu com intenção de lhe causar a morte, o que só
não aconteceu por circunstâncias estranhas à sua vontade, designadamente, pelo
facto daquela ter sido socorrida prontamente.
E ainda que “os ferimentos causados pelos disparos efectuados pelo arguido sobre
a BB eram adequados a causar-lhe a morte, resultado que o arguido quis e que
apenas por mero acaso não veio a verificar-se.
Além disso, “o arguido teve consciência da direcção que imprimiu ao primeiro
disparo que efectuou e que atingiu a BB na cabeça, sendo certo que o segundo
disparo apenas não atingiu a ofendida em regiões vitais – como era intenção do
arguido – devido a circunstância alheias à vontade deste.”
“O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente”.
Por conseguinte, daqui não há que fugir: a actuação do recorrente configura um
crime de homicídio na forma tentada (arts. 131.º e 22.º do CP). Já veremos se
este crime é ou não qualificado.
10.6. Quanto à questão da qualificação, o recorrente oferece uma panóplia de
soluções que esgotam praticamente todas as hipóteses possíveis em direito penal:
ofensa à integridade física por negligência (consciente), ou ofensas à
integridade física do art. 144.º do CP, ou ofensas à integridade física graves,
a título de negligência consciente, nos termos do artigo 148°, nºs 1 e 3, do
mesmo diploma legal, homicídio privilegiado do art. 133.º do CP. Tudo menos o
tipo matricial de homicídio.
O problema é que a factualidade assente, descontada as interpretações e
valorações fácticas avançadas pelo recorrente, só dá para preencher precisamente
o tipo legal de crime que ele quer ver excluído – o de homicídio voluntário, na
forma tentada.
A este propósito, veja-se o acerto das considerações tecidas na decisão
recorrida:
O recorrente discorda do enquadramento jurídico-penal dos factos que levaram o
tribunal a condená-lo pelo crime de homicídio tentado qualificado. Sustentando
que tudo não passou de um acto negligente (!) do arguido no manejo da arma pelo
que deveria ser somente condenado pelo crime de ofensa à integridade física por
negligência pp. pelo art. 148.º, nºs 1 e 3 do C. Penal. Na base de tal
enquadramento está a alegada ausência de intenção de matar ou mesmo de atingir a
integridade física da ofendida. Tratando-se, por isso, de argumentação já
apreciada em sede de reapreciação da matéria de facto, tendo naufragado. Pelo
que, em face da matéria de facto provada (disparo de arma de fogo calibre 7,65
mm., à queima-roupa, sobre a região temporal direita da cabeça da vítima, com
intenção de a matar, o que só não sucedeu por motivo estranho á vontade do
agente) é, de todo em todo estulta, e como tal manifestamente improcedente, a
posição do recorrente neste ponto. Por último alega, para o caso de se concluir
pela intenção de matar, que os factos devem ser enquadrados pelo crime de
homicídio privilegiado do art. 133 – do C. Penal, sob a forma de tentativa,
alegando que o arguido estava acometido de uma emoção violenta e extrema. Também
aqui carece ostensivamente de sentido tal pretensão, face à matéria de facto
provada. Desde logo porque o arguido não estava possuído por qualquer emoção
violenta, muito menos compreensível ou relevante que o impelissem a disparar
letalmente contra a ofendida. Pelo contrário verifica-se que se deslocou,
pensadamente, de Lisboa a Viseu, localizou a vítima, arrombou o apartamento da
casa da amiga onde se refugiara, levou-a sob a ameaça de uma arma a sair de casa
e a dirigir-se até ao seu automóvel onde pretendia obrigá-la a entrar (e onde
tinha, além de outras armas, um par de algemas prontas para a receber). Sendo
certo que em todo este percurso a ofendida nada fez que pudesse desencadear, em
termos de normalidade, a reacção do arguido. Mesmo a reacção da vítima a pedir
socorro foi de autodefesa e não de confronto com o arguido de forma a poder
tê-lo exaltado. Aproximando a arma da cabeça dela a apontando à zona temporal,
visando uma zona vital do corpo da ofendida. Mais não fazendo, aliás, do que
cumprir o anúncio que lhe fizera já anteriormente, pelo telemóvel. Revelando
assim requintada obstinação, frieza de ânimo e sangue frio, tal como conclui a
decisão recorria, cuja argumentação jurídica não é rebatida. Concordamos
inteiramente com este raciocínio. Só faltou analisar a hipótese de crime de
ofensas à integridade física graves do art. 144.º do CP. Porém, a base do
raciocínio é a mesma. O que está provado é que o arguido agiu com intenção de
causar a morte da assistente e não de a ofender corporalmente, ainda que
provocando-lhe as consequências previstas nas diversas alíneas desse artigo e,
nomeadamente, perigo para a vida.
Por conseguinte, está arredada a hipótese de ofensas à integridade física em
qualquer das modalidades aventadas pelo recorrente.
10.7. Vejamos agora a questão da qualificação do crime.
O recorrente quer ver afastada a circunstância da frieza de ânimo. Porém, fá-lo
sempre debaixo da sua peculiar e frustre perspectiva: através da impugnação da
decisão de facto.
Ora, a matéria de facto assente não deixa margem para dúvidas quanto à
verificação de circunstâncias que coincidem com o exemplo-padrão da alínea i) do
n.º 2 do art. 132.º do CP, como judiciosamente observa a decisão recorrida, numa
correcta interpretação da factualidade provada.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a definir frieza de ânimo como
o agir «de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e
desprezo pela vida» (Acórdão de 14/7/2004, Proc. n.º 1889/04 – 3ª, Sumários dos
Acórdãos do STJ, n.º 83, p. 78); comportamento traduzido num agir de «modo frio,
indiferente ao valor da vida da vítima (…) revelando uma forte intensidade da
vontade criminosa» (Acórdão de 23/2/2005, Proc. n.º 4302/04 – 3ª, Sumários, n.º
88, p. 108); «firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa»
(Acórdão de 10/3/2005, Proc. n.º 224%05 – 5ª, Sumários, n.º 89, p. 102). O
Comentário Conimbricense do Código Penal, por seu turno, define a frieza de
ânimo como a «firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução, indiciada
pela sua persistência durante um apreciável lapso de tempo e, como tal,
reveladora de uma forte intensidade da vontade criminosa» (Tomo I, p. 39). Ora,
a forma como o recorrente agiu e que se deixou descrita nos seus traços mais
impressivos traduz as características apontadas pela jurisprudência e pela
doutrina. Na verdade, o arguido agiu, em todos os momentos da sua actuação, como
se tivesse o privilégio do domínio absoluto sobre a assistente, que não teria
outra forma de viver senão submeter-se-lhe à sua despótica vontade. A assistente
quis acabar com a curta relação de namoro que mantivera com o arguido; porém,
este, não se conformando, passou a perseguir a assistente de forma que se pode
dizer “totalitária”, telefonando-lhe, remetendo-lhe mensagens pelo telemóvel,
ameaçando-a de que “tinha a sentença feita”, perseguindo-a por todo o lado,
jurando que a havia de matar, batendo-lhe, ameaçando a própria mãe dela,
obrigando-a a entrar para dentro do seu carro e algemando-a, transportando-a à
força para Lisboa e mantendo-a sem liberdade, obrigando-a a ter com ele relações
sexuais. Por fim, dirigiu-se a casa de uma amiga, onde ela se encontrava
refugiada, levando consigo o revólver de marca “Taurus”, descrito na matéria de
facto, e obrigando a assistente a sair de casa dessa amiga sob ameaça de arma,
que manteve sempre empunhada e encostada ao seu abdómen, pretendeu introduzi-la
no carro. Quando se encontrava próximo deste, a assistente teve uma inesperada
reacção, pedindo socorro, e o arguido não hesitou em desferir um tiro, apontando
a arma à sua cabeça e atingindo-a na zona parietal direita. Depois, efectuou um
segundo tiro, atingindo-a no abdómen. Toda esta actuação está interligada e
denota o propósito do arguido, formado há muito, de, literalmente, se apropriar
da assistente, como se fosse um objecto seu, ainda que em caso extremo de recusa
dela, a tivesse que matar, como vinha anunciando e ameaçando, praticando actos
que pura e simplesmente a reduziam a uma ”coisa”. Ora, tudo isto cabe no
conceito de frieza de ânimo, tal como ficou acima definido e se encontra
elencado na alínea i) do n.º 2, do art. 132.º do CP. Sendo, no entanto, o art.
132.º um tipo de culpa qualificador que articula um critério generalizador – o
contido no n.º 1 – com um critério especializador, enunciado através de
exemplos-padrão contidos no n.º 2, mutuamente implicantes, de forma que, tendo
de ocorrer uma situação que possa enquadrar-se num dos exemplos-padrão ou em
circunstâncias que lhes sejam estruturalmente análogas, não basta que elas se
verifiquem, sendo ainda necessário que, por intervenção do critério da culpa, se
possa dizer que a circunstância ocorrida se traduziu numa especial
censurabilidade ou perversidade do agente. Ora, no caso, também não há dúvida de
que toda a acção do recorrente se traduziu numa censurabilidade acrescida, pois
que, formando com antecedência o propósito de matar, persistindo nele por
considerável lapso de tempo, agindo da forma calculada que ficou assinalada,
demonstrou uma especial intensidade na vontade de praticar o crime – razão e
fundamento da qualificação –, revelando aspectos particularmente desvaliosos
quer da acção, quer da sua própria personalidade, traduzidos estes, por exemplo,
na forma implacável como levou o seu intento até ao fim. Assim, a integração do
homicídio no tipo qualificado não merece censura.
10.8. Medida da pena.
No que se refere a esta, o arguido começa por contestar a decisão de facto, no
que tange a não se ter dado como provado o bom comportamento anterior. Invoca
depois a confissão de alguns factos, o que não podia deixar de ser inferido pelo
exame crítico das provas; antecedentes criminais; circunstâncias de
relacionamento concreto entre o arguido e a vítima, criticando o fundamento de
prevenção geral invocado e referindo a propósito a violação do art. 6.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem; tempo passado pelo arguido na prisão e
comportamento irrepreensível do arguido. A medida da pena tem necessariamente de
situar-se, pelo que diz respeito ao crime de violação, no âmbito do art. 164.º,
n.º 1 do CP, cuja pena abstracta vai de 3 a 10 anos de prisão, e, no caso do
crime de homicídio, dentro da moldura penal correspondente ao crime de homicídio
qualificado tentado, previsto e punido pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2,
aliena i) do CP, ou seja, 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses, em
ambos os casos na redacção vigente ao tempo da prática dos factos, mas sem
alterações sensíveis na redacção introduzida pelas alterações da Lei n.º 59/07,
de 4 de Setembro. 8.1. A determinação da pena concreta, como se sabe, obedece a
parâmetros rigorosos, que têm como elementos nucleares de referência a prevenção
e a culpa, tudo nos termos dos números 1 e 2 do art. 71.º do CP. Ao elemento
prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se
buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade
primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes
a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a
vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais:
a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP). Ao elemento
culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no
facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua
radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se
que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de
prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais
exigências. Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens
jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um
ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja
suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a
valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites
devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial
positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As
Consequências Jurídicas do Crime). Quer isto dizer que as exigências de
prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se
inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é
definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na
culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão
actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de
socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena,
evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do
agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit.,
p. 231).
Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena
são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal
enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da
prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena
de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.
O recurso foi interposto da decisão da Relação para o STJ, funcionando este com
a sua vocação essencial de tribunal de revista, pois a revisão da pena aplicada
traduz-se na aplicação de matéria de direito. Os poderes cognitivos do STJ, como
se sabe, abrangem, no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos
factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a
questão do limite ou da moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no
quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se mostrarem
violadas regras da experiência ou quando a quantificação operada se revelar de
todo desproporcionada (Cf. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 19). A decisão
recorrida acolheu a fundamentação do tribunal de 1.ª instância, e este, por seu
turno, explanou a propósito o seguinte: Foi elevado o grau de ilicitude com que
o arguido actuou em relação a todos os factos, pela manifesta superioridade
física e de meios com que agiu em relação às vítimas dos mesmos e pela
persistência da actividade delituosa que demonstrou em relação a uma delas (a
BB) que durou cerca de 10 meses.
Foram gravíssimas as lesões sofridas pela vítima BB e desastrosas as
consequências que delas lhe advieram.
Com efeito, sendo ela à data uma jovem alegre e sem mazelas físicas, solteira,
com perspectivas, legítimas, de alcançar a felicidade plena, vê esse sonho posto
em causa pela actuação do arguido, seja porque a nível profissional, no futuro,
a incapacidade permanente ( de 53% ) de que ficou portadora lhe poderá limitar o
campo de oportunidades, seja porque deixou de poder contar com a sua beleza –
que toda a mulher gosta de exibir perante os outros – ao ter de conviver o resto
da sua vida com a desfiguração do rosto que por virtude das lesões sofridas
passou a apresentar, com todos os traumas e inibições que definitivamente daí
lhe advêm e tudo a afectar profundamente a sua auto-estima e auto-confiança e a
causar-lhe desgosto.
Foi intensa a energia criminosa com que o arguido actuou em relação a todas as
situações, manifestada com especial acuidade no caso dos tiros que desferiu
contra a pessoa da demandante BB, quer pela pluralidade dos disparos efectuados
contra esta, quer pelas zonas do corpo da mesma por ele visadas, com especial
realce para o disparo efectuado próximo e na direcção da cabeça da vítima BB,
agindo, por isso, com dolo directo.
A motivação subjacente à maioria dos factos revela que o arguido é dotado de uma
personalidade violenta, egoísta e egocêntrica, que se afere pelo desprezo dos
meios empregues e da vontade das vítimas em prol da satisfação do seu único
interesse, designadamente, ao pretender manter, com recurso a meios violentos e
apenas por vontade própria e contra a vontade manifestada da BB, uma
relacionamento amoroso que já só ele queria e que sabia ter deixado de
interessar a esta, evidenciando, ainda, traços de uma personalidade dominadora e
possessiva, ao subjugar aquela como se fosse coisa sua pela forma patenteada na
factualidade provada, com recurso à força física e a intimidações psicológicas.
A favor do arguido propendem, apenas, as suas condições de vida, nos aspectos
familiares, desempenho e competência profissional e reputação perante aqueles
que lhe são próximos, a sua confissão em relação a alguns dos factos, ainda que
de pouco valor contributivo para a descoberta da verdade - já que o arguido
confessou apenas os factos que o Tribunal não poderia deixar de inferir do exame
crítico das provas carreadas para os autos e à luz da experiência comum, e nem
sequer assumiu a intenção de disparar aquando do segundo tiro com que veio a
atingir a vítima BB, refugiando-se num disparo acidental -, e, ainda, o seu
manifestado arrependimento, patenteado no propósito de reparar as consequências
de alguns dos crimes, ao depositar a quantia de € 98 para pagamento dos estragos
causados na porta da casa da mencionada DD, ao ressarcir o demandante EE dos
danos por este sofridos, e ao adiantar por conta da indemnização peticionada
pela lesada BB a quantia, ainda que módica, de € 2.500,00, apesar de na posição
por si assumida nos autos a fls. 1320 deixar antever algum fingimento na atitude
de adiantamento desta última quantia ao alegar sentimentos de vingança por parte
da demandante BB, postura que não pode deixar de salientar-se como reveladora de
que não interiorizou a desconformidade da sua conduta face à lei e a gravidade
das consequências dos actos praticados, o que, conjugado, também com o facto do
arguido na sua contestação se escudar num estado de perturbação das suas
faculdades aquando dos factos, que, sem êxito, tentou provar na audiência de
julgamento, retira alguma seriedade ao arrependimento por si propalado.
