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Processo n.º 471/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriagues, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada.
O arguido requereu a realização de instrução, solicitando a sua não pronúncia.
Terminada a instrução foi proferido despacho que decidiu não pronunciar o arguido pela prática do crime de que vinha acusado.
Nesse despacho recusou-se a aplicação do disposto nos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, do Código da Estada, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, a), da Lei do Tribunal Constitucional, da parte daquele despacho que recusou a aplicação das normas constantes dos referidos preceitos do Código da Estrada.
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1. Quer segundo o artigo 162º, nºs 1 e 2 do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, quer segundo o artigo 156º do mesmo Código na actual redacção (saída das alterações operadas pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001, de 28 de Setembro e pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro), em caso de acidente de trânsito, quando não for possível realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser realizado, no estabelecimento de saúde para onde os intervenientes forem conduzidos, exame de pesquisa de álcool no sangue.
2. Como resulta da análise conjugada dos nº 2 e 3 do artigo 156º do Código da Estrada, na actual redacção, com o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 162º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, em qualquer dos regimes, o interveniente em acidente pode recusar submeter-se àquele exame, caso em que se procederá à realização de outros exames médicos para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
3. Esta conclusão também se extrai do Acórdão nº 275/2009 do Tribunal Constitucional que julgou organicamente inconstitucional a norma do nº 8 do artigo 153º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, uma vez que se considerou que a alteração introduzida por aquele diploma legal retirara ao condutor o direito de recusar a recolha de sangue, direito que a redacção anterior (dada pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001), lhe concedia.
4. Ora, o Decreto-Lei nº 44/2005 não introduziu qualquer alteração relevante ao artigo onde se inclui a norma que constitui objecto do recurso - o nº 2 do artigo 156º do Código da Estrada -, mantendo-se, no essencial, a redacção anterior, conferida pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001 (artigo 162º).
5. Deste modo, não tendo a actual redacção do artigo 156º do Código da Estrada qualquer carácter inovatório em relação ao estabelecido no artigo 162º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, a norma do nº 2 daquele artigo 156º não é organicamente inconstitucional, mesmo entendendo que se está perante matéria cujo tratamento legislativo cabe na competência exclusiva da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e c) da Constituição).
6. Pelo exposto, deve conceder-se provimento ao recurso.”
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
Apesar de no requerimento de interposição de recurso o Ministério Público ter impugnado a decisão recorrida na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas contidas nos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, do Código da Estada, nas alegações posteriormente apresentadas defendeu que o Tribunal Constitucional deve apenas verificar a constitucionalidade da norma constante do artigo 156.º, n.º 2, uma vez que as restantes não eram passíveis de serem aplicadas na decisão recorrida, funcionando apenas como meros elementos interpretativos.
Na verdade, não tem qualquer efeito útil a apreciação da constitucionalidade de norma cuja recusa pela decisão recorrida não integre a sua ratio decidendi, surgindo a mesma apenas como um argumento ad ostentationem.
Na decisão em apreço estava em questão saber se era possível valorar os resultados de exame de pesquisa de álcool no sangue recolhido ao arguido em hospital, após este ter sido interveniente num acidente, na condução de um veículo automóvel, sem este ter sido previamente informado que a recolha de sangue tinha como finalidade essa pesquisa.
A decisão recorrida entendeu que para determinar a validade daquele meio de prova, obtido da forma referida, era necessário verificar se era possível o arguido recusar-se a ser submetido a tal exame, tendo procurado a resposta a essa questão na conjugação do disposto nos artigos 156.º, n. 2, e 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, cuja aplicação recusou, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
Já o constante do artigo 153.º, n.º 8, do mesmo diploma, não tinha qualquer aplicação a esta hipótese, uma vez que o exame em causa foi realizado na sequência de um acidente de viação, cujo regime tem uma previsão específica no referido artigo 156.º, não se aplicando o regime do artigo 153.º, o qual regula a fiscalização da condução sob o efeito de álcool em situações em que não ocorreu qualquer acidente. A referência a este preceito pela decisão recorrida inseriu-se apenas num enquadramento sistemático do regime legal da matéria em discussão, não resultando da sua aplicação a solução encontrada.
Não tendo, pois, assumido relevância para a decisão da causa a recusa de aplicação do disposto no artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, não há interesse em apreciar a sua constitucionalidade.
O Ministério Público também suscitou a questão da utilidade do conhecimento do recurso, perante a alegada existência de um segundo fundamento da decisão recorrida, além da recusa de aplicação daquelas normas por inconstitucionalidade, que consistiria na ilegalidade da prova pericial, devido à colheita de sangue ter sido efectuada sem ter sido dado conhecimento ao arguido da finalidade probatória dessa colheita.
