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Processo n.º 742/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do Processo Comum Colectivo que, sob o n.º 156/00.2IDBR, correu termos pelo 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, o Tribunal Colectivo proferiu Acórdão em 6 de Outubro de 2006, decidindo, no segmento relevante:
“CONDENAR:
- O arguido A., como autor material de um crime de introdução fraudulenta no consumo qualificado, um crime continuado de fraude sobre mercadorias, e um crime continuado de fraude fiscal, um crime continuado de branqueamento de capitais; um crime de frustração de créditos, e ainda um crime de falsificação de documento, na pena única de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão, e em 80 dias de multa, à taxa diária de € 30.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão proferido em 16 de Fevereiro de 2009, negou provimento ao recurso.
O arguido recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido em 6 de Maio de 2010, decidiu, relativamente ao arguido:
“- rejeitar o recurso quanto aos crimes de introdução fraudulenta no consumo, fraude sobre mercadorias, fraude fiscal, frustração de créditos e de falsificação de documentos, e quanto às demais questões versadas em 10.2., 10.3 e 10.4., por inadmissibilidade;
- conceder provimento ao recurso somente na questão da pena relativa ao crime de branqueamento, que reduzem para 3 (três) anos de prisão e relativamente à pena única, que também reduzem para 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão e 80 (oitenta) dias de multa à taxa de € 30 (trinta euros) por dia, nesta parte revogando-se a decisão recorrida e negando-se provimento a todas as outras questões, tanto na parte criminal, como na parte cível.
Confirma-se no mais a decisão recorrida”.
O arguido arguiu a existência de várias nulidades desta decisão, tendo o Supremo Tribunal de Justiça indeferido o requerido por acórdão proferido em 7 de Julho de 2010.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“1. Sob os itens 10.7.2 e 10.7.3 do douto acórdão do STJ interpretou-se a lei punitiva do crime de branqueamento de capitais imputado ao arguido, designadamente o art. 1.º/1/als. a), b), c), d) e e) da Lei n.º 36/94, de 29/9, o art. 2.º/1/al. a) do DL n.º 325/95, de 2/12, o mesmo art. 2º do DL 325/95 com a redacção dada pela Lei n.º 10/2002, de 11/2, o art. 53º da Lei nº 11/2004, de 27/3 e o art. 368º-A do Cód. Penal com o sentido de que, mesmo que os proventos ou dinheiros provenientes da fraude fiscal tenham sido obtidos pelo arguido em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, de 11/2, o que conta ou importa para julgar-se verificado ou preenchido o crime de branqueamento é que os actos de ocultação ou dissimulação tenham sido pratica dos depois da data em vigor de tal lei, sendo irrelevante que o crime de fraude fiscal tenha sido cometido em data anterior.
2. Com fundamento nessa interpretação foi o arguido punido pela prática do crime de branqueamento de capitais na pena de 3 (três) anos de prisão.
3. Ora, aquele conjunto normativo, assim interpretado, é inconstitucional, por ofensa do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, o que o Recorrente pretende ver declarado pelo Tribunal Constitucional.
4. Essa inconstitucionalidade foi suscitada pelo Recorrente na Reclamação sobre a qual incidiu o acórdão impugnado.”
O Conselheiro Relator não admitiu o recurso com a seguinte fundamentação:
“Não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, porquanto a interpretação referida pelo recorrente não foi a ratio decidendi da decisão de que se pretende recorrer. Isto mesmo foi, aliás, salientado na decisão da reclamação, transcrevendo-se a passagem adequada da decisão final (reclamada), como se pode ver a fls. 9101 e 9102, onde, a propósito, se fala até de a afirmação posta em causa no requerimento constituir um obiter dictum.
Por conseguinte, ao contrário do que é afirmado pelo requerente, não foi a aludida interpretação que serviu de base à sua condenação. Esta resultou, sim, de se ter considerado que o crime de fraude fiscal se estendeu, sob a forma continuada, até ao ano de 2003, portanto, para além da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, de 11 de Fevereiro. Foi essa a verdadeira razão da sua condenação, como, de resto se pode ver dos n.ºs 10.7.2. e 10.8. da decisão final.
O requerente interpreta, pois, a seu talante essas passagens da decisão final, bem como omite o que a propósito se escreveu na decisão da reclamação.
Porque a decisão não se baseou substancialmente no fundamento pressuposto como ofendendo o disposto no art. 29.º, n.º 3 da Constituição, o recurso não é admissível.”
O arguido reclamou desta decisão para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“A) DO REQUERIMENTO DE APRESENTAÇÃO DO RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. O arguido, ora Reclamante, não se tendo conformado com o douto acórdão proferido pelo STJ que apreciou o Recurso do arguido do acórdão da Relação de Guimarães para o STJ, nem se conformando com a douta decisão em conferência que apreciou a Reclamação que versou sobre o referido acórdão do STJ, deles apresentou recurso para o Tribunal Constitucional.