Os antecedentes criminais do arguido, ainda que por crime de diferente natureza
jurídica e menor gravidade propendem contra ao mesmo, embora com pouco pendor
agravativo.
Por fim, não são de desprezar as razões de prevenção a nível geral, dado o
crescendo de violência passional no nosso país que os media vêm noticiando.
Termos em que, adequadas à culpa do arguido e sobretudo de molde a dar
satisfação às prementes exigências de retenção, de defesa do ordenamento
jurídico e da paz social em tal sorte de crimes sem deixar de lado as
necessidades de ressocialização do arguido, se julgam adequadas as seguintes
penas:
(…)
- pela prática, como autor material, de um crime de violação, p. e p. pelo Art.
164º Nº1 do C. Penal, a pena de 4 ( quatro ) anos e 6 ( seis ) meses de prisão;
(…)
- pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado na
forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1, al.s a) e b),
131º e 132º Nº1 e 2 i) do C. Penal, a pena de 10 ( dez ) anos de prisão;
(…) Estas considerações merecem acolhimento, por acertadas. É de destacar que a
confissão dos factos não tem grande relevo, como se referiu na decisão da 1.ª
instância, e que o arrependimento, em relação aos crimes de violação e
homicídio, não tem também praticamente valor, pelas razões apontadas. Quanto aos
antecedentes criminais, foi bem referido pelo tribunal de 1.ª instância que,
tendo o arguido uma condenação por condução sem carta, tal circunstância tem
pouco pendor agravativo. Todavia, o arguido pretende ir mais longe, pois
contesta que não se tenha dado como provado o bom comportamento anterior. Tal
matéria, porém, como já foi assinalado, diz respeito à matéria de facto, ou
seja, à interpretação e valoração da prova produzida, o que arreda tal questão
dos poderes cognitivos deste STJ (Quantas vezes será necessário afirmá-lo?). Por
conseguinte, não se provou o bom comportamento anterior do arguido. Quanto à
singularidade da pessoa em concreto e, em particular do relacionamento entre o
arguido e a assistente, já vimos que toda a factualidade provada conflui no
sentido de agravar a sua responsabilidade, tanto no domínio da ilicitude, como
no da culpa e também do ponto de vista da prevenção (geral e especial). No que
diz respeito ao facto de o fundamento avançado no capítulo da prevenção geral –
“o crescendo de violência passional no nosso país que os media vêm noticiando” –
constituir «uma violação crassa de quanto estabelece, desde logo, o art. 6.º,
n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», não vemos como tal possa
suceder. Se o recorrente se quer referir ao facto de os juízes deverem ser
independentes e não julgarem de acordo com a comunicação social, estamos
inteiramente de acordo, mas, com tal afirmação, o tribunal não quis significar
essa imbricação da justiça com os media, mas tão-só referir um facto objecto de
notícia – o crescendo de violência passional – e, através disso, aferir a
relevância desse factor na prática de certos crimes, o que sem dúvida tem
reflexos a nível das preocupações da comunidade social e, por aí, na percepção
das necessidades comunitárias relativamente ao debelamento dessa criminalidade.
Mas só nesse aspecto, pois quanto aos factores de que depende a determinação
concreta da pena e, nomeadamente, o critério da prevenção geral, o juiz (neste
caso, o tribunal) manteve a sua autonomia, desde logo expressa em critérios
jurídicos que são independentes dos critérios de valoração da comunicação
social. O facto de o arguido ter já um tempo considerável de prisão preventiva
também não é factor, só por si, com relevância na determinação concreta da pena.
De resto, o arguido, até se evadiu da prisão onde se encontrava e praticou,
nesse acto, alguns dos crimes por que foi condenado. Releve-se o facto de,
segundo o Relatório Social revelar «competências pessoais e profissionais» e
dispor de uma rede de apoio familiar e comunitário capazes de funcionarem como
elementos protectivos e facilitadores do seu ajustamento e reinserção social”.
Tendo em conta todo este contexto, as penas fixadas para o crime de violação e
para o crime de homicídio, não se mostram exageradas, sendo certo que o STJ só
deve intervir correctivamente nesta matéria do quantum da pena, se esta se
mostrar claramente desajustada em face das regras gerais da experiência comum, o
que não é o caso. Improcede, pois, o recurso quanto às penas parcelares. 10.9.
Cúmulo jurídico. Estabelecendo a lei que na determinação da pena única as
balizas a atender são, por um lado, a mais elevada pena parcelar, que forma o
limite mínimo da moldura penal do concurso, e a soma das penas concretamente
fixadas para os vários crimes, que constitui o limite máximo, é dentro destas
«balizas» que aquela terá de ser encontrada (art. 77.º, n.º 2 do CP).
No caso, o limite mínimo é constituído por 10 anos de prisão e o limite máximo,
por 25 anos de prisão (por imposição legal). Na fixação da pena única, sendo
embora de levar em conta os critérios de determinação da medida da pena que
incidiram sobre cada um dos crimes singularmente tomados, há que atender
sobretudo e de modo específico aos factos globalmente considerados, em conjunto
com a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1 do CP).
Ora, o recorrente cometeu, num determinado período, uma série de crimes, onde
sobressaem a coacção grave, o sequestro, a ameaça, a violação de domicílio,
detenção ilegal de arma de fogo, resistência e coacção sobre funcionário,
violação e homicídio. A tónica dominante é-nos dada pela componente de violência
contra as pessoas, atingindo bens como a liberdade de locomoção, a liberdade de
determinação sexual, a vida.
Dada a proximidade dos bens jurídicos em causa, todos eles de carácter
eminentemente pessoal, e o número de crimes praticados, bem pode dizer-se que o
recorrente manifestou uma personalidade agressiva e uma. certa tendência para um
tipo de crimes violentos.
Bem certo que o recorrente tem uma certa juventude (precisamente 28 anos) e que
a prática dos aludidos crimes se deveu a razões de carácter passional, mas em
que manifestou tendências violentas, com a redução do outro a uma “coisa” e não
hesitando em recorrer a todos os métodos para conseguir os seus fins egoístas. É
um começo de vida pouco auspicioso, mas também não se poderá afirmar de ânimo
leve que a actuação por ele manifestada, «numa avaliação da personalidade –
unitária – do agente, (...) é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente
mesmo uma «carreira») criminosa» e não a uma «pluriocasionalidade que não radica
na personalidade do agente» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As
Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, p. 291). Bem pode
suceder que toda essa criminalidade se inscreva numa determinada fase de vida,
que futuramente será ultrapassada, o que será indiciado pela vivência prisional,
marcada pela «penosidade e ansiedade face às repercussões que toda a situação
tem acarretado para si e para a família e face às implicações que a (…)
condenação (…) introduzirá na sua vida», como se acentua no Relatório Social,
que também põe em destaque, as suas competências pessoais e profissionais e a
rede de apoio familiar e comunitária de que dispõe, «capazes de funcionarem como
elementos protectivos e facilitadores do seu ajustamento e reinserção social.»
Deste modo, cremos que a pena única fixada peca por uma certa excessividade,
sendo mais adequado fixar-lhe a pena conjunta em 14 anos de prisão, uma pena
suficientemente expressiva da reprovação global que merece a sua conduta.
Assim, quanto a este aspecto, o recurso merece provimento.
(...)”.
2.3 – Na sequência, o arguido interpôs recurso para este Tribunal ao abrigo do
disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, delimitando o seu objecto nos
seguintes termos:
“(...)
1) É inconstitucional interpretação do artigo 400º, nº 1, alínea c),
do artigo 434º, do 410º, nº 3, do artigo 123º, nºs 1 e 2, e dos artigos 363º e
364º do Código de Processo Penal no sentido de que as deficiências graves da
gravação de praticamente todos os depoimentos fundamentais prestados na
audiência de discussão e julgamento, comprovadas na própria transcrição
constante dos autos, se tratam de mera irregularidade e não merecem apreciação
pelo Supremo Tribunal de Justiça, por resultarem violados a garantia do próprio
duplo grau de jurisdição, o cerne dos direitos e garantias fundamentais de
defesa do arguido, e a equidade processual, ou seja, o consagrado nos artigos
20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como no
artigo 6º nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, e ainda nos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos
do Homem.
2) É ilegal e inconstitucional admitir-se validade ao julgamento
quando este não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado,
impossibilitando o arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada
a decisão proferida sobre a matéria de facto, por violação dos artigos 363º,
364º, 399º, 410º, nº 3, e do próprio artigo 428º do Código de Processo Penal,
evidenciando-se a violação do artigo 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição
da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
3) É ilegal e inconstitucional aplicação do artigo 283º, nº 3, alínea
d), para que remete o artigo 315º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, no
sentido de limitar o arguido – como o foi – a cinco testemunhas abonatórias das
20 arroladas em contestação, tal como é inconstitucional interpretação do artigo
434º daquele mesmo diploma legal no sentido de não merecer aquele atropelo à Lei
apreciação em sede de recurso, atento dele resultar preclusão indevida das
garantias de defesa do arguido e persistir evidente violação do princípio da
presunção de inocência, ou seja, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º,
nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como da equidade e
igualdade processuais previstas no artigo 6º, nºs 1, 2 e 3, alínea b), da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda de quanto resulta dos artigos
10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
4) É inconstitucional entendimento dos artigos 434º e 410º, nº 2, do
Código de Processo Penal, vertido no Acórdão recorrido, no sentido de vedar ao
arguido o exercício efectivo do direito fundamental de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça de acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação
sobre os vícios previstos naquele segundo preceito legal, quando esses mesmos
vícios resultam do próprio acórdão do Tribunal da Relação na apreciação que faz
sobre a prova e na sua decisão sobre a matéria de facto provada, por violação
dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República
Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal
dos Direitos do Homem.
5) Interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127º do
Código de Processo Penal admitindo-se que o Julgador possa, de forma patente nos
acórdãos condenatórios, proceder a uma valoração puramente subjectiva da prova
para suprir insuficiência de elementos probatórios e possa, sem fundamento
concreto e objectivo, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos
cientificamente atestados são inconstitucionais, por violação do artigos 32º,
nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1
e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tal como do artigo 11º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
6) Fazer depender uma apreciação efectiva da suscitada violação do
princípio in dubio pro reo e do princípio da presunção de inocência de uma
efectiva consideração dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de
Processo Penal, a que, por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça não procede
por entender ser bastante o recurso em sede de matéria de facto para o Tribunal
da Relação, ainda que persistam, como suscitado, aqueles vícios no acórdão
desta, constitui violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, e 13º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8º e 11º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem.
7) Dar-se como provado facto, em desfavor do arguido, com base em
desconhecimento ou dúvidas das testemunhas constitui violação do princípio da
presunção de inocência e, assim, do artigo 32º, nº 2, da Constituição da
República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
8) É inconstitucional interpretação do artigo 349º do Código Civil e
do artigo 125º do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal,
na falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de
apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado facto, por violação
do artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do
artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos
10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
2.4 – Por despacho, de 13 de Agosto de 2008, o relator, no tribunal a quo,
considerou o recurso inadmissível, não o tendo admitido.
Essa decisão encontra-se fundamentada do seguinte modo:
“Não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Na verdade, quanto às pretensas deficiências da gravação, o recorrente não
indicou o sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas
do Código de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade,
por violadora de normas e princípios constitucionais, nomeadamente o direito de
defesa. Mais precisamente: em que é que o considerar-se a deficiência da
gravação como simples irregularidade, devendo ser arguida nos termos e prazo do
art. 123.° do CPP (o que ele não fez), afronta o aludido direito de defesa.
Além disso, o recorrente invoca violação do duplo grau de jurisdição, quando
esse duplo grau foi garantido, pelo que a sua alegação é manifestamente
improcedente.
Relativamente à limitação de testemunhas, este Tribunal não conheceu da questão,
por dizer respeito a questão interlocutória. Além disso, tendo sido suscitada e
decidida durante a audiência de julgamento, o recorrente não reagiu, deixando
transitar em julgado a respectiva decisão.
Com respeito aos vícios do art. 410.°, n.º 2, o recorrente também não explicitou
em que sentido é que a interpretação feita colide com qualquer norma ou
princípio constitucional, sendo certo que foi assegurado o duplo grau de
jurisdição em matéria de facto.
Em relação ao art. 127.°, o recorrente também não explicitou em que sentido é
que a decisão recorrida adoptou uma interpretação dessa norma que infringisse as
normas ou princípios constitucionais. Para além de que o que ele impugna é a
própria decisão, com a qual está em discordância.
O mesmo se verifica em relação à pretensa violação do princípio in dubio pro
reo.
Relativamente à pretensa violação do art. 349.° do Código Civil e 125.° do
Código de Processo Penal, o recorrente igualmente põe em cheque a decisão
recorrida e não qualquer interpretação de norma substantiva ou adjectiva que
tenha violado norma ou princípio constitucionais.
Por todas estas razões sumariamente expostas o recurso não é admissível”.
2.5 – Discordando desse despacho, o arguido reclamou nos termos supra
descritos, deixando consignada a argumentação que se transcreve:
“1º Os mesmos juízos de ilegalidade e inconstitucionalidade que justificaram a
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão de 15 de Julho
da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça haviam sido suscitados quer no
recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra do Acórdão de 30 de
Março de 2007 do 1º Juízo Criminal de Viseu, quer no recurso interposto do
Acórdão de 28 de Novembro de 2007 do Tribunal da Relação de Coimbra para o
Supremo Tribunal de Justiça.
2º O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça mereceu parcialmente
procedência, com redução da pena única de prisão ao arguido de 16 para 14 anos
de prisão, mas persistiram os mesmos juízos atentatórios da Constituição da
República Portuguesa, tal como da própria Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, tornando inevitável a sua submissão à apreciação do Tribunal
Constitucional.
3º Pelo despacho ora sob reclamação, proferido em 13 de Agosto de 2008, a 5ª
Secção do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso para o Tribunal
Constitucional do seu Acórdão de 15 de Julho de 2008, referindo, sumariamente,
relativamente a todos e cada um dos juízos cuja inconstitucionalidade tem vindo
sempre a ser suscitada, que o arguido não indicou, no requerimento de
interposição do recurso, em que medida as normas em causa colidem, na
interpretação e aplicação feitas e mantidas pelo Supremo Tribunal de Justiça,
com preceitos e princípios constitucionais.
4º Os juízos são os que se seguem, como constantes do requerimento de
interposição de recurso, que respeitou os requisitos previstos nos artigos 70º e
75º-A da lei do Tribunal Constitucional, não podendo o arguido concordar com os
argumentos do Supremo Tribunal de Justiça para a rejeição do recurso, pelas
razões que passa a expor.
5º As violações de preceitos e princípios constitucionais afiguram-se-nos
flagrantes, sendo logo o primeiro entendimento cuja inconstitucionalidade tem
vindo a ser suscitada, mas sempre mantido, da maior gravidade, porque
profundamente atentatório das garantias elementares de defesa e da equidade
processual num Estado de Direito.
