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Processo n.º 848/08
1.ª Secção
Relator; Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I − Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de
Coimbra interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo que “no acórdão
do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/06/2008, proferido nos autos em
epígrafe, decidiu-se que as normas do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Junho,
emanadas pelo Governo, e que não se encontram abrangidas pela autorização
legislativa concedida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro nomeadamente os
seus artigos 1.º, 4.º a 11.º e 24.º a 27.º, sofrem de inconstitucionalidade
orgânica e, por isso, encontra-se vedada a sua aplicação ao caso vertente, por
força do artigo 204.º da Constituição da República. (…) vem, na sequência da
notificação que lhe foi efectuada, interpor para o Tribunal Constitucional
recurso limitado à questão de inconstitucionalidade do diploma e normas
indicadas no acórdão, acima referidas.”
2. Notificado para alegar, veio o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, junto do
Tribunal Constitucional, concluir o seguinte:
“l.º
Inclui-se no âmbito da ‘reserva de parlamento’, estabelecida no artigo 165°, n°
1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa, a definição dos
pressupostos materiais que condicionam, num arrendamento ‘vinculístico’, a
faculdade de denúncia pelo senhorio, nomeadamente com fundamento na demolição do
prédio arrendado ou na realização neste de obras de restauro ou remodelação
profunda.
2.º
Tais pressupostos — que se não mostram minimamente definidos nos artigos 1101.º
e 1103° do Código Civil, na redacção emergente da Lei n° 6/2006 — são
estabelecidos, em termos constitutivos e inovatórios, pelo Decreto-Lei n°
157/06, em particular pelas disposições conjugadas dos artigos 5.º, 6°, 7.º e
24° e 25° deste último diploma legal.
3°
Não estando o Governo, ao editar o Decreto-Lei n° 157/06, legitimado, face ao
objecto e extensão da respectiva lei de autorização legislativa, constante do
artigo 63° da Lei n° 6/2006, para regular os aspectos substantivos da extinção
do arrendamento urbano, na sequência do exercício pelo senhorio do direito de
denúncia, com base na pretendida demolição ou restauro profundo do locado, são
organicamente inconstitucionais as normas que integram o objecto do presente
recurso.
4.º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.”
Em contra alegações, veio o recorrido, A., Lda., concluir:
“[...]
3.ª É notório o desacerto do aresto em recurso quando sustenta a
inconstitucionalidade orgânica do DL n° 157/2006, não só por o regime especial
previsto neste diploma relativamente à denúncia do contrato para realização de
obras de remodelação e restauro profundos não integrar o regime geral do
arrendamento e não estar, por isso, sujeito a prévia autorização da Assembleia,
mas também por a própria Assembleia ter expressamente previsto tal regime
especial e não o ter disciplinado nem proibido o Governo de o disciplinar.
4.ª Se a isto se acrescentar que o regime especial de denúncia do contrato para
obras de remodelação ou restauro profundos é uma mera concretização do regime
geral – o qual prevê a denúncia do contrato para a realização de tais obras no
art° 110l°/b) do C. Civil – e que vem estabelecer uma regulamentação em sentido
protector ao arrendatário – assegurando-lhe o pagamento de todos os danos ou o
realojamento (v. art°s 6° e 25° do DL n° 157/2006) –, mais notório se torna que
ao estabelecer o regime especial de denúncia do arrendamento para realização de
obras de remodelação e restauro profundos o Governo exercitou uma competência
legislativa primária, não carecendo, como tal, de qualquer autorização
legislativa por parte da Assembleia da República.
Consequentemente,
5.ª Ao recusar a aplicação ao caso sub júdice do DL n° 157/2006 com fundamento
na sua inconstitucionalidade orgânica, o aresto em recurso incorreu num
flagrante erro de julgamento, porquanto a emanação do regime especial de
denúncia do arrendamento para realização de obras de remodelação e restauro
profundos foi expressamente previsto pela Assembleia ao aprovar o regime geral
do arrendamento e esta não definiu tal regime nem proibiu o Governo de o fazer,
razão pela qual ao disciplinar aquele regime especial o Governo exercitou a
competência legislativa primária que lhe é reconhecida pela alínea a) do art°
198° da Constituição (v., neste sentido, autor e jurisprudência citada no
texto).