2. No seu requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional referiu o arguido que sob os itens 10.7.2 e 10.7.3 do douto acórdão do STJ foi interpretada a lei punitiva do crime de branqueamento de capitais imputado ao arguido, designadamente o art. 1.º/1/als. a), b), c), d) e e) da Lei n.º 36/94, de 29/9, o art. 2.º/1/al. a) do DL n.º 325/95, de 2/12, o mesmo art. 2.º do DL 325/95 com a redacção dada pela Lei n.º 10/2002, de 11/2, o art. 53.º da Lei n.º 11/2004, de 27/3 e o art. 368.º-A do Cód. Penal, com o sentido de que mesmo que os proventos ou dinheiros provenientes da fraude fiscal tenham sido obtidos pelo arguido em data anterior à data da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, de 11/2, o que conta ou importa para julgar-se verificado ou preenchido em causa nos autos é que os actos praticados como forma de ocultar ou dissimular a sua origem tenham sido praticados depois da data em vigor de tal lei, sendo irrelevante que o crime de fraude fiscal tenha sido praticado em data anterior.
3. Mais referiu o Reclamante no seu requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional que, com fundamento na referida interpretação daquelas leis punitivas do crime de branqueamento de capitais, foi o arguido punido pela prática do crime de branqueamento de capitais na pena de 3 (três) anos de prisão.
4. Alegou ainda o Reclamante no seu requerimento que tal interpretação da lei constitui, no seu entendimento, a violação do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucional.
5. Mais referiu ali o Reclamante que a inconstitucionalidade dessa interpretação da lei foi suscitada na Reclamação apresentada sobre o douto acórdão do STJ.
6. Tendo concluído o seu requerimento pugnando pela admissão do recurso, a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo, nos termos do art. 78.º/3 da LTC.
B) DO DOUTO DESPACHO OBJECTO DA PRESENTE RECLAMAÇÃO:
7. Por douto despacho proferido nos autos pelo Ex.mo Senhor Doutor Juiz Conselheiro Relator, notificado ao Reclamante em 13/9/2010 e cujo teor, por questões de economia processual, se dá aqui por integralmente reproduzido, foi julgado não se admitir o referido recurso com o fundamento de que “a interpretação referida pelo recorrente não foi a ratio decidendi da decisão de que se pretende recorrer” (cfr. o despacho reclamado).
C) DOS FUNDAMENTOS DA INCONFORMIDADE DO RECLAMANTE COM TAL DESPACHO E RESPECTIVA FUNDAMENTAÇÃO:
8. O Reclamante não concorda nem aceita tal fundamento do indeferimento do recurso, o qual, para si, mais não é do que uma clara defesa da validade do acórdão do STJ e da defesa do subsequente decisão proferida em conferência pelo STJ e que apreciou a Reclamação que incidiu sobre aquele acórdão do STJ.
9. Infelizmente e apesar de ser correcta a afirmação de que ninguém é bom juiz de si próprio, são muitas as decisões proferidas pelos tribunais em defesa das suas próprias decisões, quando deveriam apenas e só preocupar-se com fazer Justiça, constituindo a decisão ora reclamada mais um exemplo disso mesmo.
VEJAMOS:
10. Sob o item 10.7., a fls. 148 do douto acórdão do STJ objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, são tratadas “as questões relativas ao crime de branqueamento”.
Apreciando tais questões, sob o item 10.7.1, os Senhores Juízes Conselheiros, transcreveram os factos julgados provados pelas instâncias relativos ao crime de branqueamento da capitais, os quais, por terem interesse para a presente reclamação, se passam a transcrever:
6. – Em 19 de Novembro de 1999, o arguido A. e a sua mulher B. constituíram a arguida “C. – Sociedade de …. “, (que vai passar a ser designada apenas por C.) com o objecto social de promoção de vendas e aquisição de imóveis e com o capital social de cinco mil euros, dividido em duas quotas, sendo a do arguido no lia/o, de «4.850 e a da sua mulher no valor, de € 150 euros.
19. - Em data não concretamente apurada do ano de 1997, o arguido A. decidiu obter para si e para as arguidas D.” e “E.” proveitos económicos que sabia não lhes serem devidos, à custa do Estado Português e do público consumidor de combustíveis, aproveitando-se, para tanto, da livre circulação de mercadorias instituída pelos tratados da Comunidade Económica Europeia e União Europeia das leis e regulamentos atinentes às transacções intracomunitárias de mercadorias e à produção, distribuição e comercialização de combustíveis e de carburantes bem como ainda no regime de preços legalmente estabelecidos para venda dos mesmos, misturando óleos-base com gasóleo rodoviário.
231. - No dia 1 de Janeiro de 2000, a arguida “C., Ldª” (adiante designada apenas por “C.”) iniciou fiscalmente a sua actividade de compra e venda de bens imobiliárias e prestação de serviços de gestão imobiliária.
232. - Tal sociedade foi constituída pelo arguido A. não só com o objectivo de transferir todo o seu património imobiliário para tal sociedade por forma a impedir que o Estado o viesse a executar para pagamento da divida fiscal que a administração lhe liquidou em consequência, da inspecção supra referida e que teve início no dia 8 de Novembro de 1999, como também para aplicar os proventos que tirava das VENDAS DE COMBUSTÍVEIS efectuadas pela “ E.” e pela “F.”.
233.– Deste modo, aquele arguido fez entrar no “caixa” da arguida “ C.” , a título de suprimentos, pelo menos parte dos proventos que obteve com a sua acima descrita actividade
234. – Assim é que, concretizando aquele primeiro seu objectivo, por escritura pública de 24/03/2000, o arguido A. vendeu à “ C.”, pelo valor € 200.000$00, preço este muito inferior ao do seu valor real, o prédio rústico composto por terreno de cultura, com a álea de 2.196 m2, sito em lugar da …, freguesia de Vila Seca, concelho de Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o nº …- Vila Seca e inscrito na matriz predial rústica sob o …
235. – Para a” C.” poder efectuar as compras dos prédios, o arguido A. entrou com mil contos de suprimentos no “caixa” da “C.”, dinheiro este proveniente da venda de combustíveis adulterados.