Ora, apesar da construção da decisão recorrida ser algo equivoca, da sua leitura parece resultar que, mesmo que se considerasse aplicável o disposto nos artigos 156.º, n.º 2, e 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção, do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, a prova pericial realizada seria também ilegal, por falta de conhecimento do arguido da finalidade da recolha do sangue objecto de análise.
Contudo, apesar de se poder intuir da decisão recorrida este entendimento, ela recusou a aplicação daquelas normas, uma vez que as considerou afectadas pelo vício da inconstitucionalidade orgânica, tendo aplicado em sua substituição o anteriormente disposto no Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Assim, mantém toda a utilidade o conhecimento do mérito do recurso, uma vez que, em caso de não ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida, a mesma terá de ser reformulada, pelo menos, na sua fundamentação.
Por estas razões, cumpre proceder à fiscalização da constitucionalidade orgânica dos artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que não admitem a possibilidade da pessoa interveniente em acidente recusar-se a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, tipificando tal recusa como um crime de desobediência.
2. Do mérito do recurso
Na decisão recorrida considerou-se que estes preceitos eram inconstitucionais porque, respeitando eles à definição de crimes, deveriam ter sido aprovados pela Assembleia da República ou pelo Governo, com autorização da Assembleia, o que não sucedeu, uma vez que resultaram de diploma emitido pelo Governo, sem a necessária autorização, pelo que sofrem de inconstitucionalidade orgânica.
Esta posição já tem sido sustentada por outras decisões dos tribunais judiciais (vide os Acórdãos da Relação do Porto de 9-12-2009 e de 14/7/2010, e da Relação de Coimbra de 19-10-2010, acessíveis em www.dgsi.pt), os quais invocaram como apoio o decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 275/09, (em A.T.C., 75.º vol., pág. 299).
Cumpre previamente dizer que os fundamentos desse aresto não são inteiramente transponíveis para a solução desta questão, uma vez que ele se pronunciou pela inconstitucionalidade do arco normativo formado pelos artigos 152.º, n.º 3, e 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, enquanto punem como crime de desobediência a recusa de condutores que não intervieram em acidente de viação, em se sujeitarem à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, enquanto neste recurso está sob análise a conjugação dos artigos 152.º, n.º 3 e 156.º, n.º 2, do mesmo diploma que regulam a situação específica de controle do estado de influenciado pelo álcool de pessoas que intervieram em acidente de viação.
O artigo 152.º, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, dispõe:
“Artigo 152.º
Princípios gerais
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;
…
3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.”
E o artigo 156.º, do mesmo diploma:
“Artigo 156.º
Exames em caso de acidente
“1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
3 – Se o exame da pesquisa do álcool no sangue não puder ser feito, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
…”
Enquanto o n.º 3, do artigo 152.º, procede à tipificação penal de uma determinada conduta, definindo um crime, o n.º 2, do artigo 156.º, regula a produção de um meio de prova que pode ser utilizado em processo penal, pelo que respeitam ambos a matérias da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização concedida por esta ao Governo (artigo 165.º, n.º 1, c), da C.R.P.).
A Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, expressamente invocada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, não contém qualquer autorização ao Governo para legislar em tais matérias, pelo que as mesmas só não sofrerão do vício de inconstitucionalidade orgânica se não tiverem um carácter inovador perante anterior legislação emitida por órgão competente.
Conforme o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar reiteradamente, em jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, o facto do Governo aprovar normas respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa da Assembleia da República não determina por si só a inconstitucionalidade orgânica dessas normas, sendo também necessário que as mesmas criem um regime jurídico materialmente diverso daquele que até à aprovação dessa nova normação constava dos textos legais emanados pelo órgão de soberania competente. Se as normas aprovadas pelo Governo sem uma autorização específica da Assembleia se limitarem a reproduzir substancialmente as soluções anteriormente aprovadas com a necessária autorização, não se vê razão para se invalide esse acto.
Importa, portanto, analisar o regime anteriormente vigente, de modo a aquilatar a natureza inovatória das normas desaplicadas pela decisão recorrida.
O Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, veio alterar a redacção do Código da Estrada que havia sido introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro.
Na secção que regulava os procedimentos para a fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, no artigo 158.º, que estabelece os princípios gerais nesta matéria, dispunha-se:
“Artigo 158.º
Princípios gerais
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;
c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.
(…)
3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas são punidas por desobediência.
(…)”
E o artigo 162.º que regulava especificamente a realização de exames em caso de acidente dispunha:
“Artigo 162.º
Exames em caso de acidente
1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 159.º
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, o médico deve proceder a exame pericial para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.”
