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Processo n.º 675/2010
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
EM CONFERÊNCIA DA 1ª SECÇÃO ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. recorreu para Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/88 de 15 de Novembro (LTC), do acórdão proferido em 1 de Julho de 2010 no Supremo Tribunal de Justiça, pretendendo ver apreciada a norma do artigo 2096° n.º 1 do Código Civil, «na parte em que se entende que não há sonegação de bens da herança quando o co-titular de contas bancárias, neste caso a R., as pode movimentar, quer a débito, quer a crédito, sem o consentimento e autorização dos demais co-titulares, mesmo que um dos co-titulares tenha falecido, o pai das RR., e não haja ainda partilha.» Sustenta que «a não se entender como se defende, isto é, que há sonegação de bens, a R. e recorrente vê-se prejudicada pelo menos na sua dignidade social (art. 13º n.º 1, da CRP)».
Argumenta que a questão de inconstitucionalidade «só agora é suscitada atenta a decisão da revista, por se entender que nunca houve sonegação e se defender que a inconstitucionalidade não deve ser levantada por meras razões académicas.»
2. Por decisão sumária, o relator decidiu não conhecer do objecto do recurso de acordo com os seguintes motivos:
«[...] 2. A questão diz respeito à matéria que o acórdão recorrido entendeu ser o tema a decidir e que abordou da seguinte forma:
«[...]Crendo-se aqui não haver dúvidas de que a autora, filha do falecido, com a sua conduta – averiguação do destino das quantias levantadas e transferidas pela ré e pedido efectuado, no sentido de se declarar que tais valores sejam declarados pertença da herança de seu pai e recebendo, por conta do quinhão da herança, a quantia de € 1 500 – está claramente a aceitar a herança.
E a ré, tendo ocultado, ainda em vida de seu pai, os levantamentos por ela efectuados em proveito próprio, sabedora que as quantias de que se apoderou pertenciam à herança de seu pai, uma vez este falecido, pretendeu negar que assim fosse, alegando, nesta acção, não que as mesmas lhe pertenciam, mas que foram entregues ao pai, antes do óbito deste, que as gastou como bem entendeu.
Mas, não foi assim, como já vimos.
A ré levantou tais quantias em seu proveito próprio, tendo procurado omiti-las do acervo hereditário.
Será que se está perante a sonegação de bens prevista no art. 2096.º-
[...]
Ora, e reportando-nos, de novo, e em concreto, aos autos, dúvidas não restarão que a ré/recorrente, a quem, aliás, incumbia o cabeçalato, não só omitiu ao fisco, a relação de bens deixados pelo falecido DD, como, bem sabendo que as quantias que em seu proveito levantou dos depósitos bancários, de que seu pai era titular real, faziam parte, com a morte deste, da massa hereditária, decidiu delas se apropriar, ocultando-as à sua irmã, como ela, herdeira, procurando antes fazer crer que fora o pai de ambas que delas usufruiu como bem quis.
Tudo isto, não obstante a solidariedade das contas bancárias em que se movimentou.
Pois que, sendo certo que tal regime lhe proporcionava, só por si, a movimentação dos capitais nelas depositados, não lhe dava ele o direito – já que deles não era dona – a apoderar-se dos mesmos, como se seus fossem.
Devendo, antes, repartir o seu montante com sua irmã, ora autora, tal como fez com outra quantia, bem menor (al. O).
Mas não, foi necessária esta acção para que a autora lograsse obter a declaração de que as quantias em causa pertenciam à herança, mantendo a ré nela nela, embora sem êxito, a sua versão de que as mesmas já não existiam, por terem sido gastas pelo pai, em vida do mesmo.
Querendo, pois, dolosamente ocultar a existência de tais bens.
Querendo deles se apossar ilicitamente em detrimento da outra herdeira.
Verifica-se, pois, in casu, a sonegação de bens.[...]»