236.– Naquele prédio, referido em 234., o arguido A. construiu dois pavilhões com os proventos que obteve com a descrita sua actividade de venda de gasóleo e gasolinas adulteradas através das suas representadas “ E.” e “F.”, pavilhões estes que foram averbados à aludida descrição no dia 5/06/2000, data em que também foi registada a aquisição do aludido terreno pela” C.”.
237.- Em 28 de Setembro de 2000, a “C.” deu de hipoteca o aludido prédio (terreno e construções) e o prédio descrito sob o n. º…/ Vila Seca ao Banco G.” para garantia do pagamento das responsabilidades assumidas ou a assumir pelo arguido A. e sua mulher e/ou pelas sociedades “D.” e “E.” até ao montante de 130.000.000$00.
238.- E entre os anos de 2000 a 2003, o arguido A. concretizando aquele seu segundo propósito comprou em nome da “C.” os seguintes prédios com os proventos que obteve com a venda de combustíveis adulterados os quais entregou à “C.” a título de suprimentos:
1– por escritura pública de 24/03/2000, pelo valor de 9.600, 000$00, a fracção autónoma designada pela letra P, parte do prédio urbano denominado Edifício ..D., situado na Rua D. …, nos .. e .., freguesia de Arcozelo, concelho de Barcelos, descrita na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o nº. ../Arcozelo e a fracção autónoma designada pela letra U, parte do prédio urbano denominado Edifício C, situado na Rua … e …. freguesia de Arcozelo, concelho de Barcelos, descrita na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o nº …/Arcozelo.
2– por escritura pública de 06/04/2000, no valor de 25.000. 000$00, o prédio rústico denominado …. de ”…” , terreno bravio, silo no lugar de …, freguesia de Marecos concelho de Penafiel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o nº …/Marecos – inscrição G-., inscrito na matriz sob os artigos .., .., … e …;
3– por escritura pública de 26/05/2000, no valor de 1.000.000$00 o prédio rústico ”…..” , de cultura e videiras em ramada, área de 3.360 m2, sito no lugar da .., freguesia de Vila Seca, concelho de Barcelos, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … e descrito C. R. P. de Barcelos sob o nº. …/Vila Seca.
4– por escritura pública de 31/07/2001, no valor de 12.000. 000$00, o prédio rústico denominado “ ……” , composto por cultura, ramada e pinhal – área de 6.097 m2, sito no lugar de …., inscrito na matriz rústica sob o artigo …, descrito na CRP de Barcelos sob os nºs ….. e …, e o prédio urbano composto por casa com um pavimento e coberto, sito no lugar de …, freguesia de Manhente, concelho de Barcelos, com a área de 63 metros e vinte decímetros quadrados e coberto com 68 m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo …, descrito na CRP de Barcelos sob o nº. …..
5 – por escritura pública de 27/11/2001, com o valor de 12.000.000$00, o prédio rústico, composto de terreno de lavradio e mato, com a área de 6.273 m2, situado no lugar de …, freguesia de Manhente, concelho de Barcelos, inscrito na matriz predial sob o artigo …;
6 – por escritura pública de 08/03/2002, no valor de € 625.100, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e logradouro, situa do no lugar …freguesia de Fornelos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o nº. …/Fornelos, inscrição G- ..–inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …
7– por escritura pública de 19/07/2002, no valor de € 14.963,94, a fracção autónoma designada pela letra “ .” , habitação no ..º Frente, descrita na Conservatória sob o nº. …-R/Braga (…) e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …–R. Esta fracção autónoma faz parte do prédio urbano sito no lugar de …, actual R. …, nº…, freguesia de Braga (…), concelho de Braga, registado na Conservatória pela inscrição G-., em regime de propriedade horizontal nos termos da inscrição F.2;
8– por escritura pública de 19/07/2002 no valor de € 37.409,84, a fracção autónoma designada pela letra” .”, habitação no ..º ..o., T2 c/ garagem individual, descrita na Conservatória sob o nº …–./Braga (… ..). Esta fracção autónoma faz parte do prédio urbano sito no lugar de …., actual Avenida …, nº…., freguesia de Braga (… …), concelho de Braga, registado na Conservatória pela inscrição G-., e, .-eginie de propriedade horizontal, nos termos da inscrição F–;
9 – por escritura pública de 05/02/2003, no valor de € 20.000, o prédio rústico … …, … ou … …., …., freguesia de Boim, concelho de Lousada, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o nº …/Boim – inscrição .- e inscrito na matriz sob o artigo ….
239.- Tais suprimentos do arguido A. à “C.” foram efectuados em numerário, em valores e por transferência bancária para a conta da ”C.” , tendo os que se encontram manifestados na sua contabilidade atingindo o total de € 555.520,73, distribuídos pelos seguintes anos:
- € 251.184,65 no ano de 2000;
- € 99. 136,08 no ano de 2001
- € 175.200,00 no ano de 2002;
- € 30.000,00, no ano de 2003.
240. – No mês de Maio de 2000, a ”C.” devolveu ao arguido A. a importância de 7.000.000$00 que este lhe tinha entregue em data anterior, a titulo de suprimentos.