9) É inconstitucional interpretação do artigo 400º, nº 1, alínea c), do
artigo 434º, do 410º, nº 3, do artigo 123º, nºs 1 e 2, e dos artigos 363º e 364º
do Código de Processo Penal no sentido de que as deficiências graves da gravação
de praticamente todos os depoimentos fundamentais prestados na audiência de
discussão e julgamento, comprovadas na própria transcrição constante dos autos,
se tratam de mera irregularidade e não merecem apreciação pelo Supremo Tribunal
de Justiça, por resultarem violados a garantia do próprio duplo grau de
jurisdição, o cerne dos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido,
e a equidade processual, ou seja, o consagrado nos artigos 20º, nº 4, 32º, nºs 1
e 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como no artigo 6º nºs 1 e 3,
alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos
artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
10) É ilegal e inconstitucional admitir-se validade ao julgamento quando este
não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o
arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida
sobre a matéria de facto, por violação dos artigos 363º, 364º, 399º, 410º, nº 3,
e do próprio artigo 428º do Código de Processo Penal, evidenciando-se a violação
do artigo 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal
como do artigo 6º, nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal
dos Direitos do Homem.
6º Rejeitou o Supremo Tribunal de Justiça o recurso para o Tribunal
Constitucional nesta parte com o fundamento de que:
“... quanto às pretensas deficiências da gravação, o recorrente não indicou o
sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código
de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade, por
violadora de normas e princípios constitucionais, nomeadamente o direito de
defesa.”
7º Ora, salvo o muito e devido respeito, o teor do requerimento de interposição
de recurso, supra transcrito, é preciso, dando pleno cumprimento ao disposto no
artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
8º Para mais, quer no recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra do Acórdão
condenatório de 1ª Instância, proferido em 30 de Março de 2007 pelo 1º Juízo
Criminal de Viseu, quer no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão
de 28 de Novembro de 2007 do Tribunal da Relação de Coimbra foi suscitada a
mesma questão, persistindo neste processo violação grave da Constituição da
República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
9º As deficiências gravíssimas da gravação da audiência de discussão e
julgamento neste caso, constatadas e comprovadas nos autos (cassetes e própria
transcrição), persistem como questão gravíssima, que, embora tenha sido
suscitada logo no recurso para o Tribunal da Relação, não foi considerada.
10º Estranha-se que se diga ainda, no próprio despacho sob reclamação, que,
sendo inaudíveis todas as perguntas de praticamente todos os depoimentos
prestados em audiência (desde logo de todos os depoimentos das testemunhas de
acusação, ofendida incluída), foi garantido ao arguido o efectivo duplo grau de
jurisdição.
11º Não se trata de inaudição de uma ou duas perguntas, tão pouco de um ou dois
depoimentos de menor (conclusão em si relativa) importância, mas sim, neste
caso, com flagrante e comprovada maior gravidade, de TODOS os depoimentos das
testemunhas de acusação.
12º O duplo grau de jurisdição e o direito fundamental de defesa não podem ser
mera ilusão, sendo evidente, neste caso, com persistência da prova nos autos
(cassetes e transcrição) que o arguido se viu ilegalmente – e com indiferença
–coarctado gravemente no direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a
decisão sobre a matéria de facto.
13º Perguntar-se-á como foi possível ao Tribunal da Relação de Coimbra uma
reapreciação da decisão sobre a matéria de facto face à ausência/inaudição da
prova testemunhal produzida em julgamento.
14º Limitou-se o Tribunal da Relação a pronunciar-se sobre esta questão dizendo
que se conseguem deduzir quais fossem as perguntas em falta, todas inaudíveis,
mesmo que a respostas como “Sim”, “Não”, “Talvez”, “Não vi isso”.
15º Ou seja, entendeu o Tribunal da Relação que uma efectiva reapreciação da
decisão sobre a matéria de facto, para mais estando em causa acusações graves
como a de homicídio qualificado na forma tentada, coacção grave e até violação e
sequestro, se basta com presumir, adivinhar perguntas e, com estas, o exacto
sentido e teor das respectivas respostas de todas as testemunhas.
16º Como compreenderão V. Ex.ªs, esta questão afigura-se-nos muito grave,
atentatória do direito fundamental de defesa, com preclusão da própria garantia
do duplo grau de jurisdição, persistindo nos autos uma transcrição em que as
perguntas do Tribunal Colectivo, do Magistrado do Ministério Público, do
mandatário do arguido e do mandatário da ofendida se resumem constantemente a
meras reticências.
17º No Acórdão de 15 de Julho de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça
pronunciou-se sobre a questão referindo que se trata de mera irregularidade e,
com visto no próprio despacho sob reclamação, desconsiderando as deficiências
gravíssimas da gravação do julgamento para efeitos de garantia do duplo grau de
jurisdição e exercício efectivo do direito de defesa pelo arguido.
18º Não podemos concordar com tal entendimento, como levado à consideração e à
apreciação do Tribunal Constitucional no requerimento de interposição de
recurso.
19º Entende o Supremo Tribunal de Justiça que a inaudição de algumas respostas e
de todas as perguntas em praticamente todos os depoimentos prestados em
audiência se trata de mera irregularidade e que, assim sendo, deveria ter sido
suscitada pelo arguido no próprio acto ou, se a este não tivesse o arguido
assistido, nos três dias úteis seguintes a contar daquele em que tivesse sido
notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele
praticado, nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal.
20º Como poderia o arguido, que esteve presente e representado por mandatário
nas várias sessões de julgamento, antecipar, adivinhar ou prever que a gravação
não estava a ser ou ficaria correctamente feita?!
21º Se se entende que se trata de mera irregularidade a deficiência grave a este
ponto da gravação, sendo o regime a aplicar o do artigo 123º do Código de
Processo Penal, como podia o arguido, presente no acto, em boa verdade e
coerência, suscitar gravação deficiente em curso?
22º Até nisto, e salvo o devido respeito, se evidencia a incoerência do
entendimento em causa, justificando interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional pela afronta ao cerne do direito de defesa do arguido, ao lhe ser
recusado o próprio duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
23º Acresce que do nº 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal resulta
também poder o Tribunal ordenar oficiosamente a reparação de qualquer
irregularidade – se assim consideram a falta da devida documentação da audiência
e da prova – no momento em que da mesma tomasse conhecimento, quando ela afectar
o valor do acto praticado.
24º As deficiências graves da gravação, com falta de documentação de quase toda
a prova, resultam dos autos e foram suscitadas no recurso interposto para o
Tribunal da Relação, a que o Senhor Procurador do Tribunal Judicial de Viseu
respondeu, mas sem que fosse reparada a dita mera irregularidade.
25º Nenhum valor tem o julgamento quando a prova produzida não foi gravada, não
se ouve, vedando ao arguido o exercício efectivo do direito de defesa e ver
efectivamente reapreciada a decisão sobre a matéria de facto.
26º Para melhor ilustrar o caso em apreço, importa referir que, para maior
gravidade, como levado, com o mesmo pormenor, ao conhecimento e à apreciação do
Tribunal da Relação, tal como do Supremo Tribunal de Justiça, as cópias das
gravações magnetofónicas da audiência de discussão e julgamento, apesar de logo
solicitadas, apenas foram facultadas pelo Tribunal Judicial de Viseu à actual
mandatária do arguido em 10 de Abril de 2007, dez dias após a prolação do
Acórdão condenatório de 30 de Março de 2006.
27º Ficou o arguido, objectivamente, com menos de 6 dias (e, isto, porque o
termo do prazo peremptório ocorrido de 15 dias terminava a um sábado, 14 de
Abril de 2007) para preparar o recurso e, assim, desde logo gravemente limitado
no exercício do seu direito fundamental de defesa, com violação de quanto se
encontra consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República
Portuguesa e, com muita precisão, no artigo 6º, nº 3, alínea b), da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, como direito mínimo do arguido com vista a
assegurar a equitatividade processual (dispor de meios e tempo para preparação
da sua defesa).
28º Por alguma razão, prevê já o actual Código de Processo Penal, expressamente,
que as cópias da gravação do julgamento deverão ser cedidas pelo Tribunal de 1ª
Instância num prazo máximo de 48 horas, sendo, para mais, hoje o prazo para
recurso sobre a matéria de facto dada como provada de 30 dias, em vez dos 15
dias à data.
29º Ouvidas as cópias da gravação do julgamento, deparámos com graves
deficiências, que, inevitavelmente, comprometiam a impugnação e possibilidade de
reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, como levado, com
pormenor na descrição e identificação dos depoimentos, à consideração do
Tribunal da Relação.
30º Como referido e resulta provado nos autos, as deficiências existentes em
algumas das cassetes e em todos os depoimentos fundamentais resultam em se
ouvirem, por vezes, as respostas dos depoentes, mas nunca as perguntas do
Tribunal, Ministério Público e mandatários, o que torna, obviamente, impossível
perceber e contextualizar aquelas respostas, que muitas vezes, se limitam a um
“sim”, “não”, “talvez”, “não vi”, ou seja, muitas vezes apenas confirmação ou
negação de perguntas que, como bem se vê na própria transcrição, não se ouvem e
conhecem minimamente.
31º O visionamento da transcrição tornou-se imperioso atendendo ao facto de o
Senhor Procurador de 1ª Instância ter vindo invocar, em resposta ao recurso para
o Tribunal da Relação, ser perfeitamente audível e estar totalmente gravada a
prova em audiência, para surpresa de quem, nas cópias efectuadas forçosamente
pelo próprio Tribunal de Viseu, nada ouvia, deparando, inclusive, com ausência
total de gravação de depoimentos e sessões de julgamento, como pormenorizado e
concretizado no recurso.
32º Ora, pese embora se confirmem afinal na transcrição as deficiências
gravíssimas na gravação como descritas nos recursos, deparou o arguido, na
pessoa na sua mandatária, ao visionar aquela transcrição efectuada pelo
Tribunal, com a existência de 20 cassetes de gravação de julgamento, e não
apenas as 15 cassetes que o Tribunal Judicial de Viseu facultara ao arguido,
como sendo a totalidade da gravação solicitada.
33º Não podíamos deixar de referir tais factos perante V. Ex.ªs, pois bem
ilustram a gravidade maior da forma como o arguido foi indevida e ilegalmente
limitado no exercício do direito fundamental de recurso, no cerne do exercício
do seu direito elementar de defesa, saindo comprometida, neste caso, com
persistência nas decisões proferidas, as garantias e a equidade processual
indispensáveis à própria realização de Justiça.
34º Já no recurso do arguido para o Tribunal da Relação referíamos que, atenta a
deficiente gravação, não havia forma possível de se saber o que era dito pelo
Tribunal e ao que exactamente estavam a responder as testemunhas e as próprias
alegadas ofendidas, ficando assim na ausência e desconhecimento dos elementos de
prova que sempre tinha e tem o arguido direito a que sejam reapreciados, em
respeito pelas suas garantias fundamentais de defesa.
35º Estava e está em causa a garantia do duplo grau de jurisdição e o cerne dos
direitos e garantias de defesa do arguido, como consagrados no artigo 32º, nº 1
e nº 5 da Constituição da República Portuguesa, tal como, visivelmente, no
artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
36º Como levado à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da
Relação diminuiu a importância da própria gravação da prova em julgamento
referindo, no seu Acórdão de 28 de Novembro de 2007, que:
“é na prova produzida oralmente em audiência que o Tribunal recorrido forma a
sua convicção, constituindo o registo, apenas, um meio de controlo do julgamento
efectuado com base na oralidade e imediação. (...) trata-se de cópias fornecidas
ao recorrente, extraídas dos originais gravados durante a audiência, durante a
qual não foram suscitadas quaisquer dúvidas sobre a gravação efectuada”
37º Como também se referiu perante o Supremo Tribunal de Justiça, no recurso
interposto daquele Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, atentas aquelas
conclusões sobre a questão em apreço, parecia tal Tribunal demitir-se a priori
de uma verdadeira e efectiva reapreciação da prova e matéria de facto, reduzindo
a gravação da prova em audiência a um mero registo e meio de controlo do
julgamento, a que nada haverá, à partida, a apontar.
38º E, a entender-se que as comprovadas falhas graves deveriam ser suscitadas
durante a audiência de julgamento, como poderia e conseguiria o arguido nessa
altura antecipar que a gravação viria a constatar-se ter sido mal feita?!
39º Foi também levada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça a
inconsistência e contradição da conclusão do Tribunal da Relação sobre esta
questão, quando começa por referir que toda a prova está perfeitamente gravada e
que não há defeito que inquine o recurso da matéria de facto, para logo depois
dizer que:
“De qualquer forma o recorrente apenas refere que são imperceptíveis algumas
“perguntas” formuladas. O que é diferente das “respostas” dadas a essas
perguntas. Sendo certo que são as declarações e não as perguntas prestadas que
constituem meios de prova. E embora algumas das perguntas formuladas não estejam
efectivamente transcritas, elas resultam perfeitamente perceptíveis das
correspondentes respostas dadas às perguntas.”
40º Ou seja, como se evidencia, que a garantia do duplo grau de jurisdição se
basta com adivinhar perguntas e o exacto teor de respostas a perguntas que não
se ouvem.
41º Ainda para melhor precisar o caso e a gravidade da questão em apreço, como
referido, com pormenor, no recurso para a Relação e para o Supremo Tribunal de
Justiça, resultando da transcrição requerida ao 1º Juízo Criminal de Viseu e
efectuada por entidade credenciada para o efeito, não se ouvem minimamente as
perguntas em todo o interrogatório, tal como o exercício do contraditório, a:
1. BB (cassetes 3, 4 e 5)
2. HH (cassete 6)
3. II (cassete 7)
4. JJ (cassete 7)
5. LL (cassete 8)
6. MM (cassete 8)
7. NN (cassetes 8 e 9)
8. OO (cassete 9)
9. PP (cassete 9)
10. Agente da PSP QQ Aparício
(cassete 10)
11. RR (cassete 11)
12. SS (cassete 11)
13. TT (cassetes 11 e 12), todas
testemunhas de Acusação
42º Não se trata de deficiência pequena e inócua, mas sim de deficiência grave
da gravação de praticamente todos os depoimentos - todos os das ofendidas e
testemunhas de acusação em que se baseou o 1º Juízo Criminal do Tribunal
Judicial de Viseu para condenar o arguido.
43º Como já dizíamos supra e foi referido perante o Supremo Tribunal de Justiça,
é do senso e lógica comuns e resulta da gravação e respectiva transcrição nos
autos que “sim”; “não”, “talvez”, “não sei se foi assim”, “não foi isso que vi”,
“não me pareceu”, “baixou-se”, etc não constituem resposta ou declaração
perceptível sem que se ouça e perceba a respectiva pergunta.
44º Como resultava expressamente do recurso interposto nessa matéria perante o
Tribunal da Relação de Coimbra, o recorrente fê-lo com as maiores limitações –
invocadas ponto a ponto e desde o início – e porque o erro notório, a
contradição e a insuficiência para a matéria de facto dada como assente decorria
do próprio Acórdão de 1ª Instância, tal como agora do Acórdão do Tribunal da
Relação, que seguiu na íntegra o que Viseu decidiu, na impossibilidade evidente
de proceder a uma efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
45º A deficiência grave da gravação para efeitos de reapreciação da matéria de
facto em recurso determina a repetição inevitável do julgamento para garantia do
direito fundamental de defesa, em prol da realização de Justiça num processo
equitativo.
46º Está em causa a garantia do duplo grau de jurisdição e o cerne dos direitos
e garantias de defesa do arguido, tal como a equidade processual, com violação
dos artigos 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa,
tal como no artigo 6º nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, e ainda nos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal
dos Direitos do Homem.