3. A questão de inconstitucionalidade colocada ao Tribunal tem a ver com esta decisão, por a recorrente entender, diferentemente, que não ocorreu a referida 'sonegação'. Todavia, esta questão concretiza-se num juízo não normativo, porque nada tem a ver com o critério geral da disposição legal, mas com o conteúdo concreto da decisão tomada pelo tribunal recorrido, chamado – no domínio da sua típica função jurisdicional – a qualificar juridicamente o comportamento da parte face aos factos adquiridos no processo.
Ora, a natureza normativa do recurso impõe que a recorrente defina como seu objecto uma norma, a que foi efectivamente aplicada, e não o âmbito da eficácia dessa norma no caso concreto, porque este é já um reflexo da norma determinado pela decisão do tribunal.
Conclui-se, portanto, que a recorrente tem por inconstitucional a própria decisão do tribunal recorrido; mas essa realidade não pode constituir, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da LTC, o objecto do recurso, por não se reportar directamente a norma ou normas aplicadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi. [...] »
3. Contra esta decisão sumária reclama a recorrente, nos seguintes termos:
«[...]
1. Reafirma-se a inconstitucionalidade alegada. E,
2.Em suma, entende-se que não há partilha de bens, nem de nenhum dos bens.
3.Nem há sonegação de bens pela R..
4.Acrescendo que, na natureza normativa do recurso para esse Tribunal Constitucional, o seu objecto é a norma do art. 2096°, n.º 1, do Código Civil, que foi aplicada, entende-se, também, que tal norma é inconstitucional, na parte em que se entende que não há sonegação de bens da herança quando a co-titular das contas bancárias, neste caso a R., as pode movimentar, quer a débito, quer a crédito, sem o consentimento e autorização dos demais co-titulares, mesmo que um dos co-titulares tenha falecido, o pai das RR., e não haja partilha desses bens ou valores da herança. Logo,
5. Não há sonegação dos valores das contas bancárias, nem doutros, e a norma do art. 2096°, n.º 1, do Código Civil, é inconstitucional, nos termos atrás expostos.
6. Existe, pois, a inconstitucionalidade indicada. [...]»
4. Não houve resposta à reclamação, importando agora decidir.
O Tribunal recusou conhecer do objecto do recurso por se haver entendido, na decisão sumária em reclamação, que a recorrente incluíra no objecto do recurso a própria decisão do tribunal recorrido, e não uma norma jurídica, conforme exige a natureza normativa do recurso disciplinado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como é o presente.
Na reclamação agora apresentada, a recorrente «reafirma» a sua pretensão, esclarecendo que o objecto do recurso é a norma do artigo 2096° n.º 1 do Código Civil, aplicada com o sentido de que «não há sonegação de bens da herança quando a co-titular das contas bancárias, neste caso a R., as pode movimentar, quer a débito, quer a crédito, sem o consentimento e autorização dos demais co-titulares, mesmo que um dos co-titulares tenha falecido, o pai das RR., e não haja partilha desses bens ou valores da herança.»
Todavia, se se atentar no teor literal do preceito de onde a reclamante retira esta 'norma', logo se concluirá que o recurso não visa impugnar o seu teor preceptivo, mas apenas fazer inverter o julgamento do Supremo Tribunal de Justiça, adoptado no exercício de uma tarefa que se concretiza em operações subsuntivas de ponderação casuística do caso concreto. Na verdade, o preceito dispõe assim:
ARTIGO 2096º
(Sonegação de bens)
1. O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça-de-casal, perde em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de incorrer nas mais sanções que forem aplicáveis.
2. O que sonegar bens da herança é considerado mero detentor desses bens.
Ora, é manifesto que a pretensão de que «não há sonegação de bens da herança quando a co-titular das contas bancárias, neste caso a R., as pode movimentar, quer a débito, quer a crédito, sem o consentimento e autorização dos demais co-titulares, mesmo que um dos co-titulares tenha falecido, o pai das RR., e não haja partilha desses bens ou valores da herança» tem em vista, unicamente, contrariar o julgamento do tribunal recorrido.
É, por isso, certo que o objecto do recurso não se traduz numa norma, tal como impõe a referida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
5. Em consequência, o Tribunal decide indeferir a reclamação, mantendo a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2010.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.
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