241. – Em 2 de Junho de 2000, a arguida “C.” vendeu o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Pena fiel sob o nº. …/Marecos pelo mesmo preço por que o comprara, tendo o arguido A., recebido desta a quantia de 22.000.000$00 que tinha entregue àquela no ano de 2000, a título de suprimentos.
242– Em Março de 2003, o arguido A. era credor da “C.”, pelo menos, em € 356.058,06, crédito este resultante dos aludidos suprimentos.
243.– Todos os imóveis adquiridos foram pagos através do “caixa” , apesar da ”C.” não ter rendimentos próprios que lhe permitisse comprá-los.
244. – O arguido A. depositou nas contas identificadas no quadro infra, para movimentar os lucros que obteve para si e para as arguidas “C.“, “F.” e ”E.”, nas quais se encontravam depositadas as quantias também aí referidas provenientes das suas actividades supra descritas, no valor global de €34.504,70
271.– Quis ainda o arguido A. tornar lícitos os proventos que obteve com a sua descrita actividade, os quais sabia não lhe serem devidos transferindo-os sob a capa de suprimentos para a sua representada e arguida ”C.”.
11. De tais factos supra transcritos constata-se que considerando a data da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, de 11/2, só têm interesse e só relevam para efeitos de preenchimento do tipo legal do crime de branqueamento de capitais em causa nos autos, os factos ou actos de branqueamento praticados pelo arguido, ora reclamante, posteriores ao dia 11 de Fevereiro de 2002 e, em conformidade com a lei, toma-se necessário ainda provar nos autos que O DINHEIRO LAVADO E PROVENIENTE DA FRAUDE FISCAL FOI OBTIDO PELO ARGUIDO DEPOIS DESSA DATA DE 11 DE FEVEREIRO DE 2002.
12. Assim sendo, só os factos dos pontos 6.7.8. e 9. do item 238, parte do item 239 (suprimentos posteriores a 11/2/2002), e os itens 240., 241., 242., 243. 244. e 271. é que terão interesse para se verificar se foi ou não praticado o crime de branqueamento de capitais, como aliás também foi entendido pelo STJ no seu acórdão recorrido para este tribunal ad quem.
13. Porém, em nenhum desses factos vem provado ou referido QUE OS CAPITAIS UTILIZADOS para praticar os actos dos referidos itens 238. (números 6., 7., 8. e 9) e 239. FORAM OBTIDOS OU AUFERIDOS ILICITAMENTE PELO ARGUIDO A. ATRAVÉS DA FRAUDE FISCAL PRATICADA DEPOIS DO DIA 11 DE FEVEREIRO DE 2010. Ou seja, não vêm provados factos nos autos relativos às datas da obtenção do dinheiro alegadamente branqueado,
E o que é que o Supremo Tribunal de Justiça refere a tal respeito- Refere o que escreveu no seu douto acórdão sob o item 10.7.2, a fls. 155 e 156 do seu aresto e que passamos a transcrever.
- “10.7.2 Questão pertinente, porém, é a do tempo de execução do crime de branqueamento de capitais, o qual não está devidamente explicitado na decisão recorrida.
É que, estando imputados ao recorrente factos que decorreram entre 1997 e 2003, só podem ser imputados ao crime de branqueamento de capitais os posteriores à entrada em vigor da Lei nº 10/2002, de 11 de Fevereiro, pois, só a partir daí a fraude fiscal passou a ser um dos crimes de catálogo subjacente ao crime de branqueamento de capitais.
Estão neste caso as vendas de propriedades à “C.” referidas nos pontos n.ºs 6 a 9 do facto nº 238 e os suprimentos a essa empresa nos anos 2002 e 2003 (facto nº 239), o que tudo soma a importância de 302.673, 80€, que representa o capital transferido para a propriedade de «terceiro» (a “C.”) como forma de ocultar ou dissimular a sua origem.
Se o recorrente pretende aludir ao facto de que a parte da sua actividade referente ao crime de fraude fiscal foi praticada anteriormente à vigência da Lei nº 10/2002 e que, então, tal crime não estava previsto como crime antecedente (isto é, de catálogo) do crime de branqueamento – construção que, como vimos, parte da bipartição artificial da sua conduta em duas actividades distintas – ainda que fosse de aceitar tal interpretação dos factos provados – a verdade á que os actos de “branqueamento” (pelo menos os acima aludidos) foram realizados já na vigência daquela lei, e isso é que é relevante. Foram actos destinados a ocultar/dissimular as vantagens obtidas com a sua actividade ilícita, constitutiva, nomeadamente, de crime de fraude fiscal. Este poderia ter sido praticado anteriormente, mas isso não contende com a ilicitude típica do crime de branqueamento. Trata-se de dois crimes distintos, em relação de concurso real – o de fraude fiscal e o de branqueamento, como iremos ver mais detalhadamente a seguir – pelo que, tendo a conduta do Recorrente, destinada a dissimular e ocultar a proveniência ilícita do crime de fraude fiscal, ocorrido já depois da Lei nº 10/2002, é quanto basta para se dar como verificado o crime, pressuposto os demais elementos típicos, não relevando o facto de aquele crime de fraude fiscal ser anterior àquela Lei.
Porém, o crime de fraude fiscal estendeu-se, como os demais, até ao ano 2003, como resulta da matéria de facto provada (Vide, nomeadamente, factos provados a partir de 142, em que o recorrente, entre outros factos, cometeu reiteradamente factos integradores de fraude fiscal.”
