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Processo n.º 824/2009
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A 24 de Junho de 2008 o Magistrado do Ministério Público instaurou, junto do Tribunal da Comarca de Santarém e em representação da menor A., acção de regulação do exercício do poder paternal contra B. e C., progenitores do referido menor e recorridos nos presentes autos.
B. e C. tinham vivido em união de facto e não estavam de acordo quanto à forma de exercício do poder paternal.
O menor residia com a mãe.
Realizada a 27 de Maio de 2009 a conferência a que alude o artigo 175.º, n.º 1, da Lei da Organização Tutelar de Menores, e não tendo sido possível obter o acordo dos progenitores, procedeu-se à fixação de um regime provisório de regulação do poder paternal.
2. Por sentença datada de 8 de Junho de 2009, decidiu o Tribunal de Santarém não manter este regime, que se fundava no disposto no artigo 1911.º do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 496/77. Ao caso foram antes aplicadas as regras relativas ao “exercício das responsabilidades parentais” decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 1911.º, n.º 2, e 1906.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008,
de 31 de Outubro. O Tribunal assim decidiu porque recusou a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma contida no artigo 9.º daquela Lei n.º 61/2008.
Fê-lo nos seguintes termos:
(…)
A 30 de Novembro de 2008, entrou em vigor a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que procedeu, entre outras alterações, à alteração do regime do exercício do poder paternal, procedendo a uma sua redenominação, passando a referência ao “poder paternal” a considerar-se substituída pela designação “responsabilidades parentais” nas epígrafes da secção II e da sua subsecção IV, do capítulo II, do título III, do livro IV do Código Civil e em todas as disposições da secção II, do capítulo II, do título III, do livro IV do Código Civil.
(…)
No entanto, mais importante do que esta redenominação, é a alteração introduzida no leque dos poderes-deveres dos progenitores não unidos pelo casamento e que não vivem em condições análogas às dos cônjuges, prevendo-se na Lei n.º 61/2008, como regime regra, o exercício em comum das responsabilidade parentais por ambos os progenitores relativamente às questões de particular importância, exercício em comum que só é passível de ser afastado por decisão judicial fundamentada (artigos 1906.º, n.ºs 1 e 2 e 1912.º, n.º 1, ambos do Código Civil).
No regime anterior, no caso de progenitores não unidos entre si pelo casamento e que não vivessem em união de facto, ou havia acordo dos progenitores no sentido do exercício em comum por ambos ou, não existindo tal acordo, o exercício do poder paternal competiria ao progenitor que tivesse a guarda do menor, presumindo-se iuris tantum que tal guarda cabia à mãe do menor. Ao progenitor a quem não competia o exercício do poder paternal assistia o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho (artigo 1906.º, n.º 4, do Código Civil, na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 6 1/2008).
Apesar desta verdadeira revolução copernicana, no que tange o regime do exercício das ora denominadas responsabilidades parentais, ou talvez por isso, o legislador previu no artigo 9.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que tal regime não se aplica aos processos pendentes em tribunal.
(…)
A questão que a referida norma transitória coloca é a de saber se é sustentável, do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, que o conteúdo dos poderes-deveres dos progenitores relativamente a seus filhos possa depender duma circunstância tão aleatória como é a propositura de uma acção.
A mesma norma suscita também a questão de saber quais os poderes-deveres
dos progenitores que viram a sua situação resolvida antes da entrada em vigor da Lei
n.º 61/2008, de 31 de Outubro. Será que continuarão a ter os mesmos poderes-deveres, não lhes sendo aplicável o novo regime e nem podendo tal alteração legislativa, por si só, fundamentar uma alteração da regulação do exercício do poder paternal- (neste sentido que decididamente repudiamos veja-se, Tomé d’Almeida Ramião, O Divórcio e Questões Conexas, Quid Juris 2009, página 164); ou, ao invés, em homenagem ao princípio constitucional da igualdade que impõe que situações iguais devam ser igualmente tratadas, bem como considerando as regras gerais sobre aplicação no tempo de normas relativas ao conteúdo de uma relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem (artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil), deve o novo regime aplicar-se aos processos pendentes-
(…)
A nosso ver, a norma transitória em análise introduz um tratamento discriminatório, desigual e injustificado dos progenitores em função da simples propositura da acção e conduz ao absurdo do conteúdo dos poderes-deveres dos progenitores poder divergir tão só por causa daquele critério temporal. Pode até suceder que o mesmo progenitor tenha poderes-deveres distintos relativamente a filhos diferentes e de mães diversas, apenas porque os processos nos quais vieram a ser regulados o exercício do poder paternal/responsabilidades parentais foram instaurados em momentos diversos.
Em nosso entender, tal disposição transitória, com tal alcance, atenta contra o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa), na medida em que progenitores colocados na mesma situação de facto terão poderes-deveres diversos no que respeita as ora denominadas responsabilidades parentais, tão-só por causa do momento em que foi proposta a acção para tal regulação. Afigura-se-nos deste modo que aquela norma transitória enferma de inconstitucionalidade material e deve por isso ser desaplicada (artigos 13.º, 204.º e 277.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa).
Assim, desaplicando-se pelos referidos fundamentos o artigo 9.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, aplicar-se-á ao caso dos autos a nova lei.
(…)
3. Desta decisão interpôs recurso o Ministério Público, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, “porquanto o Senhor Juiz, na douta sentença de 8 de Junho de 2009, recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 9.º da Lei n.º 61/2008 (…) por entender que esta norma transitória introduz um tratamento discriminatório, desigual e injustificado dos progenitores, no que concerne aos poderes-deveres das ora denominadas responsabilidades parentais.”
Admitido o recurso no Tribunal, nele apresentou o recorrente as suas alegações, pugnando pela procedência do recurso e sustentando que, no caso, se não lesara o princípio constitucional da igualdade.
4. Já aquando da elaboração do projecto de acórdão, salientou-se a eventualidade de o Tribunal não vir a conhecer do objecto do recurso, atenta a decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à atribuição das responsabilidades parentais apenas à mãe da menor (fls. 106 dos autos)
Ouvido sobre esta questão prévia, pronunciou-se o recorrente em sentido favorável ao não conhecimento do objecto do recurso, por falta de utilidade.
II – Fundamentos
5. A decisão recorrida recusou a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma transitória constante do artigo 9.º da Lei n.º n.º 61/2008, de 31 de Outubro.
No entanto, determinou também a mesma decisão que, tendo em conta a factualidade do caso, que desaconselharia outra solução, o exercício das responsabilidades parentais caberia em exclusivo à mãe da menor (fls. 105 e 106 dos autos).
Face a esta decisão, seria destituído de qualquer efeito útil o juízo que o Tribunal viesse proferir quanto à questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 9.º da Lei n.º 61/2008, tendo sido também esta a conclusão a que se chegou no caso do Acórdão n.º 381/2010, em que estavam em causa circunstâncias semelhantes às dos autos.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide não conhecer do objecto do recurso
Sem custas.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.
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