Da leitura comparada dos preceitos em questão verifica-se que o texto do Código da Estrada, resultante das alterações aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, além de conter uma diferente numeração e excepcionando um pequeno pormenor de redacção, manteve integralmente a solução que constava da versão do Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro – ocorrendo acidente e não sendo possível a realização de exame de pesquisa de álcool no ar expirado, era obrigatória a sujeição a colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, sendo a recusa a esta colheita punida criminalmente por desobediência.
Contudo, constata-se que também no Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, tal matéria foi objecto de intervenção legislativa pelo Governo sem a necessária autorização da Assembleia, pelo que não se mostra afastado o invocado vício da falta dessa autorização, sendo, por isso, ainda necessário verificar o conteúdo da redacção do Código da Estrada anterior à aprovada por este diploma, na busca da última vontade do legislador competente.
Essa redacção, no que toca às normas aqui em causa, havia sido aprovada pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro (o Decreto-Lei n.º 162/2001, de 22 de Maio, que alterou o Código da Estrada, apesar de não ter chegado a entrar em vigor, não introduziu modificações nestas regras), que neste tema se encontrava credenciado pela Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, a qual dispunha no seu artigo 3.º, d):
Fica ainda o Governo autorizado a estabelecer:
(…)
d) A punição como desobediência da recusa, por condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção de estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, e ainda dos médicos ou paramédicos que, injustificadamente, se recusem a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar os referidos estados.”
Na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o artigo 158.º, do Código da Estrada, dispunha:
“Artigo 158.º
Princípios gerais
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os demais utentes da via pública, sempre que sejam intervenientes em acidente de trânsito.
(…)
3 - Quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 159.º, é punido por desobediência.”
E o artigo 162.º que regulava especificamente a realização de exames em caso de acidente previa:
“Artigo 162.º
Exames em caso de acidente
1 - Os condutores e quaisquer pessoas que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado nos termos do artigo 159.º
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame no local do acidente, deve o médico do estabelecimento hospitalar a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos proceder aos exames necessários para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
3 - No caso referido no número anterior, o exame para a pesquisa de álcool no sangue só não deve ser realizado se houver recusa do doente ou se o médico que o assistir entender que de tal exame pode resultar prejuízo para a saúde.
4 - Não sendo possível o exame de pesquisa de álcool nos termos do número anterior deve o médico proceder aos exames que entender convenientes para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.”
Da leitura destes preceitos resulta que, tal como nas redacções do Código da Estrada introduzidas pelos Decretos-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, e n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, em caso de acidente, os condutores e quaisquer pessoas nele intervenientes, quando não pudessem ser submetidos ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado no local do sinistro, atento o seu estado de saúde, deveriam ser sujeitos aos exames necessários para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool pelo médico do estabelecimento hospitalar onde fossem conduzidos.
Contudo, enquanto estas últimas redacções, seguidamente, dispunham apenas que, “se o exame de pesquisa de álcool no sangue não pudesse ser feito, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool”, a redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, acrescentava que “o exame para pesquisa de álcool no sangue só não deve ser realizado se houver recusa do doente ou se o médico que o assistir entender que tal exame pode resultar prejuízo para a sua saúde”.
Se ambas as versões excluem a possibilidade do exame de pesquisa de álcool no sangue ser realizado coactivamente, a previsão legal da hipótese de recusa do doente, como fundamento para a não realização do exame de pesquisa de álcool no sangue, na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, suscita algumas interrogações sobre o seu alcance.
Será que, como parece sustentar a decisão recorrida, essa referência, no conflito entre o direito à integridade física do doente e a necessidade de sancionar as infracções à segurança das comunicações rodoviárias, teve o significado de admitir, no caso de exames de pesquisa de álcool no sangue, atentas as características invasivas da integridade física do acto de colheita de amostras, a possibilidade de recusa, excluindo essa conduta da incriminação geral prevista no artigo 158.º, n.º 3, do Código da Estrada-
Ou será que, simplesmente, se previu uma das hipóteses fácticas daquele tipo de exame não poder ser realizado, sem que essa previsão significasse qualquer valoração sobre a relevância criminal de tal conduta, mantendo-se a mesma no âmbito da tipificação geral efectuada pelo referido artigo 158.º, n.º 3-
Caso se adira à primeira leitura, a eliminação da referência às hipóteses de recusa efectuada pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, traduzir-se-ia numa inovação legislativa que o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, manteve.