(o sublinhado é nosso)
14. Conforme se pode verificar, para o STJ, não interessou saber se os “capitais lavados” foram ou não obtidos através da fraude fiscal em data anterior a 11 de Fevereiro de 2002 e, POR ISSO, é que julgou verificado o crime de branqueamento de capitais e condenou o arguido em 3 anos de prisão pela sua prática, apesar de em lado nenhum dos factos provados se referir que os factos e actos dos supra transcritos itens 238 (pontos 6 a 9) e 239 (suprimentos posteriores a 11/2/2002) foram praticados COM CAPITAIS obtidos por fraude fiscal praticada depois de 11 de Fevereiro de 2002.
15. Tenha-se em consideração que para se verificar preenchido ou cometido o crime de branqueamento de capitais, tem que ser “lavado” capital, não sendo suficiente que tenha sido praticado o crime de fraude fiscal (como diversamente o refere o STJ), pois tem que provar-se que o capital “lavado” foi aquele que foi obtido através da fraude fiscal praticado depois da entrada em vigor da lei 10/2002.
16. Para o STJ mesmo que o capital utilizado na prática dos actos dos itens 238 (pontos 6 a 9) e 239 (suprimentos posteriores a 11/2/2002) tivesse sido obtido pelo arguido em data anterior a 11/2/2002, continuaria a verificar-se o crime de branqueamento.
17. Ora, é aqui que reside a questão que se quer ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. O que o arguido pretende que o Tribunal Constitucional aprecie e declare ser inconstitucional é precisamente essa interpretação da lei disciplinadora do crime de branqueamento de capitais proveniente da fraude fiscal aplicada nos autos, julgando-se que para se verificar preenchido aquele tipo legal de crime de branqueamento de capital será necessário que os capitais lavados sejam provenientes do crime de fraude fiscal praticado depois de 11 de Fevereiro de 2002.
A entender-se de outro modo, estar-se-ia a permitir que o arguido A. seja condenado e cumpra uma pena de prisão de 3 anos por factos praticados anteriormente à data da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, de 11/2, quando a Constituição da República Portuguesa, no seu art. 29.º/1, prescreve que “ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”.
18. Pelo exposto, se não tivesse sido o entendimento do STJ aquele que supra se deixa referido, então, considerando que não se encontra provado nos autos nenhum facto que refira que os actos dos itens 238 (pontos 6 a 9) e 239 (suprimentos posteriores a 11/2/2002) foram praticados com capital obtido por fraude fiscal posterior a 11/2/2002, como é que se compreenderia a condenação do arguido em 3 anos de prisão pela prática do crime de branqueamento de capitais-
19. Por outro lado, não concorda nem aceita o Reclamante tal fundamentação do indeferimento do seu recurso, desde logo, porque, diversamente do referido pelo Tribunal reclamado, tudo o que para é carreado ou transposto para as decisões judiciais é porque tem relevância para as mesmas, pois não faz sentido nenhum alegarem-se razões ou fundamentos numa decisão para depois se referir que as mesmas não contam para a decisão substancial. Como é corrente afirmar-se, para o julgador, o que não está nos autos não está no mundo. O que o STJ afirma agora no seu despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional é precisamente o contrário, ou seja, que apesar de estar no acórdão, não está na condenação-!
Trata-se de um entendimento verdadeiramente admirável!
20. Portanto, repetimos, há a referir que, efectivamente, o Supremo Tribunal de Justiça condenou o arguido, ora reclamante, por claramente ter interpretado e por ter entendido que para efeito de verificação do crime de branqueamento de capitais em causa nos autos não importava verificar, determinar ou saber se os “capitais lavados” tinham ou não sido obtidos pelo arguido através da actividade de fraude fiscal PRATICADA EM DATA ANTERIOR á data da entrada em vigor da Lei 10/2002, de 11 de Fevereiro.
21. E por assim interpretar a lei punitiva do branqueamento de capitais imputado ao arguido, designadamente o art. 1.º/1/als. a), b), c), d) e e) da Lei n.º 36/94, de 29/9, o art. 2.º/1/al. a) do DL n.º 325/95, de 2/12, o mesmo art. 2.º do DL 325/95 com a redacção dada pela Lei n.º 10/2002, de 11/2, o art. 53.º da Lei n.º 11/2004, de 27/3 e o art. 368.º-A do Cód. Penal, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão objecto de recurso para o Tribunal Constitucional, condenou o arguido em 3 anos de prisão pela prática desse tipo legal e depois, após reclamação, manteve tal condenação, sem ter apreciado ou determinado qual foi a data de obtenção ou do ganho do capital utilizado nos actos considerados de branqueamento, ou seja, sem ter querido saber se o dinheiro lavado foi obtido através da actividade de fraude fiscal praticada em data anterior á data da entrada em vigor da referida Lei 10/2002, de 11/2.
22. Ao assim ter decidido, o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator está a decidir do mérito de um recurso cuja competência é do Tribunal Constitucional. Cabe ao Tribunal Constitucional apreciar se a interpretação da disciplina legal do crime de branqueamento de capitais proveniente da fraude fiscal exige que os capitais branqueados tenham sido obtidos apenas depois da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, cabendo ainda ao Tribunal Constitucional apreciar se o censurado entendimento do STJ foi ou não a ratio decidendi da condenação do arguido.