47º Suscitadas perante o Supremo Tribunal de Justiça tal questão de direito e a
afronta que o entendimento vertido e seguido no próprio Acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra consubstancia à Constituição da República Portuguesa,
limitou-se o Tribunal ora reclamado a repetir que a deficiência grave da prova
em julgamento comprovada nos autos se reconduz a uma mera irregularidade, a
suscitar nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal, ou seja, pelo
arguido presente em julgamento, antecipando este, assim, como pudesse, a
constatação de uma deficiente gravação/documentação da audiência e da prova.
48º O teor do requerimento de interposição de recurso é preciso no entendimento
cuja inconstitucionalidade é suscitada perante o Tribunal Constitucional e
sempre tem vindo a ser suscitada nos autos, atento o que deles resulta e o teor
das decisões proferidas a propósito.
49º No despacho sob reclamação, refere o Supremo Tribunal de Justiça a fim de
rejeitar o recurso para o Tribunal Constitucional que o duplo grau de jurisdição
foi garantido, o que, com visto, sempre foi posto, justamente e de forma
consistente, em causa pelo arguido, seja perante o Tribunal da Relação, seja
perante o Supremo Tribunal de Justiça.
50º É a garantia do duplo grau de jurisdição e a plenitude das garantias de
defesa do arguido que estão, desde logo, em causa face ao entendimento de que
deficiências graves na gravação da prova em julgamento não relevam para uma
efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e o exercício efectivo
do direito de recurso, sendo mera irregularidade, de importância menor.
11) É ilegal e inconstitucional aplicação do artigo 283º, nº 3, alínea d),
para que remete o artigo 315º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, no
sentido de limitar o arguido – como o foi - a cinco testemunhas abonatórias das
20 arroladas em contestação, tal como é inconstitucional interpretação do artigo
434º daquele mesmo diploma legal no sentido de não merecer aquele atropelo à Lei
apreciação em sede de recurso, atento dele resultar preclusão indevida das
garantias de defesa do arguido e persistir evidente violação do princípio da
presunção de inocência, ou seja, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º,
nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como da equidade e
igualdade processuais previstas no artigo 6º, nºs 1, 2 e 3, alínea b), da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda de quanto resulta dos artigos
10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
51º Consta dos autos que das 20 testemunhas arroladas na contestação só cinco
prestaram declarações, pese embora todas aquelas 20 tenham sido previamente
indicadas aos factos.
52º Já o Tribunal da Relação dizia, no Acórdão de 28 de Novembro de 2007, que se
tratou tão somente de dar cumprimento do disposto no artigo 315º, nº 4, do
Código de Processo Penal, ou seja, convite ao arguido para indicar quais das 20
que arrolou seriam tão somente abonatórias.
53º Se assim foi, menos se compreende como o arguido tenha ficado sim,
peremptoriamente, limitado a essas 5 testemunhas, ou seja, como a descoberta da
verdade e boa decisão da causa ficaram, a final, limitadas a 5 testemunhas das
20 indicadas pelo arguido aos factos.
54º Remeteu o Tribunal da Relação o problema – constatado – para o mandatário
constituído à data, dando a crer, como resulta também do Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça recorrido, que, se em plena audiência de julgamento, foram
violadas garantias e direitos constitucionais do arguido, tal como os direitos
humanos, e o mandatário nada disse na altura, o problema ficaria como que
sanado.
55º Mas o Tribunal rege-se, na função maior de julgar, por princípios
fundamentais, como o da descoberta da verdade material, para boa e justa decisão
da causa.
56º Será, assim, atentatório da própria Constituição da República Portuguesa
considerar-se que, se os direitos humanos e fundamentais do arguido foram
violados pelo Tribunal, o problema ficou sanado por o arguido não ter reagido à
data, como se o interesse na descoberta da verdade e na realização de Justiça
fosse apenas do arguido, que não minimamente do próprio Tribunal.
57º Determinar-se que o arguido desse cumprimento ao disposto no artigo 283º, nº
3, alínea d), indicando quais, das 20 testemunhas arroladas na contestação,
iriam depor apenas em abono do arguido é coisa bem distinta do que sucedeu,
reduzindo-se, ilegalmente, a defesa do arguido a 5 testemunhas abonatórias e não
chamando a audiência as 15 restantes testemunhas arroladas na contestação e
notificadas para comparecer, para esclarecimento dos factos e descoberta da
verdade.
58º A questão, porque de direito, legalidade, constitucionalidade e respeito
pela equidade processual, foi levada à apreciação do Supremo Tribunal de
Justiça, mas, como consta do despacho sob reclamação, este não a apreciou.
59º Entende o Supremo Tribunal de Justiça que se trata de questão que não lhe
cabe conhecer, mas é uma questão de direito e legalidade, sendo que a
inconstitucionalidade do entendimento sobre a limitação da prova testemunhal de
defesa a 5 testemunhas foi suscitada, persiste o mesmo entendimento nos autos,
cabendo ora ao Tribunal Constitucional apreciar a sua pertinência.
60º Não concordamos, assim, com a rejeição do recurso também nesta parte pelo
Tribunal recorrido porque foram cumpridos todos os requisitos previstos no
artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, explicitando o recorrente o
entendimento legal cuja inconstitucionalidade foi suscitada perante o Supremo
Tribunal de Justiça.
12) É inconstitucional entendimento dos artigos 434º e 410º, nº 2, do Código
de Processo Penal, vertido no Acórdão recorrido, no sentido de vedar ao arguido
o exercício efectivo do direito fundamental de recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça de acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação sobre os
vícios previstos naquele segundo preceito legal, quando esses mesmos vícios
resultam do próprio acórdão do Tribunal da Relação na apreciação que faz sobre a
prova e na sua decisão sobre a matéria de facto provada, por violação dos
artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República
Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal
dos Direitos do Homem.
61º Refere o Tribunal recorrido e ora reclamado que foi assegurado o duplo grau
de jurisdição ao arguido.
62º Como supra exposto, evidencia-se, neste processo, que tal não sucedeu.
63º A prova produzida em julgamento não está devidamente documentada, tendo o
arguido sido, ilegal e inconstitucionalmente, impedido de efectivamente impugnar
a decisão sobre a matéria de facto e vê-la efectivamente reapreciada pelo
próprio Tribunal da Relação de Coimbra.
64º No próprio recurso interposto para o Tribunal da Relação suscitou o arguido
esse impedimento, pormenorizando, ponto por ponto, a ausência de documentação
dos elementos de prova carreados para os autos em julgamento, para efeitos de
uma efectiva impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e da
sua condenação por via do expediente fundamental de recurso.
65º Persiste, neste caso e processo concretos, com evidência e prova na própria
gravação da prova produzida em julgamento e na respectiva transcrição, uma
violação grosseira dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição
da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
66º O Tribunal da Relação deu simplesmente como incensurável a decisão sobre a
matéria de facto e a condenação do arguido em 1ª instância, colando a esta a sua
decisão e considerando irrelevante o pleno e efectivo conhecimento da prova
produzida em julgamento.
67º Praticamente todos os depoimentos das testemunhas de acusação, ofendida
incluída, são inaudíveis em todas as perguntas feitas e, assim, no exacto teor
das respostas.
68º Afigura-se-nos inédito que, ainda assim, em situação tão grave, não se tenha
determinado a repetição do julgamento para a devida documentação de toda a
prova, com vista a assegurar ao arguido o seu legítimo direito de defesa e o
exercício efectivo do direito de recurso.
69º O Tribunal da Relação não pôde conhecer verdadeiramente a prova produzida,
mas isso foi considerado irrelevante e, ainda assim, proferido Acórdão, que, na
impossibilidade de uma efectiva reapreciação do caso, se bastou com uma mera
colagem ao decidido em 1ª instância.
70º Ora, assim sendo e comprovada que está nos autos a ausência da devida
documentação da audiência de discussão e julgamento, com maior gravidade neste
caso, não deixa de nos surpreender que se continue a insistir ter sido
assegurado o duplo grau de jurisdição.
71º O arguido não teve direito a uma efectiva reapreciação da decisão sobre a
matéria de facto e da sua condenação por uma 2ª instância.
72º Concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, na página 31 do Acórdão recorrido,
que:
“...pretendendo interpor-se recurso de acórdão final do tribunal colectivo (ou
de júri, na redacção actual) quanto à matéria de facto, seja por via da
impugnação da apreciação e valorização da prova produzida, seja por meio da
alegação de vícios do art. 410.º, nº 2, tal recurso há-de ser dirigido ao
Tribunal da Relação, que é uma instância que aprecia matéria de facto e de
direito, ao invés do STJ que aprecia explosivamente matéria de direito. A
decisão da 2ª instância é definitiva quanto a tal matéria, não podendo
reeditar-se no recurso para o STJ as razões que fundaram a alegação desses
vícios para a Relação e que já foram apreciadas.”
73º Sucede que, neste caso, com evidência e prova nos próprios autos, a Relação
demitiu-se de efectivamente reapreciar a decisão sobre a matéria de facto, fosse
de que forma fosse, sendo demonstração maior disso a indiferença expressa para
com o facto de a prova produzida em julgamento não estar devidamente documentada
para seu conhecimento e para uma real e verdadeira reapreciação.
74º O arguido não teve no Tribunal da Relação uma 2ª instância para efectiva
reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e da sua condenação.
75º E, ainda assim, invoca o Supremo Tribunal de Justiça que foi garantido o
duplo grau de jurisdição e a decisão (ou falta de pronúncia e decisão efectivas)
da Relação é definitiva.
76º O Tribunal da Relação limitou-se a dar como assente a decisão de 1ª
instância e, por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça invoca que o arguido
pôde recorrer para o Tribunal da Relação, como se o direito a um recurso
efectivo se bastasse com a ilusão dele.
77º O arguido começou a suscitar a impossibilidade de exercer efectivamente
direito de recurso e, com este, o seu legítimo direito de defesa no próprio
recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Coimbra.
78º Parece continuar a ser indiferente, neste caso, que o arguido veja
minimamente assegurado o direito fundamental de defesa.
79º Peca o processo por falta de equidade e garantias de defesa ao arguido,
indispensáveis que são à própria realização de Justiça.
80º Defende e recomendava o Supremo Tribunal de Justiça, em notas de reflexão
imediatamente anteriores à entrada em vigor das alterações últimas ao Código
Penal e ao Código de Processo Penal[1]:
“Assunção do pressuposto de que o direito de recurso constitui uma garantia
constitucional de defesa, e um corolário da garantia de acesso ao direito e aos
tribunais mas deve subordinar-se a uma desígnio de celeridade associado à
presunção de inocência e à descoberta da verdade material”, reforçando que “O
processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso
(Constituição, garantias de processo criminal, art. 32º, nº 1)”
81º Mais fez constar, avisadamente, o Supremo Tribunal de Justiça, nas mesmas
notas de reflexão:
“constatação de que ainda estamos longe, na prática, do efectivo recurso da
matéria de facto que a revisão de 1998 visou consagrar deslocando para as
Relações, com amplos poderes de cognição nesta matéria, a competência para a
apreciação dos recursos das decisões do tribunal colectivo”, que veio a ser
reforçada “com a documentação alargada da prova e a apreciação das gravações
pelas Relações”.
“A experiência do STJ com múltiplas anulações de decisões das Relações por
insuficiente decisão da questão de facto, com refúgio nos princípios da livre
apreciação da prova da oralidade e da imediação, como obstáculos ao efectivo
grau de jurisdição em matéria de facto, devem alertar-nos para esse problema
real.”
82º No Acórdão recorrido, pág. 31, o Supremo Tribunal de Justiça invoca,
aplicando-o ao caso concreto, que:
“Recente jurisprudência do STJ tem considerado que a norma do art. 410º do CPP
deve ser interpretada restritivamente, não sendo aplicável aos recursos
referidos na alínea d), do artigo 432º. Parece-nos acertada esta orientação,
pois, se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410.º
e houver razões para crer que a renovação da prova permitirá evitar o reenvio do
processo, a relação deve desde logo proceder à sua renovação. Acresce que tendo
havido documentação da prova, o tribunal da relação pode também decidir com base
na prova documentada, o que o STJ não pode fazer por não ter poderes de decisão
em matéria de facto.”
83º Tal entendimento tem como pressupostos a garantia de recurso efectivo para a
Relação em sede de matéria de facto e, como visto e é evidente, a própria
documentação da prova para uma efectiva e real decisão da Relação sobre aquela
matéria.
84º Daí que, no despacho sob reclamação, o Supremo Tribunal de Justiça tenha
invocado, como fundamento para rejeitar o recurso para o Tribunal
Constitucional, que “foi assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de
facto”.
85º Mas tal não sucedeu e a prova disso persiste evidente nos autos, sendo que,
ao mesmo tempo que alegadamente declara o Tribunal reclamado ter sido assegurado
o duplo grau de jurisdição, não contesta a falta da devida documentação da
audiência e da prova.
86º Neste caso concreto, a decisão de facto bastou-se com o entendimento e a
apreciação dos elementos de prova em 1ª instância, sem direito a um efectivo
segundo grau de jurisdição, sem direito a um efectivo recurso em sede de matéria
de facto.
87º O Supremo Tribunal de Justiça não se pronuncia nos termos do artigo 410º, nº
2, apesar de, com evidência nos autos, não ter sido assegurado, por via do
recurso para a Relação, o duplo grau de jurisdição em sede de decisão sobre a
matéria de facto.
88º É esse o entendimento com que não concordamos, como explícito no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, supra
transcrito, por dele resultar violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1
e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como dos artigos 6º, nº 1, e
13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º,
nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
13) Fazer depender uma apreciação efectiva da suscitada violação do princípio
in dubio pro reo e do princípio da presunção de inocência de uma efectiva
consideração dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo
Penal, a que, por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça não procede por
entender ser bastante o recurso em sede de matéria de facto para o Tribunal da
Relação, ainda que persistam, como suscitado, aqueles vícios no acórdão desta,
constitui violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição
da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, e 13º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8º e 11º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem.
89º Dá-se aqui como reproduzido tudo quanto foi levado à Vossa consideração
sobre os pontos anteriores e a forma como foi comprovadamente recusado ao
arguido, neste caso e processos concretos, o duplo grau de jurisdição em sede de
apreciação e decisão sobre a matéria de facto.
90º Refere o Tribunal recorrido e ora reclamado, na página 40 do Acórdão de 15
de Julho de 2008, que:
“o recorrente, ao levantar a questão da violação do princípio in dubio pro reo,
fá-lo mais uma vez como forma de encapotadamente atacar a apreciação e valoração
da prova produzida feitas pelas instâncias.”
91º E remete o Supremo Tribunal de Justiça para a apreciação feita da prova em
1ª instância e a suposta reapreciação da mesma pela Relação – aliás, como refere
o Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação limitou-se efectivamente a
“acolher” por inteiro a fundamentação e a decisão de 1ª instância.
92º O arguido não teve um processo equitativo e conforme às garantias de defesa
consagradas na Constituição da República Portuguesa e na Convenção Europeia dos
Direitos do Homem.
93º A audiência de julgamento e prova ali produzida, alvo de apreciação e
decisão na e para a condenação em 1ª instância, não foi devidamente documentada,
sendo as deficiências da gravação de maior relevo e gravidade neste caso.