Nestes termos, Deve ser revogada a decisão em recurso com fundamento na não
declaração da inconstitucionalidade do DL n° 157/06, maxime das normas da al. a)
do art° 1, art° 4° a 11.º, e 24° a 27°, com as legais consequências.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. O presente recurso vem interposto pelo Exmo. Magistrado do Ministério
Público, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do
Tribunal Constitucional, do Acórdão da Relação de Coimbra, no segmento em que
desaplicou, fundando-se em inconstitucionalidade orgânica, as normas constantes
no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal – artigos 1.º,
alínea a), 4.º a 11.º e 24.º a 27.º do Decreto-Lei n.º 157/06, de 8 de Agosto –
que integram o regime aplicável “à denúncia ou suspensão do contrato de
arrendamento para demolição ou realização de obras de restauro profundo do local
arrendado.” (citado artigo 1.º, alínea a)).
No entanto, não obstante o recurso ter sido interposto ao abrigo do disposto no
artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional, encontramo-nos
em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, pelo que o Tribunal
Constitucional tem de formular um juízo de conformidade ou desconformidade
constitucional, no que concerne às normas desaplicadas no caso concreto.
Ora, conforme se constata no elenco dos preceitos legais supra referenciados,
estamos perante normas de conteúdo diverso, quer quanto à previsão, quer quanto
à respectiva estatuição.
Na situação em apreço, está-se perante um processo que tem por objecto a
denúncia de um contrato de arrendamento para habitação, com fundamento em
demolição do locado para construção de um novo edifício, sendo estranho a esse
objecto aquele conjunto de normas que não têm na mencionada demolição a sua
razão de ser, como seja, e, nomeadamente as referentes à remodelação ou restauro
profundos, à suspensão do contrato, à edificação em prédio rústico, à denúncia
do arrendamento para fim não habitacional e à actualização da renda.
Assim, não cabe ao Tribunal conhecer de invocadas inconstitucionalidades
relativamente aos artigos 4º, 5º, 9º, 10º, 11º, 26º e 27º do Decreto – Lei nº
157/06, de 8 de Agosto, por tais preceitos não terem sido, efectivamente
desaplicados, face ao caso concreto em apreciação, no que se refere, agora, e,
designadamente ao juízo de conformidade constitucional que vem solicitado a este
Tribunal.
Relativamente aos restantes preceitos legais referidos, ou seja, os artigos 1º,
alínea a), 6º, 7º, 8º, 24º e 25º, tendo em vista, conforme se assinalou, que o
objecto do pedido se cinge à denúncia do contrato de arrendamento, com
fundamento em demolição do locado, teremos de equacionar a questão atinente à
“reserva de lei” consignada no artigo 165º., nº 1, alínea h) da Constituição.
4. Desta forma, a questão a tratar, no que concerne à aludida “reserva de lei”
traduz-se em indagar se a denúncia do contrato para demolição do local arrendado
se integra no aludido regime geral do arrendamento, por contender com o seu
regime substantivo, no atinente à extinção do contrato respectivo.
Se isto, assim, ocorre, se nos encontrarmos numa situação inclusiva do
respectivo regime geral, então terá o Governo de se encontrar municiado da
devida credencial parlamentar para poder alterar tal regime, nomeadamente se a
situação legal objecto da intervenção legislativa for de considerar inovatória.
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem entendido que esse regime compreende
“as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de
validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e
deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das
condições e causas da sua extinção. A definição dos pressupostos condicionantes
do exercício pelo senhorio, do direito de denúncia do arrendamento para
habitação do andar locado respeita a aspectos significativos e substantivos do
regime legal do contrato, pelo que se encontra compreendida no âmbito da reserva
de competência legislativa relativa da Assembleia da República.” (Acórdão n.º
70/99 [publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Abril] em que se
citam, também, neste mesmo sentido, os Acórdãos n.ºs 352/92 e 311/93).
Importa, agora, analisar se, na situação em apreço, existe lei habilitante e se
as soluções encontradas se acham balizadas nos limites da autorização
legislativa.
Verifica-se, efectivamente, que o Decreto-Lei nº. 157/2006 foi emitido no uso de
autorização legislativa, ou seja, com base no artigo 63.º, n.º 1, alínea a) e
n.º 2, da Lei n.º 6/2006, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano
(NRAU)
Na situação que ora nos ocupa, a acção de denúncia do contrato de arrendamento
funda-se, numa perspectiva substantiva, no artigo 1103.º do Código Civil.
No tocante a esta disposição legal constante do Código Civil, verifica-se que a
mesma foi buscar a sua actual redacção à Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, e
limita-se, no respectivo segmento dispositivo, a remeter para “legislação
especial” a temática atinente “à denúncia do contrato para demolição ou
realização de obras de remodelação ou restauro profundos” (artigo 1103º. nº 8).