D) CONCLUSÕES:
Vossa Excelência, o Senhor Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, por douta decisão, revogando o douto despacho reclamado e substituindo-o por outro que admita o recurso interposto FARÁ JUSTIÇA.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação, com os seguintes fundamentos:
“1. Pela interposição do recurso para o Tribunal Constitucional o arguido pretende ver apreciada a seguinte questão:
“Sob os itens 10.7.2 e 10.7.3 do douto acórdão do STJ interpretou-se a lei punitiva do crime de branqueamento de capitais imputado ao arguido, designadamente o art. 1º/1/als. a), b), c), d) e e) da lei nº 36/94, de 29/9, o art. 2º/1/al. a) do D.L. nº 325/95, de 2/12, o mesmo art. 2º do DL 325/95 com redacção dada pela Lei nº 10/2002, de 11/2, o art. 53º da Lei nº 11/2004, de 27/3 e o art. 368º - A do Cód. Penal com sentido de que, mesmo que os proventos ou dinheiros provenientes da fraude fiscal tenham sido obtidos pelo arguido em data à da entrada em vigor da lei nº 10/2002, e 11/2, o que conta ou importa para julgar-se verificado ou preenchido o crime de branqueamento é que os actos de ocultação ou dissimulação tenham sido praticados depois da data em vigor de tal lei, sendo irrelevante que o crime de fraude fiscal tenha sido cometido em data anterior.”
2. Sobre esta questão diz o Supremo Tribunal de Justiça:
“Em face dessa afirmação, o requerente aproveita para referir que tal interpretação é inconstitucional e constitui uma nulidade, pois, “as interpretações inconstitucionais da lei são as maiores nulidades legalmente previstas.”
Acontece que o requerente, mesmo a ter razão quanto ao sentido de tal interpretação, não deve ter reparado que essa afirmação não passa de um obter dictum, um plus em relação à fundamentação principal, ou até menos do que isso: uma construção hipotética. Com efeito, logo a seguir afirma-se:
Porém, o crime de fraude fiscal estendeu-se, como os demais, até ao ano 2003, como resulta da matéria de fato provada (Vide, nomeadamente, factos aprovados a partir de 142, em que o recorrente, entre outros factos, cometeu reiteradamente factos integradores de fraude fiscal.
Ora, esta é que é, como resulta do teor da sua enunciação, a afirmação que serve de verdadeira ratio decidendi : o crime de fraude fiscal ter sido continuamente cometido desde 1997 a 2003, e portanto, como crime continuado, a sua consumação só se ter verificado com prática do último acto.
Por isso mesmo, mais adiante, em 10.8 do acórdão posto em crise, a propósito da determinação da pena única, se considera o seguinte:
Ora, ao recorrente é imputada uma actividade criminosa ao longo dos anos, de 1997 a 2003, mas que foi considerada como continuada, admitindo-se que havia, de algum modo, uma diminuição de culpa na reiteração criminosa, motivada por factores externos.
Por conseguinte, também aqui não foi cometida nenhuma nulidade, tendo este Tribunal sido perfeitamente claro quanto ao tempo de duração do crime de fraude fiscal e a sua persistência para além da publicação da lei nº 10/2002, que o prevê como crime antecedente do crime de branqueamento.”
3. Ora, parece-nos que não haverá uma coincidência integral entre a dimensão normativa que se pretende ver apreciada e a efectivamente aplicada, como ratio decidenti .
4. No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional o recorrente afirma que suscitou a questão “na Reclamação sobre a qual incidiu o acórdão impugnado”
5. Portanto, essa reclamação foi do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, apreciando mérito de recurso, negou-lhe provimento numa parte e concedeu-lhe em outra.
6. O Tribunal Constitucional tem entendido que os incidentes pós - decisórios já não são o momento processualmente adequado para, pela primeira vez, se suscitar uma questão de inconstitucionalidade, como ocorreu nos presentes autos.
7. Na verdade, o recorrente só poderá estar dispensado de ónus de suscitação prévia se a interpretação acolhida na decisão recorrida for inesperada, anómala ou surpreendente de tal forma que ele não a poderia prévia e processualmente ter suscitado a questão.
8. No entanto, nestes casos, como o Tribunal Constitucional tem decidido, é ao recorrente que incumbe explicar por razão entende que a interpretação é surpreendente ou anómala e porque lhe era processualmente impossível, anteriormente, ter suscitado a questão, ou seja, porque estava dispensado do ónus da suscitação prévia (v.g. Acórdão nº 213/2004).
9. Ora, sobre tal matéria, o recorrente nada disse.
10. Acresce que pela leitura das conclusões da motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que vêem transcritas no Acórdão desse Tribunal, somos levados a crer que a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça nada teve de surpreendente (nºs 36 e 37 das Conclusões, a fls. 56 e V.).
11. Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Notificado para se pronunciar sobre esta posição do Ministério Público, o arguido acrescentou o seguinte:
“1. Sob os itens 6. e 7. do douto parecer em apreciação, refere-se o seguinte:
- “6. O Tribunal Constitucional tem entendido que os incidentes pós-decisórios já não são o momento processualmente adequado para, pela primeira vez, se suscitar uma questão de inconstitucionalidade, como ocorreu nos presentes autos.
7. Na verdade, o recorrente só poderá estar dispensado de ónus de suscitação prévia se a interpretação acolhida na decisão recorrida for inesperada, anómala ou surpreendente de tal forma que ele não a poderia prévia e processualmente ter suscitado a questão.