94º Suscitadas e arguidas essas deficiências graves, comprovadas nos autos,
perante o Tribunal da Relação, este limita a sua pronúncia a uma inevitável
colagem à decisão de 1ª instância, como se com esta se bastassem aquelas
garantias de defesa do arguido em Portugal.
95º O Supremo Tribunal de Justiça invoca a apreciação da prova e a decisão sobre
a matéria de facto feitas pelo Tribunal da Relação, ou seja, remete para aquilo
que consubstancia sim ausência de pronúncia e de reapreciação efectiva da
decisão sobre a matéria de facto e a condenação do arguido.
96º Persiste a agrava-se neste processo a violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e
32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º,
nºs 1 e 2, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8º e
11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
14) Interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127º do Código
de Processo Penal admitindo-se que o Julgador possa, de forma patente nos
acórdãos condenatórios, proceder a uma valoração puramente subjectiva da prova
para suprir insuficiência de elementos probatórios e possa, sem fundamento
concreto e objectivo, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos
cientificamente atestados são inconstitucionais, por violação do artigos 32º,
nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1
e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda do artigo 11º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
97º Salvo o devido respeito, não vemos por que o Tribunal recorrido rejeita, em
primeira mão, o recurso para o Tribunal Constitucional também nesta parte, com o
argumento de que não foi explicitado no requerimento de interposição de recurso,
da forma transcrita, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que considera
inconstitucional.
98º O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
distingue-se da posterior alegação, cingindo-se aos requisitos previstos nos
artigos 70º e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
99º Como resulta do despacho sob reclamação, o Supremo Tribunal de Justiça não
contesta que resulte do Acórdão recorrido o entendimento supra transcrito,
suscitado quer no recurso para o Tribunal da Relação, quer no recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça e, ainda assim, mantido.
100º O Tribunal ora reclamado fundamenta a rejeição do recurso para o Tribunal
Constitucional dizendo que o recorrente “não explicitou em que sentido é que a
decisão recorrida adoptou uma interpretação dessa norma que infringisse as
normas ou princípios constitucionais.”
101º Mas bastará atentar no teor do requerimento de interposição de recurso para
se notar que o recorrente explicitou qual o exacto entendimento vertido no
Acórdão recorrido que considera inconstitucional e submete à apreciação do
Tribunal Constitucional.
102º Refere o Tribunal recorrido e ora reclamado que o que o recorrente pretende
é impugnar a própria decisão, ou seja, que o recorrente não concorda é com a
decisão.
103º Ora, é evidente que se o recorrente considera determinado juízo e
entendimento vertidos na decisão inconstitucionais, e os submete ao Tribunal
Constitucional, não concorda com a decisão.
104º O recorrente não concorda com a decisão nesse entendimento nela vertido.
105º Nem podia, obviamente, concordar, se considera consubstanciar violação da
Constituição da República Portuguesa.
106º E o entendimento em causa havia sido suscitado perante o Supremo Tribunal
de Justiça, que, no Acórdão recorrido, o considerou “arbitrário” e que “a
invocação da violação do art. 32º, nº 1 da Constituição é meramente
emblemática”.
107º Estranhamos que, num processo e caso como o ora em apreço, em que se
considerou irrelevante a própria falta da devida documentação da audiência e da
prova produzida, se possa dizer que a violação do artigo 32º, nº 1, da
Constituição é meramente emblemática.
108º O processo em causa é sim emblemático de violação grosseira do artigo 32,
nº 1, da Constituição da República Portuguesa, tal como, entre o mais, do artigo
6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
109º O entendimento em causa é preciso, está explícito no requerimento de
interposição de recurso e resulta do teor do Acórdão recorrido, proferido pelo
Supremo Tribunal de Justiça em 15 de Julho de 2008.
110º Apreciando o teor daquele Acórdão, páginas 35 a 38, com reprodução, a que o
Supremo Tribunal de Justiça anui, das conclusões da Relação de Coimbra, que, por
sua vez, consistem numa anuência acrítica à decisão de 1ª instância, não deixa
de se evidenciar uma valorização puramente subjectiva da prova para suprir
insuficiência de elementos probatórios, ao mesmo tempo que, da mesma forma
puramente subjectiva e até tendenciosa, porque sem fundamento concreto e
objectivo, se contrariou ou desatendeu na decisão de facto elementos objectivos
cientificamente atestados.
111º É o que se passou com a surpreendente e profundamente injusta prática do
crime de violação de que o arguido vinha acrescidamente acusado pela ofendida,
sua ex-namorada, e por que acabou mesmo condenado, à semelhança da prática do
crime de sequestro enquanto viveram juntos, contra tudo quanto é compreensível e
aceitável pelo homem médio minimamente atento.
112º O Tribunal recorrido cita, a propósito do princípio da livre apreciação da
prova, na página 34 do Acórdão de 15 de Julho de 2008, o Acórdão do TC nº
1165/96, de 19 de Novembro:
“…este princípio não é absoluto, e não se confunde com apreciação arbitrária,
discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador
deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de
avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente
susceptíveis de motivação e controlo”
113º Refere ainda, na página 33, com referência às palavras do Prof. Figueiredo
Dias (in Direito Processual Penal, Vol. I, 1974, págs. 202 e ss), que:
«Perante tal princípio da livre apreciação da prova, “uma das funções primaciais
de toda a sentença (maxime, da pena) é a de convencer os interessados do bom
fundamento da decisão. As considerações feitas dão exigência de que as
comprovações judiciais sejam sempre motiváveis.”»
114º Ora, de forma alguma isto sucede neste caso e processo.
115º A condenação do arguido por crimes como o de violação e o de sequestro da
sua ex-namorada enquanto namoraram não consegue impor-se como compreensível e
justa à própria comunidade, pois assenta em considerações que atentam seriamente
contra a lógica e o senso comuns, tecidas contra a prova produzida, com
desconsideração tendenciosa de depoimentos e até de prova científica de relevo
para a boa decisão da causa, sem fundamento concreto, objectivo e isento para
tal.
116º Não é uma condenação justa, coerente, e qualquer pessoa que tome e toma
contacto com a mesma e a sua fundamentação disso mesmo se apercebe.
117º O homem médio minimamente atento estranha, inevitavelmente, as conclusões
judiciais perfeitamente inverosímeis, sem suporte probatório consistente, e que
tenham sido desconsiderados, sem que se indique razão plausível, elementos de
prova outros, até de cariz científico, ou considerados parcialmente apenas no
que pudesse desfavorecer o arguido e coadunar-se com a sua condenação.
118º Mais grave se torna a forma como foi conduzido judicialmente o processo
quando até se negou ao arguido o próprio exercício efectivo do direito de
recurso, considerando-se irrelevante estar ou não a prova devidamente
documentada com vista a uma reapreciação da decisão de facto e da condenação do
arguido por 2ª instância.
119º O Supremo Tribunal de Justiça começa por se pronunciar sobre em quanto deve
consistir e limitar-se o princípio e o poder de livre apreciação da prova, mas
quando incide e se pronuncia, na sua decisão, sobre a forma como foi exercido
aquele “poder do julgador” neste caso persiste o entendimento cuja
inconstitucionalidade é levada à Vossa apreciação.
120º Mais se evidencia a adopção e persistência de entendimento atentatório da
Constituição quando o Supremo Tribunal de Justiça, a título de fundamento da sua
decisão e entendimento perfilhado neste caso, se refere ao que foi alegado e
suscitado a propósito pelo recorrente e reproduz a decisão do Acórdão do
Tribunal da Relação de Coimbra, anuindo à mesma.
121º É que a decisão do próprio Tribunal da Relação é elucidativa de que foram
efectivamente desconsiderados e contrariados elementos de prova, no todo ou em
parte, sem fundamento objectivo e motivação plausível para o efeito.
122º Da própria decisão do Tribunal da Relação, corroborando quanto e tudo o que
foi decidido em 1ª instância, consta uma apreciação puramente subjectiva,
indiferente a elementos de prova de cariz científico e depoimentos prestados por
testemunhas arroladas na contestação do arguido.
123º O 1º Juízo do Tribunal Judicial de Viseu extravasou efectivamente o “poder”
de livre apreciação da prova, evidenciando-se, neste caso, a discricionariedade,
condenando o arguido sem prova, contra a prova e desconsiderando elementos de
prova em quanto favorecessem a absolvição, desde logo no que respeita aos crimes
de coacção grave, de violação e de sequestro da namorada que vivia com o
arguido, convivendo com amigos e amigas deste, e a expensas do rapaz, mais novo
que ela.
124º O Supremo Tribunal de Justiça socorre-se, como exemplo, da condenação por
violação, que, reitere-se, é perfeitamente aberrante, injusta, sem suporte em
qualquer prova científica, na lógica e senso comuns.
125º Como resulta do próprio Acórdão recorrido, na pronúncia sobre a questão em
apreço, o rapaz foi condenado apenas com base nas declarações, em si
perfeitamente inverosímeis, da ofendida BB, que, por conta deste processo,
passou subitamente a vítima de violação por aquele que descreve em julgamento
como apenas um parceiro com quem tinha relações íntimas.
126º No Acórdão recorrido para o Tribunal Constitucional, faz o Supremo Tribunal
de Justiça, pronunciando-se sobre a aplicação feita do artigo 127º na apreciação
da prova e condenação do arguido, ao que foi invocado, concretamente, em sede de
conclusões, pelo recorrente:
56) Ao contrário do que referiu o Tribunal de Viseu –
ironizando, inclusive, despropositadamente a questão pertinente do uso e efeitos
dos anabolizantes – e o que refere agora o Tribunal da Relação, as oscilações da
libido, ou seja, falta de desejo, a atrofia e a impotência sexual, para além de
abundantemente publicitados a título de alerta, constam, com evidência, do
Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem a fls. 736, tal como do
subsequente Partial Agreement in the Social and Public Health Filed, do Conselho
da Europa, a fls738 e ss, sendo tal prova documental técnica de apreciação
vinculada.
57) Para além desses efeitos a nível do desempenho sexual
dos utilizadores de esteróides, constam também, como efeitos outros secundários
principais, hipertensão arterial e aumento de agressividade (vide mesmos
Relatório do Conselho Nacional de Andidopagem e Partial Agreement in the Social
and Public Health Field, a fls. 736 e ss), aos quais acresce, como é do senso
comum, o stress próprio de quem se dedica intensivamente, como era o caso do
arguido, a competições.
58) O Julgador não pode impor decisão contrária a factos
cientificamente atestados e publicitados, sem sequer invocar fundamento
objectivo e lógico concreto para esse decisão, sendo, para mais, os factos em
causa de relevo maior para a boa decisão da causa, revelando-se, na sua
desconsideração, insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto.
127º Considera o Supremo Tribunal de Justiça que pretende o recorrente fazer
desse Tribunal uma 3ª instância de apreciação de facto, mas o que
verdadeiramente está em causa, foi suscitado – e continua a ser, porque
justificado - é a forma como se deu aplicação ao artigo 127º do Código de
Processo Penal na apreciação da prova, extravasando em muito este princípio e
“poder” do julgador.
128º O que estava e está em causa é uma questão de legalidade e
constitucionalidade no âmbito de um processo criminal, que o Supremo Tribunal de
Justiça acaba por desconsiderar, tratando-a como se se tratasse de pretensão de
reapreciação da prova.
129º Mas o facto é que, ao fazê-lo, transcrevendo, para se pronunciar, o próprio
teor da decisão da Relação, veio reforçar a desconformidade da forma como os
Tribunais se socorreram do princípio da livre apreciação da prova neste processo
em desconformidade com os artigos 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República
Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem, e ainda do artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
130º Como referido no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça acaba por, expressamente, admitir
entendimento e aplicação daquela norma legal em desconformidade com preceitos e
princípios constitucionais.
131º Os efeitos dos esteróides anabolizantes foram debatidos em sede de
julgamento, em particular, a impotência sexual e oscilações da libido, ou falta
de desejo sexual, tendo o Senhor Procurador chegado a ironizar as dificuldades
de desempenho sexual do arguido comparando-o ao Popeye em plena audiência de
julgamento, enquanto interrogava uma das cinco testemunhas a que a defesa ficou
indevidamente limitada, que confirmou a perda de potência sexual com a
ingerência de esteróides para aumento de força física.
132º O Supremo Tribunal de Justiça reproduz o que foi entendido pela Relação a
propósito da desconsideração infundada do Tribunal de 1ª instância de prova
científica carreada para os autos e discutida em julgamento - como a impotência
sexual e falta de desejo sexual como um dos principais efeitos secundários do
uso de esteróides anabolizantes pelo arguido, que competia regularmente na
modalidade de powerlifting.
133º O arguido vinha acusado pela sua ex-namorada e companheira de a violar
quando tinham relações sexuais.
134º Como consta do Acórdão recorrido, página 37, a final, na transcrição feita
do Acórdão do Tribunal da Relação, pronunciou-se este Tribunal sobre a
desconsideração daqueles factos de conhecimento público e cientificamente
provados nos autos, desde logo por via documental, da seguinte forma:
«Ora o Tribunal deu como provado, neste âmbito, que “o arguido tomava
anabolizantes para obter melhores performances na actividade de powerlifting que
praticava” – cfr. Ponto IX 1 dos factos provados.
Não tinha que se pronunciar sobre os possíveis efeitos secundários, não só
porque não foram alegados, mas também porque eram indiferentes para o
conhecimento da responsabilidade criminal do arguido.
Aliás, alegando que tomava os anabolizantes “para obter melhores performances”
na actividade desportiva, não se vê como pudesse ter efeitos secundários para
outros efeitos também de ordem física.»
135º Os efeitos secundários do uso de anabolizantes foram debatidos em audiência
de julgamento, pautando-se a mesma pelo princípio da descoberta da verdade
material, com vista à boa decisão da causa.
136º Aliás, contrariamente ao entendimento vertido no Acórdão ora proferido,
referia o Supremo Tribunal Justiça, no Acórdão de 13/01/1999, Proc. nº 1126/98,
que consubstancia mesmo vício de insuficiência para a decisão sobre a matéria de
facto:
“omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da
discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre
da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados
todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela
acusação e pela defesa ou resultado da discussão da causa”
137º O que foi entendido pelo próprio Tribunal da Relação, corroborando tudo
quanto possa ter sido decidido pelo Tribunal Judicial de Viseu, é que está ao
alcance do julgador contrariar directamente prova científica e desconsiderar, de
mote e decisão próprios, elementos probatórios que interessem à defesa e, acima
de tudo, à boa decisão da causa num processo equitativo.
138º Ao mesmo tempo que se refere, de mote e decisão próprios, sem fundamento
objectivo, que a impotência sexual e falta de desejo do arguido enquanto
desportista de competição utilizador regular de esteróides anabolizantes nada
interessavam para se aferir da responsabilidade criminal do arguido, refere-se,
com igual transcrição no Acórdão recorrido para o Tribunal Constitucional, que:
«…o tribunal também deu como não provado que “BB tivesse humilhado o arguido a
ponto de denegrir as suas capacidades sexuais perante amigos comuns” (…)
Ora, para além da explicação dada pelo tribunal recorrido, para que se remete,
por reproduzida supra, não é credível, minimamente, que BB, conhecedora da
personalidade do arguido, se atrevesse a tal. Muito menos à frente dos amigos do
recorrente.
A própria BB relata dois episódios, ocorridos em Maio, logo cerca de dois meses
após o início da relação, em que refere que o arguido a agrediu, factos que o
arguido acabou por reconhecer, embora dando explicação diferente para tais
comportamentos.