Por sua vez, a invocada “legislação especial” é composta por três blocos
normativos constantes nas três alíneas do nº 1 do artigo 1º do mencionado
Decreto-Lei nº 157/2006: i) “denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento
para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos
(alínea a); ii) a “realização de obras coercivas pelos municípios, nos casos em
que o senhorio as não queira ou não possa realizar (alínea b) e iii) “a
edificação em prédio rústico arrendado e não sujeito a regime especial” (alínea
c).
Da análise do referenciado diploma legal verifica-se que o mesmo extravasa a
norma de autorização legislativa consignada no artigo 63.º, n.º 1, alínea a) e
n.º 2, da Lei n.º 6/2006, já que para o que ora importa, só existe autorização
legislativa para o “regime de obras coercivas” e já não para a “denúncia ou
suspensão do contrato de arrendamento para demolição (…)”.
Assim, torna-se inequívoco que o legislador, no atinente a todas as questões que
envolvam a denúncia do contrato para demolição do prédio arrendado, por não
integrarem o regime das “obras coercivas”, carecia, em termos manifestos, de
credencial parlamentar para legislar inovatoriamente.
Na verdade, é inequívoco que são inovatórios os preceitos onde se encontra
exarada a definição substantiva dos pressupostos materiais do direito de
denúncia para demolição, constantes dos artigos 6º e 7º, 24º e 25º do mencionado
diploma legal. Os pressupostos materiais do direito de denúncia para demolição
estabelecidos, respectivamente nos artigos 24º, com referência ao artigo 7º nº 2
e 25º, são inovatórios, relativamente aos artigos 1101º, alínea b) e 1103º nº 8
do Código Civil, que se limitam a referir a existência de uma mera faculdade de
denúncia para demolição, sem explicitar os respectivos pressupostos (artigo
1101º.), submetendo, por seu lado, o seu regime a legislação especial (artigo
1103º.).
Acresce que o precedente regime legal – Lei 2088 de 3 de Julho de 1957 -,
revogada pelo artigo 49º do Decreto-Lei n.º 152/06, não regulava tais matérias,
nomeadamente pela forma que vem de ser referida, pelo que a intervenção
legislativa, em análise, é, manifestamente, inovatória.
Já no que concerne ao artigo 1º nº 1 alínea a) do citado diploma legal, o mesmo
reveste de carácter meramente enunciativo, limitando-se a explicitar que vem dar
tradução ao comando contido no artigo 1103º nº. 8 do Código Civil, pelo que
irreleva qualquer aproximação de controlo constitucional.
No que se refere ao artigo 8º, o mesmo apresenta nos seus números 1º. a 5º,
conteúdo meramente instrumental ou regulamentar, pelo que tais disposições não
integram a reserva, contrariamente ao que ocorre com o nº. 6.
Não merece, assim, censura a desaplicação das normas legais constantes dos
artigos 6º., 7º., 8º nº. 6., 24º. e 25º do Decreto-Lei n.º 157/06, face à sua
inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1,
alínea h), da Constituição.
O mesmo não sucede, pelo que vem de ser afirmado, no tocante ao artigo 1º nº 1
alínea a) e artigo 8º nºs 1 a 5.
III – Decisão
5. Nestes termos, acordam em:
a) não conhecer do recurso, relativamente à invocada inconstitucionalidade dos
artigos 4º., 5º., 9º., 10º., 11º., 26º. e 27º. do Decreto – Lei nº 157/06, de 8
de Agosto;
b) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar o juízo de
inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida, apenas, no tocante aos
6º., 7º., 8º nº. 6., 24º. e 25º do mesmo diploma legal.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Março de 2009
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
No acórdão pondera-se que a disciplina do Decreto-Lei n.º 157/2006 se deve
conter na «norma de autorização legislativa consignada no artigo 63º n.º 1
alínea a) e n.º 2 da Lei n.º 6/2006, já que para o que ora importa, só existe
autorização legislativa para o 'regime de obras coercivas' e já não para a
'denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou para a
realização de obras de remodelação ou restauro profundos'.» Ora, a verdade é
que, conforme resulta da alínea h) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição,
apenas o «regime geral» do arrendamento rural e urbano se inclui na reserva
relativa de competência parlamentar, o que em meu entender deixa ao governo um
espaço de liberdade de conformação legislativa na área restante que se não reduz
às disposições de «conteúdo meramente instrumental ou regulamentar» conforme diz
o aresto. Por essa razão, entendo, salvo o devido respeito, que os argumentos
apresentados no acórdão não são totalmente convincentes de que as normas
analisadas são constitucionalmente desconformes por razões orgânicas.
Carlos Pamplona de Oliveira
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