8. No entanto, nestes casos, como o Tribunal Constitucional tem decidido, é ao recorrente que incumbe explicar por razão entende que a interpretação é surpreendente ou anómalo e porque lhe era processualmente impossível, anteriormente, ter suscitado a questão, ou seja, porque estava dispensado do ónus da suscitação prévia (v.g. Acórdão nº 213/2004).”
2. È, efectivamente, verdade, não ter o arguido, reclamante nos presentes autos, explicado porque razão entende que a interpretação que se diz inconstitucional é surpreendente ou anómala e porque lhe era processualmente impossível, anteriormente, ter suscitado a questão, ou seja, porque estava dispensado do ónus da suscitação prévia.
3. Mas, in casu, pergunta-se, seria ou será necessária essa explicação ou alegação-
4. A resposta a tal questão só poderá ser negativa.
5. Com efeito, de folhas 57 a folhas 62 da sua motivação para o Supremo Tribunal de Justiça, o arguido transcreveu o que, no seu entendimento, constitui a disciplina legal do crime de branqueamento de capitais em causa nos autos e que passamos aqui a reproduzir:
“VI) I. 1 – DIREITO:
DISCIPLINA LEGAL – na análise do crime de branqueamento de capitais em causa nos autos deve ter-se em consideração o artigo 1.º/1/als. a), b), c), d) e e) da Lei n.º 36/94, de 29/9, o artigo 2.º/1/al. a) do DL n.º 325/95, de 2/12, aquele art. 2.º do DL 325/95 com a redacção dada pela Lei n.º 10/2002, de 11/2, o art. 53.º da Lei n.º 11/2004, de 27/3, o art. 368.º-A do Cód. Penal e os artigos 1.º/1 e 2.º/ 4 do Código Penal.
A Lei n.º 11/2004, de 27/3 e o art. 368.º-A do Cód. Penal apesar de se referirem supra apenas SÃO APLICÁVEIS AOS FACTOS DOS AUTOS na parte respeitante ao mínimo da moldura penal que baixou para 2 anos.
O artigo 2.º do DL n.º 325/95, de 2/12 com a redacção dada pela Lei n.º 10/2002, de 11/2, face ao disposto no artigo 1.º/1 e 2.º/ 4 do Código Penal não é aplicável aos factos dos autos.
Vejamos:
Refere assim o art. 1.º/1/alíneas a), b), c), d) e e) da Lei n.º 36/94, de 29/9, sob o título:
“Acções de prevenção”
“1 – Compete ao Ministério Público e à Polícia Judiciária, através da Direcção Central para o Combate à Corrupção, Fraudes e Infracções Económicas e Financeiras, realizar, sem prejuízo da competência de outras autoridades, acções de prevenção relativas aos seguintes crimes:
a) Corrupção, peculato e participação em negócio;
b) Administração danosa em unidade económica do sector público;
c) Fraude na obtenção ou desvio de subsidio, subvenção ou crédito;
d) Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à tecnologia informática;
e)Infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional.”
Por sua vez, o art. 2.º/1/al. a) do DL n.º 325/95, de 2/12, sob o título “Conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos”, prescreve o seguinte:
“1 - QUEM, sabendo que os bens ou produtos PROVENIENTES da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de crimes de terrorismo, tráfico de armas, extorsão de fundos, rapto, lenocínio, corrupção e das demais infracções referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro:
a) Converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência desses bens ou produtos, no todo ou em parte, directa ou indirectamente, com o fim de ocultar ou dissimular a sua ORIGEM ILÍCITA ou de ajudar uma pessoa implicada na pratica de qualquer dessas infracções a eximir-se às consequências jurídicas dos seus actos, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.”
Tal art. 2.º daquele DL 325/95, de 2/12, passou também a contemplar, na sua previsibilidade típica, os bens ou produtos provenientes de fraude fiscal, com a alteração que lhe foi introduzida pela Lei n.º 10/2002, de 11/2, tendo tal art. 2.º, com este último diploma, passado a ter a seguinte redacção:
Artigo 2. [...].
1 - Quem, sabendo que os bens ou produtos SÃO PROVENIENTES DA PRÁTICA, sob qualquer forma de comparticipação, de crimes de terrorismo, tráfico de armas, tráfico de produtos nucleares, extorsão de fundos, rapto, lenocínio, tráfico de pessoas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, pornografia envolvendo menores, tráfico de espécies protegidas, corrupção e demais infracções referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/1994, de 29 de Setembro, fraude fiscal, e demais crimes punidos por lei com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 5 anos:
A Lei n.º 11/2004, de 27/3, entrada em vigor em 3 de Abril de 2004, revogou o DL n.º 313/93, de 15/9 e o DL n.º 325/95, de 2 de Dezembro, tendo o artigo 53.º de tal lei aditado ao Cód. Penal o art. 368.º-A, o qual passou a ter seguinte redacção:
Artigo 368º-A
BRANQUEAMENTO
1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens PROVENIENTES DA PRÁTICA, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos típicos de lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, fraude fiscal, tráfico de influência, corrupção e demais infracções referidas no nº 1 do artigo 1º da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a 6 meses ou de duração máxima superior a 5 anos, assim como os bens que com eles se obtenham.
2 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas POR SI OU POR TERCEIRO, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal, é punido com pena de prisão de 2 a 12 anos.