Todo o conjunto da matéria de facto provada, desde logo a confessada pelo
arguido revelam uma personalidade autoritária e dominadora que não se coaduna de
modo algum com a atitude passiva do arguido, perante as alegadas afrontas que a
BB ousava lançar-lhe, como quiseram fazer crer as testemunhas UU e VV.”
139º O Supremo Tribunal de Justiça vê nestes trechos da decisão da Relação
objectividade e divergência devidamente fundamentada a juízos e factos
científicos.
140º Transcrevemo-lo perante V. Ex.ª pois o que dele resulta é o contrário, mais
justificando também os dois entendimentos legais infra, mantidos no Acórdão
recorrido, cuja inconstitucionalidade pretendemos levar à Vossa consideração,
sendo que sobre o segundo o Tribunal recorrido não se pronunciou.
141º São desconsiderados os efeitos a toma de esteróides anabolizantes, de
conhecimento público e cientificamente demonstrados nos autos, porque
simplesmente se entendeu não terem interesse para a decisão sobre a matéria de
facto e a condenação do arguido, sem fundamento objectivo indicado para tal
entendimento, como bem se retira do Acórdão recorrido e trechos supra
transcritos.
142º Os Tribunais arrogam-se poder escolher de entre a prova produzida a que
interesse e se melhor se coadune com a defesa da versão da ofendida e, assim, a
condenação do arguido.
143º Ao mesmo tempo que se invoca, sem fundamento objectivo, o desinteresse da
impotência e falta de desejo sexual sofridos pelo arguido - que vinha acusado e
foi condenado por violação -, refere-se que as testemunhas arroladas na
contestação a que foi permitido depor em audiência falaram em afrontas e
comentários públicos que testemunharam por parte da ofendida BB ao arguido, de
cariz sexual, gozando e queixando-se das dificuldades deste no respectivo
desempenho sexual.
144º Não há – nem podia haver – qualquer prova de que o arguido violasse a
ofendida quando tinha relações sexuais com ela, tendo os Tribunais se bastado
com o depoimento de BB e desconsiderado, sem fundamento qualquer objectivo,
prova científica de relevo e os depoimentos das testemunhas arroladas na
contestação com o argumento de que eram amigos do arguido e, por isso, à
partida, sem valor o que dissessem para esclarecimento dos factos.
145º E assim, sem prova e contra a prova, foi este rapaz condenado até por
violação.
146º Pura arbitrariedade, subjectividade, em afronta ao que se pretende seja um
processo equitativo, aos princípios da presunção de inocência e in dubio pro
reo, aos próprios propósitos de descoberta da verdade material e realização de
Justiça.
147º Tal entendimento sobre a aplicação do artigo 127º do Código de Processo
Penal persiste no Acórdão recorrido, é mantido e evidencia-se no caso concreto e
condenação em apreço, pelo que, suscitado, o levamos à Vossa apreciação.
15) Dar-se como provado facto, em desfavor do arguido, com base em
desconhecimento ou dúvidas das testemunhas constitui violação do princípio da
presunção de inocência e, assim, do artigo 32º, nº 2, da Constituição da
República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
148º Da mesma forma, contrariamente ao que é referido no despacho objecto da
presente reclamação, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional é explícito e preciso no entendimento legal e judicial cuja
inconstitucionalidade é suscitada.
149º O Tribunal recorrido não contesta que tal entendimento esteja patente no
Acórdão de 15 de Julho de 2008, antes fundamentando a rejeição do recurso para o
Tribunal Constitucional na falta de explicitação desse entendimento no
respectivo requerimento.
150º Mas, como visto, o recorrente precisa exactamente qual é o entendimento que
pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, porque atentatório de
preceitos constitucionais, mencionando também expressamente de que preceitos se
trata e estarão em causa.
151º Como já supra referíamos, o requerimento de interposição de recurso não se
confunde, como vem alertando o Tribunal Constitucional, com a alegação
posterior, após notificação para o efeito.
152º O requerimento apresentado respeita o disposto nos artigos 70º e 75º-A da
Lei do Tribunal Constitucional, não havendo motivo para a sua imediata rejeição
pelo Tribunal recorrido.
16) É inconstitucional interpretação do artigo 349º do Código Civil e do
artigo 125º do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal, na
falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de
apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado facto, por violação
do artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do
artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos
10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
153º Nesta parte do requerimento de interposição de recurso, o Tribunal
recorrido invoca, como fundamento para rejeição do recurso, a final do despacho
de 13 de Agosto de 2008, que “o recorrente põe em cheque a decisão recorrida e
não qualquer interpretação de norma substantiva ou adjectiva que tenha violado
norma ou princípio constitucionais.”
154º Tal não resulta do teor do requerimento de interposição de recurso, com
indicação precisa das normas legais e dos entendimento e aplicação das mesmas
cuja inconstitucionalidade tem vindo a suscitar, por violação de preceitos
constitucionais também devidamente mencionados.
155º No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi invocada a forma como,
para condenação do arguido pela prática de violação, se socorreu o Tribunal
Judicial de Viseu de uma presunção., com completa anuência a este entendimento
por parte do Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão de 28 de Novembro de
2007.
156º A decisão sobre a matéria de facto e condenação ao arguido consiste em:
“4. Muitas vezes, no período em que o arguido conseguiu manter a BB consigo, na
zona de Lisboa, pelos meios referidos, obrigou-a a manter com ele relações de
cópula vaginal e anal, para além de a obrigar à prática de sexo oral, sendo
certo que a BB se opunha a tais práticas, só as suportando por receio de
consequências para a sua integridade física e mesma para a vida.
5. Nas circunstâncias referidas, e designadamente em Novembro/Dezembro de 2004,
o arguido manteve relações sexuais com a BB, na referida residência, sempre
contra a vontade desta, relações sexuais essas às quais BB por vezes ofereceu
resistência, sendo que dessas vezes o arguido a agarrava com firmeza e utilizava
a força muscular, envolvendo-a com os braços para que ela não fugisse,
introduzia o pénis erecto na vagina, ânus ou boca, friccionando até ejacular,
suportando aquela BB idênticas práticas nas outras vezes por receio de
consequências para a sua integridade física e mesmo para a vida,
6. O arguido ao obrigar a BB a entrar e a manter-se no seu carro para a
transportar para Lisboa, ao mantê-la fechada em casa e mesmo ao manter aquelas
referidas relações sexuais, agia sempre contra a vontade daquela, sabendo que
estava a privá-la indevidamente da sua liberdade física e de autodeterminação”
157º Não há, como não podia haver, prova alguma objectiva, concreta e isenta de
que o arguido tenha alguma vez forçado a namorada a ter relações sexuais.
158º Não foi produzida prova alguma, nem mesmo por via do depoimento da ofendida
BB em que a condenação se apoiou, que permitisse aquelas conclusões – e tal
pormenorização das mesmas - pelos Tribunais.
159º A fundamentação em 1ª Instância da condenação por violação do arguido, não
contestada minimamente pelo Tribunal da Relação é a seguinte, como levada à
consideração do Supremo Tribunal de Justiça:
“Assim sendo, e à luz das regras da experiência, não poderá deixar de
considerar-se absolutamente verosímil a versão da demandante trazida à audiência
de julgamento sobre o relacionamento sexual havido entre a mesma e o arguido,
forçado por este e contra a vontade daquela, já que não é razoável supor-se que
alguém colocado na situação da demandante – levada à força e contra a sua
vontade para determinados locais no contexto referido por ela e pelas
mencionadas testemunhas ( a algumas das quais também a demandante deu a saber
desse relacionamento sexual imposto pelo arguido e contra a sua vontade) –
chegado a tais locais se disponibilize a relacionar-se sexualmente com a pessoa
que lhe coarctou a liberdade para a colocar naquela situação, antes sendo mais
plausível que, como até aí, a pessoa subjugada continue a resistir a esse
relacionamento sexual ou então a suportá-lo apenas e só por receio de mal maior,
para a sua integridade física ou para a vida, como referiu a demandante.”
160º Evidencia-se que o Tribunal de Viseu e o Tribunal da Relação dão como
assente que o arguido violava a sua namorada considerando que da prática dos
crimes de coacção e de sequestro, que considerou provados, se presume que o
arguido também praticou o crime de violação.
161º Como decorre da fundamentação dos Acórdãos de 1ª e 2ª instâncias, nem as
amigas íntimas ou mãe da demandante se referiram a qualquer tipo de problemas
sexuais no casal.
162º E o que as testemunhas de defesa relataram, com precisão e pormenor, foi a
postura habitual e comentários depreciativos da demandante em público
relativamente ao desempenho sexual do arguido, dizendo que não chegava para ela.
163º Mesmo que ouvida a demandante, sem quaisquer reservas no que queira imputar
ao seu ex-namorado, como fez o Tribunal, não percebemos de onde retirou uma
conclusão, a título de facto provado, como:
“…o arguido manteve relações sexuais com a BB, na referida residência, sempre
contra a vontade desta, relações sexuais essas às quais BB por vezes ofereceu
resistência, sendo que dessas vezes o arguido a agarrava com firmeza e utilizava
a força muscular, envolvendo-a com os braços para que ela não fugisse,
introduzia o pénis erecto na vagina, ânus ou boca, friccionando até ejacular,
suportando aquela BB idênticas práticas nas outras vezes por receio de
consequências para a sua integridade física e mesmo para a vida…”
164º Esta conclusão é pura ficção, sem qualquer apoio e fundamentação que não
seja a já supra referida e transcrita condenação por presunção e, atento o
pormenor, considerações fantasiosas do próprio Tribunal, avançando com factos e
ideias que não foram sequer mencionados pela demandante.
165º Não pretendíamos que fosse reapreciada a prova pelo Supremo Tribunal de
Justiça, mas sim que este Tribunal se pronunciasse sobre a condenação por via de
mera presunção que resulta quer do teor e fundamentação do Acórdão de 1ª
instância, quer do Acórdão do Tribunal da Relação.
166º Mas, visto o Acórdão de 15 de Julho de 2008 do Supremo Tribunal de Justiça,
não há pronúncia efectiva sobre tal questão de direito, legalidade e afronta a
preceitos constitucionais.
167º O Supremo Tribunal de Justiça considerou, nas páginas 17 a 22 do Acórdão
recorrido, que podia o arguido recorrer – como fez – para o Supremo Tribunal de
Justiça relativamente ao crime de violação.
168º No entanto, no que ao mesmo respeita, apenas dele se socorreu na apreciação
da forma como os Tribunais interpretação e aplicaram o artigo 127º do Código de
Processo Penal desconsiderando e contrariando elementos probatórios de
apreciação vinculada, como o Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem, a
fls. 736 dos autos, e o Partial Agreement in the Social and Public Health Field,
a fls. 738 e ss, que atestam – como deles expressamente resulta – a impotência
sexual e oscilações na libido do arguido, com falta de desejo sexual, enquanto
desportista de competição e utilizador regular de esteróides anabolizantes.
169º Não se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, em concreto, sobre a forma
como os Tribunais se socorreram de presunção para colmatar falta de prova que
permitisse condenar o arguido pela prática do crime de violação, atentando
contra o princípio da presunção de inocência.
170º Presunção que resulta do próprio texto das decisões condenatórias
proferidas nos autos, como supra transcrito.
171º Não há qualquer elemento probatório objectivo, concreto e consistente que
permita, em respeito pelos princípios da presunção de inocência e de in dubio
pro reo, concluir, muito menos presumir a prática do crime de violação e, com
isto, se entender ter-se prosseguido o fim da descoberta material e realização
de Justiça.
172º Não só não há prova, como o Tribunal de Viseu desatendeu e decidiu mesmo
contra prova documental científica (que é, como não deixou de dizer o Tribunal
da Relação, de apreciação vinculada): caso dos relatórios suscitados,
solicitados e juntos aos autos, de que se destaca o Relatório do Conselho
Nacional de Antidopagem, atestando aquilo que, de resto, é facto público e
notório (“célebres”, como até refere o Supremo Tribunal de Justiça): a toma de
anabolizantes tem como efeitos secundários a hipertensão arterial e perturbações
da libido, ou seja, impotência sexual e falta de desejo.
173º O resultado é uma condenação injusta, tendo os Tribunais extravasado em
muito o “poder da livre apreciação da prova”, ao decidir contra ela, na falta
dela, com base em puras presunções e opiniões próprias, perfeitamente
insustentadas em termos probatórios.
174º E tal interpretação legal e actuação judicial constituem violação do artigo
32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º,
nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º,
nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
175º É este o entendimento explicitado no requerimento de interposição de
recurso, que persiste nos autos, não tendo o próprio Supremo Tribunal de Justiça
se pronunciado efectivamente sobre ele.
176º Não se compreende, pois, como rejeita o recurso para o Tribunal
Constitucional imputando ao recorrente falta de indicação – que tem sido
exaustiva desde o primeiro recurso para o Tribunal da Relação – do entendimento
que, nesta parte, afronta a Constituição da República Portuguesa.
2.6 – Já neste Tribunal, o representante do Ministério Público, pugnou
pelo indeferimento da reclamação, com base nas seguintes razões:
“A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.
Assim, quanto às questões interlocutórias suscitadas em sede de alegada
deficiência das gravações e da limitação das testemunhas, não tem o reclamante
em consideração que o STJ, no acórdão recorrido não as apreciou sequer, por
entender que a decisão da Relação, proferida sobre a primeira, era irrecorrível
e que tinha transitado em julgado a decisão. Proferida em audiência de
julgamento, sobre a segunda – não aplicando, como é óbvio, as interpretações
expendidas, de forma, aliás, confusa, no requerimento de recurso.
Quanto às questões ligadas à apreciação da prova, são obviamente desprovidas de
carácter normativo, não especificando ostensivamente o recorrente, a propósito
delas, qualquer critério ou interpretação normativa que o Supremo tenha aplicado
efectivamente à dirimição do caso”.
2.7 – Na sequência, foi o reclamante notificado nos termos do disposto
nos artigos 3.º, n.º 3 e 704.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis
ex vi o disposto no artigo 69.º da LTC, para se pronunciar, querendo, no prazo
de 10 dias, sobre os fundamentos de inadmissibilidade do recurso invocados
naquele parecer, na parte em que os mesmos não sejam integralmente coincidentes
com os constantes do despacho reclamado.
2.8 – Em resposta, o reclamante veio sustentar que:
“(...)
I- Da questão das comprovadas deficiências gravíssimas da gravação da prova
produzida em julgamento
1° Com atenção para com o teor preciso do Vosso despacho, devemos pronunciar-nos
sobre o primeiro juízo que se nos afigura inconstitucional e para o qual
pedimos, por gravidade maior na afronta a direitos humanos e processuais
fundamentais, a Vossa consideração.
2º Trata-se do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a
questão de direito das falhas muito graves da gravação do julgamento e
consequente violação da garantia do duplo grau de jurisdição – como persiste
verdadeiramente provado nos autos, para todos os devidos e possíveis efeitos.
3º Importa precisar e reforçar os factos e decisões respeitantes a tal questão,
de tão grave que a mesma é, sem perder de vista o objectivo concreto desta
resposta, com referência ao Parecer do Exmo. representante do Ministério
Público.
4º Tem o arguido vindo a pedir a consideração dos Tribunais Superiores –
Tribunal da Relação de Coimbra e Supremo Tribunal de Justiça – para com a
inexistência da devida gravação de praticamente toda a prova testemunhal
produzida em audiência de discussão e julgamento, como comprovado nos autos
(cassetes magnetofónicas e própria transcrição).
5° As deficiências da gravação são muito graves, manifestas neste caso, com
consequente preclusão do efectivo duplo grau de jurisdição não tendo o arguido
podido exercer o seu direito fundamental de defesa e contar no seu processo com
uma verdadeira a efectiva reapreciação da decisão.
6° É esta questão inultrapassável, que resulta dos próprios autos com toda a
evidência: atentas as deficiências de gravidade maior da gravação da prova
produzida em julgamento, o arguido não teve direito a um recurso efectivo da sua
condenação em 1ª instância; não viu, de forma alguma, asseguradas todas as
garantias de defesa como previsto na Constituição da República Portuguesa; não
teve um processo equitativo, com violação flagrante da própria Convenção
Europeia dos Direitos do Homem.
7° As cópias da gravação do julgamento foram facultadas à actual mandatária do
arguido pelo 1° Juízo do Tribunal Judicial de Viseu apenas em 10 de Abril de
2007, dez dias após ter sido proferido o Acórdão condenatório em 30 de Março de
2007, quando dispunha o arguido, à data, de quinze dias para interposição de
recurso (tudo o que também resulta objectivamente dos autos).
8° Detectadas, obviamente que após a sua audição, as deficiências gravíssimas da
gravação do julgamento, tal questão foi levada à apreciação do Tribunal da
Relação de Coimbra nos cinco dias remanescentes, contados do dia em que foi
facultada a própria gravação ao arguido, tendo o recurso sido apresentado já com
pagamento de muita atentos o escasso período de tempo deixado ao arguido para a
sua elaboração e interposição.
9° Para nossa inevitável e confessa surpresa, o Tribunal da Relação de Coimbra
manifestou-se sobre a questão referindo que o facto – comprovado nos autos – de
não se ouvirem minimamente quaisquer das perguntas feitas em Tribunal a
praticamente todas as testemunhas não impedia que se pronunciassem sobre a
decisão sobre a matéria de facto e a condenação do arguido pois o exercício
fundamental de defesa do arguido bastava-se com uma adivinhação/presunção pelo,
Tribunal de recurso daquelas perguntas.
10° E com esta adivinhação de perguntas a respostas que muitas vezes – como
resulta e obviamente que continuará a resultar das cassetes e transcrição
existentes nos autos – se resumiram a “Sim”, “Não”, “Não sei” e outras respostas
absolutamente incompreensíveis sem que se ouvisse a pergunta bastou-se o
Tribunal da Relação, simplesmente mantendo, como no seu entender irrepreensível,
tudo o que foi entendido e decidido em 1ª Instância.
11° Referia o Tribunal da Relação, na página 35 do respectivo Acórdão, que “é na
prova produzida oralmente em audiência que o Tribunal recorrido forma a sua
convicção, constituindo o registo, apenas um meio de controlo do julgamento
efectuado com base na oralidade e imediação.”
12º E mais referiu o Tribunal da Relação que, havendo como há deficiência
gravíssima na gravação da prova em audiência, “trata-se de cópias fornecidas ao
recorrente, extraídas dos originais gravados durante a audiência, durante a qual
não foram suscitadas quaisquer dúvidas sobre a gravação efectuada”
13° Ora, é, desde logo, objectivamente impossível conhecer das deficiências
graves de que poderá vir a pecar uma gravação enquanto a mesma está a ser feita.
14° Atento o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra sobre questão tão
grave e a consequente preclusão ao arguido de um efectivo recurso e duplo grau
as jurisdição, foi a questão levada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça,
cabendo dentro dos seus poderes de cognição, quer porque se trata de questão de
direito, quer atento o disposto no nº 3 do artigo 410°, do Código de Processo
Penal.
15° Foi pedido ao Supremo Tribunal de Justiça que, com referência ao
entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra plasmado no respectivo Acórdão,
fosse considerada e apreciada a forma corno foi seriamente coarctado este
arguido no legítimo e por demais justificado recurso em sede de matéria de
facto, recusando-se-lhe o próprio duplo grau de jurisdição.
16° O processo em causa é comum colectivo, pelo que era obrigatória, por Lei,
sua gravação, que competia, naturalmente, ao Tribunal assegurar, dando
cumprimento ao princípio geral constante do artigo 363° do Código de Processo
Penal.
17° As falhas da gravação são por demais graves, não tendo sequer sido possível
uma completa e devida transcrição, nos termos do nº 4 do artigo 412° do Código
de Processo Penal – como resulta, objectiva e comprovadamente, dos autos.
18° Pelas falhas e irregularidades da gravação e a consequente ausência e
desconhecimento de toda a prova produzida, tornou-se impossível para o arguido
impugnar devidamente a decisão sobre a matéria de facto, tal como para o
Tribunal da Relação efectivamente reapreciá-la, que não apenas depreender o que
foi verdadeiramente dito e dar, a priori e de todo o modo, como sempre certa a
decisão do Tribunal de 1ª Instância.
19° O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a questão da deficiência
grave da gravação do julgamento e consequente recusa ao arguido de um electivo
recurso e duplo grau de Jurisdição dizendo que:
“….constitui uma mera irregularidade sujeita à disciplina do artigo 123º do CPP,
e portanto devendo ser arguida pelo interessado no prazo aí estipulado”. (Página
22 e ss do Acórdão recorrido)
20º Considerou ainda o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 15 de Julho de
2008, que a questão das deficiências graves da gravação do julgamento e
suscitada afronta aos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido,
como consagrados na Constituição da República Portuguesa e na Convenção Europeia
dos Direitos do Homem, não consubstanciam questão de Direito que merecesse a sua
apreciação.
21° No despacho reclamado de 13 de Agosto de 2008, transcrito no Vosso douto
despacho, referiu o Supremo Tribunal de Justiça, como seu fundamento para a
rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional nesta parte, que:
“...quanto às pretensas deficiências da gravação, o recorrente não indicou o
sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código
de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade, por
violadora de normas e princ4oios constitucionais, nomeadamente o direito de
defesa. Mais precisamente: em que é que o considerar-se, a deficiência da
gravação corno simples irregularidade, devendo ser arguida nos termos do prazo
do art. 123° do CPP (o que ele não fez,), afronta o aludido direito de defesa.
Além disso, o recorrente invoca violação do duplo grau de jurisdição, quando
esse grau foi garantido, pelo que a sua alegação é manifestamente improcedente”
22° O Supremo Tribunal de Justiça, aqui recorrido, considera, pois, que a
deficiência da gravação do julgamento deveria ter sido suscitada no acto, no
julgamento, enquanto este decorria e aquela era feita, pelo arguido que a estava
presente, pois, no seu entender, é mera irregularidade, estando sujeita ao
regime do artigo 123° do Código de Processo Penal.
23° Como já referido, não é, desde logo, objectivamente possível ao arguido,
presente no julgamento, adivinhar, pressentir ou prever que a gravação em curso
não estava a ser bem feita e vida a pecar por falhas tão graves.
24° Mais considerou o Supremo Tribunal de Justiça, ao mesmo tempo que reconduziu
as falhas graves da gravação e a impossibilidade objectiva e inultrapassável dai
decorrente de exercício efectivo, real, do direito fundamental de recurso a
meras irregularidades, que o duplo grau de jurisdição foi assegurado.
25° A gravação e a transcrição constam dos autos, como estão, como foram feitas,
evidenciando-se a impossibilidade flagrante do arguido ter tido direito a uma
efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e a sua condenação, ou
seja, que não foram, de forma alguma, assegurados, neste caso, ao arguido um
recurso efectivo e um verdadeiro duplo grau de jurisdição – que não apenas a
ilusão de tais direitos elementares
26° Não se trata de mera irregularidade e, salvo o muito e sempre devido
respeito, nem sentido faz, pelo já exposto e quanto resulta do próprio artigo
123º do Código de Processo Penal, dizer se que o arguido teria que suscitar as
falhas da gravação no próprio julgamento, quando, como é óbvio, ainda as
necessariamente desconhecia e não podia sequer prever.
27° Trata-se de questão de Direito, de afronta a direitos e garantias
constitucionais, justificando a repetição que se pediu do julgamento.
28° É, de resto, o que tem vindo a ser decidido: em casos porventura nem tão
graves nas falhas/inaudição da gravação do julgamento, suscitada a questão em
recurso, é por vezes o próprio Tribunal recorrido que, atentas aquelas falhas,
imediatamente determina a repetição do julgamento ou dos depoimentos
prejudicados, com vista a que sejam asseguradas ao arguido todas as garantias
constitucionais de defesa, por via do expediente fundamental do recurso, e,
assim, a indispensável equidade processual
29° Com precisa atenção para com o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal
de Justiça no Acórdão de 15 de Julho de 2008, novamente mencionado no próprio
despacho reclamado, e atenta a maior gravidade deste questão de direito, que
contende seriamente com direitos humanos e processuais fundamentais, foi
inevitavelmente interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
30° Não podemos concordar com o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de
Justiça no Acórdão recorrido, tendo levado à Vossa consideração e melhor decisão
a inconstitucionalidade e? afronta grave aos direitos humanos do arguido de:
“interpretação do artigo 4OOº, nº 1, alínea c), do artigo 434°, do 410° nº 3, do
artigo 123°, nºs 1 e 2, e dos artigos 363° e 364° do Código de Processo Penal no
sentido de que as deficiências graves de gravação de praticamente todos os
depoimentos fundamentais prestados na audiência de discussão e julgamento,
comprovadas na própria transcrição constante dos autos, se tratam de mera
irregularidade e não merecem apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, por
resultarem violados a garantia ao próprio duplo grau de jurisdição, o cerne aos
direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido, e a equidade processual,
ou seja, o consagrado nos artigos 20°, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da
República Portuguesa tal como no artigo 6° nºs 1 e 3, alínea b), e 13° da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos artigos 8° e 11°, nº 1, da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.”
e de
“Admitir-se validade ao julgamento quando este não foi, em depoimentos
fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido o direito a
impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida sobre a matéria de
facto, por violação dos artigos 363º, 364º, 399º,410º, nº 3, e do próprio artigo
20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do
artigo 6°, nºs 1 e 3, alínea b, e 13° da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, e ainda dos artigos 80 e 11°, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos
do Homem,”
31° Contrariamente ao que é referido pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto
junto do Tribunal Constitucional, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
consta entendimento sobre a questão em apreço e é esse preciso entendimento que
levamos à apreciação, na sua inconstitucionalidade, do Tribunal Constitucional.
II— Da questão de direito da limitação indevida do rol de testemunhas
32° Também nesta parte devemos pronunciar-nos, atenta a motivação aduzida pelo
Exmo. Senhor representante do Ministério Público.
33° Refere o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto que o Supremo Tribunal de
Justiça não apreciou a questão da limitação indevida a cinco das vinte
testemunhas arroladas pelo arguido em Contestação, pelo que não poderá ser o
entendimento do Tribunal recorrido objecto de recurso para o Tribunal
Constitucional.
34º No requerimento de recurso invocou o arguido a ilegalidade e a
inconstitucionalidade de:
“Aplicação do artigo 283°, nº 3, alínea d), para que remete o artigo 315°, nº 4,
ambos do Código de Processo Penal, no sentido de limitar o arguido – como o foi
– a cinco testemunhas abonatórias das 20 arroladas em contestação como é
inconstitucional interpretação do artigo 434º daquele mesmo diploma legal no
sentido de não merecer aquele atropelo à Lei apreciação em sede de recurso,
atento dele resultar preclusão indevida das garantias de defesa do arguido e
persistir evidente violação do princípio da presunção de inocência[2], ou seja,
por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 2, da Constituição da República
Portuguesa, tal como da equidade e igualdade processuais previstas no artigo 6º,
nºs 1, 2 e 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda de
quanto resulta dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração universal dos Direitos
do Homem.”
35º Afigura-se ao arguido inconstitucional o próprio entendimento do Supremo
Tribunal de Justiça de não merecer apreciação a questão em apreço e isso mesmo
deixou de ser suscitado perante o Tribunal Constitucional no recurso em apreço.
36º Reiteramos e damos aqui por reproduzida a motivação da reclamação nessa
parte.
37° Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que se trata de questão que não lhe
cabe conhecer, mas é uma questão, de direito, legalidade, constitucionalidade.
38° Determinar-se que o arguido desse cumprimento ao disposto no artigo 263°, nº
3, alínea d), indicando quais, das vinte testemunhas arroladas na contestação,
iriam depor apenas em abono do arguido é coisa bem distinta do que sucedeu,
reduzindo-se, ilegalmente, a defesa do arguido a cinco testemunhas abonatórias e
não chamando a audiência as quinze restantes testemunhas arroladas na
contestação e notificadas para comparecer, para esclarecimento dos factos e
descoberta da verdade.
39° O Tribunal rege-se, na função maior de julgar, por princípios fundamentais,
como o da descoberta da verdade material, para boa e justa decisão da causa.
40° Será, assim, atentatório da própria Constituição da República Portuguesa
considerar-se que, se os direitos humanos e fundamentais do arguido foram
violados pelo Tribunal, o problema ficou sanado por o arguido não ter reagido à
data, como se o interesse na descoberta da verdade e na realização de Justiça
fosse apenas do arguido, que não minimamente do próprio Tribunal.
III – Das questões ligadas à apreciação da prova
41º Nesta parte, verificamos que a motivação do Exmo. Senhor representante do
Ministério Público coincide, da mesma forma genérica, com os argumentos
constantes do despacho reclamado, pelo que, atento o Vosso douto despacho de 29
de Outubro de 2008, nada temos a acrescentar – antes apenas REITERAR quanto Vos
foi levado à consideração no recurso e na reclamação apresentada.
42° O requerimento de interposição de recurso afigura-se-nos preciso e conforme
ao que dele é exigido à luz da Lei do Tribunal Constitucional nos juízos cuja
inconstitucionalidade se submete à Vossa apreciação e à Vossa decisão, com
explicitação na reclamação apresentada das razões de discordância da rejeição do
recurso pelo Tribunal recorrido.
43° Apenas nos permitimos reforçar, em apelo aos habituais vigor e rigor do
Tribunal Constitucional na adequada e justa conformação de decisões judiciais
com valores e princípios maiores, tal como o respeito por direitos humanos, a
gravidade deste processo, em que, de forma elucidativa, se tem vindo a entender
ser até indiferente uma adequada gravação da prova com vista a que o arguido
pudesse ter e ver assegurados o seu direito de defesa e uma efectiva
reapreciação da sua condenação pelo Tribunal de recurso”.
Perante o relatado, importa agora julgar.
B – Fundamentação
3 – Como é consabido, o objecto do recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, apenas se pode
traduzir numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão
recorrida haja feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento
normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M.
Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e
actualizada, 2007, pp. 31 e segs), e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94,
publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94,
publicado no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma
linha de pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II
Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de
citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de
Outubro de 2000).
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de
poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua
reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas se afigura possível
quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja
constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento
normativo do aí decidido.