3 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
4 - A punição pelos crimes previstos nos nºs 2 e 3 tem lugar ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.
5 - O facto não é punível quando o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e a queixa não tenha sido tempestivamente apresentada.
6 - A pena prevista nos nºs 2 e 3 é agravada de um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual.
7 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1ª instância, a pena é especialmente atenuada.
8 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.
9 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
10 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
(as letras maiúsculas e o sublinhado são nossos)
Artigo 1º
Princípio da legalidade
1 - Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática.
2 - A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preenchimento.
3 - Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde.
Artigo 2º
Aplicação no tempo
1 - As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.
2 - O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
3 - Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado durante esse período.
4 - Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.”
6. Em virtude disso, conforme se pode constatar no Proc. n.º 156/00.21DBRG, processo onde foi proferida a decisão inconstitucional, o arguido até ao momento em que foi notificado do douto acórdão do STJ, não imaginaria sequer que no processo e pelo Supremo Tribunal de Justiça fosse proferida uma decisão onde e pela qual se condenasse o arguido A., ao cumprimento de uma pena de prisão efectiva por ter praticado factos ocorridos em DATA ANTERIOR à data em que entrou em vigor a Lei punitiva desses factos.
7. E nunca imaginaria o arguido que fosse possível ao Supremo Tribunal de Justiça proferir uma tal decisão inconstitucional, por entender constituir o ABC do direito penal do conhecimento da generalidade das pessoas, que ninguém pode ser punido ou condenado por factos praticados em data anterior á data da entrada em vigor da lei que os pune.
8. No nosso entendimento, constitui um FACTO NOTÓRIO, constitui um facto que não carece de alegação, em conformidade com o principio da legalidade (com os seus três corolários, designadamente nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, nullum crimen, nulla poena sine lege certa e nullum crimen, nulla poena sine lege stricta), saber que nenhuma pessoa pode ser punida por factos praticados em data anterior á data da entrada em vigor da Lei que os pune.
9. E se esses factos são do conhecimento da generalidade das pessoas, se o principio da legalidade é do conhecimento, digamos, do senso comum, então, por força da razão, é esse principio do conhecimento dos Senhores Juízes das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, não passando pela cabeça do arguido nem pela dos seus defensores que fosse possível, no presente século XXI, proferir-se uma decisão com uma interpretação tão claramente contrária a tal princípio da legalidade.
10. Por outras palavras, conforme se refere supra, nas suas motivações do recurso, o arguido suscitou precisamente o entendimento contrário àquele que o Supremo Tribunal de Justiça, inconstitucionalmente, de forma “inesperada, anómala e surpreendente”, acabou por aplicar e com base no qual o condenou.
11. Finalmente, o tribunal reclamado, a agravar a aplicação inconstitucional da lei, ainda entendeu que não tinha de se verificar o nexo de causalidade entre os proventos obtidos pela fraude fiscal e os proventos lavados.
TERMOS EM QUE, de modo a evitar uma injusta condução do arguido para cumprimento de uma pena de prisão, de modo a cumprir-se o que manda a Constituição da República Portuguesa, deve admitir-se o recurso interposto para este Tribunal, não devendo decidir-se em conformidade com o douto parecer do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto.”
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.,º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
O Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie as normas constantes dos artigos 1.º/1/als. a), b), c), d) e e) da Lei n.º 36/94, de 29/9, o art. 2.º/1/al. a) do DL n.º 325/95, de 2/12, o mesmo art. 2º do DL 325/95 com a redacção dada pela Lei n.º 10/2002, de 11/2, o art. 53º da Lei nº 11/2004, de 27/3 e 368.º-A do Cód. Penal, interpretadas com o sentido de que, mesmo que os proventos ou dinheiros provenientes da fraude fiscal tenham sido obtidos pelo arguido em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, de 11/2, o que conta ou importa para julgar-se verificado ou preenchido o crime de branqueamento é que os actos de ocultação ou dissimulação tenham sido praticados depois da data em vigor de tal lei, sendo irrelevante que o crime de fraude fiscal tenha sido cometido em data anterior.
Da leitura da decisão recorrida, nomeadamente dos seus pontos 10.7.2. e 10.7.3., resulta que, efectivamente, aí se sustentou a interpretação acima enunciada, mas que a mesma não foi decisiva para justificar a manutenção da condenação do arguido pela prática do crime de branqueamento de capitais, pois entendeu-se que os proventos auferidos por este provenientes de fraude fiscal tinham sido obtidos durante um período que se prolongou para além da entrada em vigor da Lei n.º 10/2002, de 11 de Fevereiro.
Na verdade, na sentença recorrida após se enunciar o critério interpretativo acima exposto, escreveu-se: “porém, o crime de fraude fiscal estendeu-se, como os demais, até ao ano de 2003, como resulta da matéria de facto provada”.
Tendo sido efectuada esta constatação, sem que a este Tribunal seja permitido averiguar da correcção do correspondente juízo subsuntivo, a tese anteriormente exposta deixa de influir na decisão de manutenção da condenação pela prática do crime de branqueamento de capitais, pelo que tem o cariz de mero obicter dictum, não integrando a ratio decidendi da decisão recorrida.
Assim sendo, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, a apreciação da constitucionalidade da interpretação normativa apresentada pelo Recorrente carece de qualquer utilidade prática, pelo que revela-se correcta a decisão reclamada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida por A..
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de Dezembro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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