Por esse motivo, tem a jurisprudência deste Tribunal sublinhado que
nada impede que, ao invés de se suscitar a inconstitucionalidade de um preceito
legal, se questione apenas um seu segmento ou uma determinada dimensão normativa
(cf., entre a abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º
367/94 – publicado no DR II série, de 7 de Setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a
questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal,
apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça (…) esse
sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que,
no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na
sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a
constituição”), contudo, em tal hipótese, é necessário que a norma que se coloca
à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido, efectivamente, aplicada in
casu com a interpretação que se entende inconstitucional (e que tenha
constituído a ratio decidendi do juízo proferido) – cf., nesse sentido, entre
outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
30.º volume, 1995, o Acórdão n.º 197/97, publicado no Diário da República, IIª
Série, n.º 299, de 29 de Dezembro de 1998 e, mais recentemente, o Acórdão n.º
214/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Concretizando, ainda, um outro aspecto do seu regime, cumpre acentuar que, sendo
o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído
por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não
pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim
própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios
constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito
infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no
que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado
às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos
para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de
normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da
Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub
species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais
tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação
(directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este
Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in
concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não
incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a
conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo
ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade
normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II
Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por
exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de
21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94,
publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
A este propósito escreve Carlos Lopes do Rego («O objecto idóneo dos
recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações
normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência
Constitucional, 3, p. 8) que «É, aliás, perceptível que, em numerosos casos –
embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito
legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida – o que realmente se pretende
controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e
específicas circunstâncias do caso sub judicio […]; a adequação e correcção do
juízo de valoração das provas e de fixação da matéria de facto provada na
sentença (…) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a
aplicação do direito […]».
Em suma, como se disse no Acórdão n.º 44/85, “saber se a norma era
ou não aplicável ao caso, ou se foi ou não bem aplicada – isso é da competência
dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional” (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 5, 1985, p. 408), aceitando o Tribunal como um dado a
interpretação-aplicação realizada pelas instâncias.
Postas tais considerações, importa agora verificar do cumprimento dos
mencionados pressupostos do recurso de constitucionalidade, tendo em conta o
modo como os mesmos foram assumidos no despacho reclamado.
Vejamos, então.
3.1 – No seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente
começa por colocar à apreciação deste Tribunal a fiscalização da conformidade
constitucional de duas “normas” referentes às alegadas deficiências da gravação
da audiência de discussão e julgamento em 1.ª Instância, sustentando que [a)] “é
inconstitucional [a] interpretação do artigo 400º, nº 1, alínea c), do artigo
434º, do 410º, nº 3, do artigo 123º, nºs 1 e 2, e dos artigos 363º e 364º do
Código de Processo Penal no sentido de que as deficiências graves da gravação de
praticamente todos os depoimentos fundamentais prestados na audiência de
discussão e julgamento, comprovadas na própria transcrição constante dos autos,
se tratam de mera irregularidade e não merecem apreciação pelo Supremo Tribunal
de Justiça, por resultarem violados a garantia do próprio duplo grau de
jurisdição, o cerne dos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido,
e a equidade processual, ou seja, o consagrado nos artigos 20º, nº 4, 32º, nºs 1
e 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como no artigo 6º nºs 1 e 3,
alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos
artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”, e que
[b)] “é ilegal e inconstitucional admitir-se validade ao julgamento quando este
não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o
arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida
sobre a matéria de facto, por violação dos artigos 363º, 364º, 399º, 410º, nº 3,
e do próprio artigo 428º do Código de Processo Penal, evidenciando-se a violação
do artigo 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal
como do artigo 6º, nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal
dos Direitos do Homem”.
Confrontando o teor destas proposições, vertidas em juízos de
inconstitucionalidade, com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, na parte em
que se decidiu a matéria das alegadas deficiências das gravações, constata-se
efectivamente que “o recorrente não indicou o sentido com que, na decisão
recorrida, foram interpretadas as normas do Código de Processo Penal cuja
aplicação redundou em inconstitucionalidade (sublinhado aditado)”, dado que os
critérios definidos pelo recorrente não espelham o sentido normativo acolhido in
casu como ratio decidendi do julgado.
Em relação à matéria em causa, cumpre referir, antes de mais, que,
apesar do Supremo Tribunal de Justiça ter começado por afirmar que “o arguido
não suscitou a irregularidade da deficiência das gravações nos termos e no prazo
do artigo 123.º do CPP, o que implicava a sanação da irregularidade, se a
houvesse”, o certo é que, do mesmo passo, considerando que a decisão do Tribunal
da Relação conhecera da questão e, partindo do pressuposto que dela conheceu
legalmente, decidiu-se que o juízo formulado naquela instância – segundo o qual
se concluiu que “não se verificou a existência de qualquer irregularidade de
gravação que possa inquinar a reapreciação da prova” – não comportava recurso
para o Supremo por irrecorribilidade fundada no artigo 400.º, n.º 1, alínea c),
do Código de Processo Penal, tal como, de resto, se mostra vertido no segmento
decisório do Acórdão.
Deste modo, estando em causa questões diferenciadas e com autónoma
concretização normativa, torna-se evidente que a indicação do sentido com que as
normas foram aplicadas apenas poderia fazer-se denunciando, por referência aos
diferenciados suportes normativos, a concreta dimensão em que aqueles foram
aplicados, ou seja, sindicando, na óptica do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do
Código de Processo Penal, a inconstitucionalidade da irrecorribilidade de
decisões interlocutórias que não ponham termo à causa, tendo em conta que a
decisão relativamente a esta matéria acabou por ser fundada na
“inadmissibilidade do recurso relativamente às questões interlocutórias”.
Ora, esta específica dimensão normativa não foi controvertida a se
pelo recorrente que erigiu o recurso de constitucionalidade em torno de uma
“norma” que não constituiu ratio decidendi do julgado.
Acresce ainda ao exposto que, na parte circunstancialmente em causa, o
recurso vem suportado num objecto inidóneo porque referido à qualificação
resultante da aplicação dos critérios legais e não, tout court, a esses
específicos fundamentos normativos, como transparece do facto do reclamante
controverter, apenas sob a forma de norma, a decisão na parte em que subsume as
deficiências de gravação ao elenco das irregularidades.
De resto, esta conclusão não só abrange a norma supra referida em a),
como também o juízo de “ilegal[idade] e inconstitucional[idade]” que se imputa à
decisão projectada na “validade ao julgamento quando este não foi, em
depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido o
direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida sobre a
matéria de facto”, sendo evidente que o problema aí equacionado não é de
inconstitucionalidade normativa, mas de sindicância da decisão à qual o
reclamante atribui o referido resultado.
3.2 – Iguais conclusões valem, mutatis mutandis, para a consideração
de que “é ilegal e inconstitucional aplicação do artigo 283º, nº 3, alínea d),
para que remete o artigo 315º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, no
sentido de limitar o arguido – como o foi – a cinco testemunhas abonatórias das
20 arroladas em contestação, tal como é inconstitucional interpretação do artigo
434º daquele mesmo diploma legal no sentido de não merecer aquele atropelo à Lei
apreciação em sede de recurso, atento dele resultar preclusão indevida das
garantias de defesa do arguido e persistir evidente violação do princípio da
presunção de inocência, ou seja, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º,
nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (...)”.
Também aqui é patente que o Supremo Tribunal não aplicou os referidos
critérios, por considerar irrecorrível a decisão da Relação sobre a matéria em
causa, nos termos do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de
Processo Penal, retendo, do mesmo passo, que sendo uma questão suscitada e
decidida durante a audiência de julgamento, o reclamante, não tendo reagido,
deixou transitar em julgado a questão.
Por outro lado, também, neste caso, sempre, seria de concluir que, tal
como o reclamante definiu o objecto do recurso, a questão sindicanda não tem
natureza normativa, referindo-se outrossim à aplicação dos preceitos referidos
que se tem por ilegal e inconstitucional, o que se revela particularmente
evidente na parte em que se define o critério interpretativo extraído do artigo
434.º do Código de Processo Penal a partir do resultado subsuntivo-aplicativo,
sem explicitação do critério normativo que o possibilitou.
3.3 – O reclamante considera também inconstitucional o “entendimento dos artigos
434º e 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, vertido no Acórdão recorrido, no
sentido de vedar ao arguido o exercício efectivo do direito fundamental de
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido em recurso pelo
Tribunal da Relação sobre os vícios previstos naquele segundo preceito legal,
quando esses mesmos vícios resultam do próprio acórdão do Tribunal da Relação na
apreciação que faz sobre a prova e na sua decisão sobre a matéria de facto
provada, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da
Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da
Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
Neste caso, tal como no decidido supra (ponto 3.1.), é patente que o
reclamante não definiu o objecto do recurso, por indicação do sentido com que,
na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código de Processo Penal
cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade.
De facto, compulsando o teor do Acórdão do Supremo, chega-se à
conclusão de que o recurso interposto nesta parte não dizia respeito ao elenco
dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “visa[ndo]
tão-só a reanálise e reinterpretação da prova produzida, com o pretexto de que o
tribunal a quo errou notoriamente na interpretação e valoração que fez dessa
prova, ou incorreu em contradição insanável ou ainda que a prova produzida é
insuficiente para a condenação (o que não corresponde, em nenhum caso, à
alegação dos erros-vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP)”.
Daqui resulta que, na economia do decidido, os vícios alegados não se
reconduziam a qualquer uma das situações previstas no artigo 410.º, n.º 2, do
Código de Processo Penal, razão pela qual se julgou manifestamente improcedente
o recurso em matéria de facto sem que fosse feita aplicação da norma que o
reclamante considera inconstitucional.
Por esse motivo, independentemente das considerações tecidas quanto à
interpretação acolhida, relativamente ao conhecimento dos vícios previstos na
referida norma, a ratio decidendi assumida pelo Supremo não se revela
coincidente ou compatível com a definição normativa constante do objecto do
recurso.
3.4 – Considere-se, agora, a “interpretação e aplicação do princípio
constante do artigo 127º do Código de Processo Penal admitindo-se que o Julgador
possa, de forma patente, nos acórdãos condenatórios, proceder a uma valoração,
puramente, subjectiva da prova para suprir insuficiência de elementos
probatórios e possa, sem fundamento concreto e objectivo, contrariar ou
desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados são
inconstitucionais, por violação do artigos 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da
República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem, tal como do artigo 11º da Declaração Universal dos
Direitos do Homem”.
Quanto a esta questão, a mera leitura do que se deixou consignado nos
pontos 10.2 e 10.3 do aresto do Supremo bastaria para que se concluísse que, na
realidade, a “norma” que o reclamante pretende ver apreciada sub species
constitutionis acaba por reconduzir-se à mera crítica do julgado tendo em conta
as conclusões que aí se assumiram e que constituem o contra-pólo negativo do
“sentido” que o reclamante deixa transparecer do critério imputado ao artigo
127.º do Código de Processo Penal, não tendo o Tribunal admitido que o “o
julgador possa, de forma patente, nos acórdãos condenatórios, proceder a uma
valoração, puramente, subjectiva da prova, para suprir insuficiência de
elementos probatórios e possa, sem fundamento concreto e objectivo, contrariar
ou desatender, na sua decisão, factos objectivos, cientificamente, atestados”.
É certo que, na perspectiva do reclamante, a aplicação vertida no
julgado conduzirá à proposição conclusiva com que definiu o objecto do recurso.
Todavia, atentos os poderes de cognição deste Tribunal, essa matéria,
por exorbitar da esfera de controlo da constitucionalidade de normas, não é
susceptível de ser conhecida nesta sede.
Assim sendo, entendendo-se que o reclamante não explicitou nem
reflectiu no critério em causa a dimensão normativa, efectivamente, aplicada à
dirimição do caso, improcede a reclamação nesta parte.
3.5 – Como se disse, o reclamante considerou igualmente que “fazer
depender uma apreciação efectiva da suscitada violação do princípio in dubio pro
reo e do princípio da presunção de inocência de uma efectiva consideração dos
vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, a que, por
sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça não procede por entender ser bastante o
recurso em sede de matéria de facto para o Tribunal da Relação, ainda que
persistam, como suscitado, aqueles vícios no acórdão desta, constitui violação
dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República
Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, e 13º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem e dos artigos 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem”.
Tal como se decidiu no despacho reclamado, é bem visível que tal
questão não tem qualquer conteúdo normativo, não se encontrando sequer
formalmente ancorada em qualquer preceito de direito positivo, daí resultando
que o reclamante apenas sindica a decisão judicial e não qualquer norma que lhe
esteja subjacente.
Independentemente desta conclusão, não pode olvidar-se que o Supremo
Tribunal de Justiça (cf. ponto 10.4 da decisão recorrida) perfilhou nesta sede
um critério normativo que não coincide com o conteúdo apodado de
inconstitucional.
3.6 – Idêntica conclusão vale, sem necessidade de ulteriores
explicitações, para a pretensão do reclamante relativamente ao controlo da
actividade das instâncias na medida em que se considera dado “como provado
facto, em desfavor do arguido, com base em desconhecimento ou dúvidas das
testemunhas constitui violação do princípio da presunção de inocência e, assim,
do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo
6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e
11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
3.7 – Resta, por fim, considerar a admissibilidade do objecto do
recurso quanto à “interpretação do artigo 349º do Código Civil e do artigo 125º
do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal, na falta de
qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de apenas uma
presunção para condenar o arguido por determinado facto, por violação do artigo
32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º,
nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º,
nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
Tal como considerou o Tribunal a quo relativamente às discordâncias
manifestadas pelo reclamante relativamente à convicção alcançada pelas
instâncias, é patente que as conclusões retiradas por aquele não se encontram
acompanhadas pelas decisões jurisdicionais prolatadas nos autos nem pelos
critérios normativos aí mobilizados.
Não tendo as instâncias sufragado qualquer critério normativo
coincidente com a definição aportada pelo reclamante – ou seja, no sentido de se
socorrer o Tribunal, na falta de qualquer elemento probatório objectivo e
concreto nesse sentido, de apenas uma presunção para condenar o arguido por
determinado facto –, não estão reunidos os requisitos para conhecer do objecto
do recurso quanto a esta parte.
Importa, no entanto, esclarecer que a convicção de uma parte sobre o
sentido com que uma norma foi aplicada não basta para que o recurso de
constitucionalidade seja admitido.
Na verdade, em casos como o presente – onde existe uma discrepância
acentuada entre o critério normativo consubstanciador da decisão e a norma que o
recorrente considera ter sido aplicada, em sentido contrário ao ocorrido –, é
legitimo concluir que se encontra posta em crise a própria decisão e não
qualquer critério normativo que traduza o oposto daquela.
E, essa discordância para com o decidido, não pode ser manifestada por
uma visão subjectiva da norma, mas apenas colocando ao Tribunal Constitucional o
critério normativo efectivamente aplicado no juízo das instâncias, tal como é
exigido, a mais da natureza do recurso de constitucionalidade, pela necessidade
de se controverter a ratio decidendi normativa que justifica o juízo recorrido.
In casu, não tendo o Tribunal a quo perfilhado o critério que se
considerou inconstitucional, falece esse pressuposto de admissibilidade do
recurso, sendo, igualmente, claro que o sentido que o reclamante tem por
inconstitucional acaba por traduzir-se, como se considerou no despacho
reclamado, num juízo valorador da decisão, propriamente dita, que não contende
com o suporte normativo da decisão que considerou provados os factos em que a
condenação se estribou sem apelo a qualquer “presunção” ou perante “a falta de
qualquer elemento probatório objectivo”.
C – Decisão
4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide
indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 19/11/2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
[1] http://www.stj.pt/nsrepo/cont/EJuridicos/Recursos%20STJ.pdf
[2] Sublinhado nosso
|