Mas, se se perfilhar a segunda interpretação, a redacção do artigo 162.º, n.º 3, do Código da Estrada, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, ter-se-ia limitado a aperfeiçoar a técnica de explicitação do seu conteúdo sem o alterar. Onde antes se tipificavam duas situações que podiam impossibilitar a realização de exames de pesquisa de álcool no sangue (recusa do doente e razões médicas), dispensou-se essa previsão, passando-se apenas a prever a hipótese genérica de não ser possível a realização desse exame, o que englobava essas situações. Estaríamos perante uma simples alteração da técnica legislativa utilizada, sem inovação de conteúdo, que o artigo 156.º, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, se tinha limitado a copiar.
Se é verdade que a redacção do Código da Estrada resultante do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, pela referência expressa à hipótese de recusa à realização de exames de pesquisa de álcool no sangue, complementada pelo sancionamento como contra-ordenação da invocação de falsas razões médicas para essa recusa pelo artigo 7.º, do Decreto Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro, entretanto revogado pelo artigo 2.º da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, deu azo a estas dificuldades de interpretação (vide, reflectindo essas dificuldades, Pedro Soares de Albergaria, em “Condução em estado de embriagues. Aspectos processuais e substantivos do regime vigente”, pág. 60-61, sobretudo nota 25, em Sub iudice, n.º 17 (Ano 2000), onde acusa o legislador de “algum desnorte”), se atentarmos no teor da Lei que autorizou o Governo a legislar nesta matéria, verificamos que a opção por uma destas interpretações não é decisiva para a solução do problema de constitucionalidade orgânica em discussão neste recurso.
O artigo 3.º, alínea d), da Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, acima transcrito, apenas autorizou o Governo, a punir como desobediência a recusa do condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção de estados de influenciado pelo álcool.
Note-se que, anteriormente à alteração do Código da Estrada introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, a recusa à submissão a qualquer exame para detecção de possíveis intoxicações por parte de condutores e demais utentes da via pública, estes últimos apenas quando tivessem sido intervenientes num acidente de trânsito, era tipificada e punida como um crime específico.
Na verdade, apesar da versão originária do actual Código da Estrada (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio) não estabelecer quaisquer sanções – penais ou de outra natureza – para os indivíduos que recusassem a realização dos referidos exames, limitando-se, por força do artigo 159.º, a remeter o procedimento de fiscalização para legislação especial, vigorava ainda o disposto no Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, que fixava o regime jurídico aplicável à condução sob efeito de álcool, bem como o respectivo Decreto Regulamentar n.º 12/90, de 14 de Maio. Estes diplomas não haviam sido alvo de revogação pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio, uma vez que o seu artigo 7.º determinava a manutenção em vigor de todos os regimes jurídicos especiais até que entrassem em vigor as normas regulamentares necessárias à aplicação do novo Código da Estrada. Depois de prever o dever legal de sujeição a exames para efeitos de fiscalização da condução sob o efeito de álcool (artigos 6.º, 8.º e 9.º), o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril de 1990, determinava o seguinte:
“Artigo 12º
Recusa a exames
1 – Todo o condutor que, ou pessoa que contribua para acidente de viação, que se recusar a exame de pesquisa de álcool será punido com pena de prisão até um ano ou multa até 200 dias.”
E o artigo 8.º, do mesmo diploma, que regulava a realização de exames nos casos de acidente dispunha:
“Artigo 8.º
Exames em caso de acidente
1 - Os condutores e quaisquer pessoas que contribuam para acidentes de viação serão submetidos, sempre que o seu estado de saúde o permita, ao exame de pesquisa no ar expirado, observando-se, na parte aplicável, o disposto no artigo 6.º
2 - Caso não seja possível a realização do teste no local, deverá o médico da instituição hospitalar a que os intervenientes tiverem sido conduzidos providenciar no sentido da submissão dos mesmos aos exames que entender necessários para diagnosticar o seu estado de influenciados pelo álcool.”
O referido Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, foi precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto, que, nos termos da alínea a), do artigo 2.º, previa expressamente a possibilidade de o Governo criar tipos incriminadores relativamente à recusa de realização de exames para detecção de álcool no sangue. Tal regime vigorou até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, que, através do seu artigo 20.º, n.º 1, revogou expressamente o Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, optando por concentrar o regime jurídico primário da fiscalização da condução sob o efeito do álcool no próprio Código da Estrada (artigos 158º a 165º).
Assim, a Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, apenas autorizou o Governo a remeter a punição do comportamento de recusa do condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção de estados de influenciado pelo álcool, para o tipo legal genérico do crime de desobediência inscrito no Código Penal, em substituição da anterior solução de tipificação específica dessa conduta como crime, não tendo autorizado, em parte alguma, a despenalização de qualquer destas recusas, designadamente a recusa à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
A exigência de que a definição dos crimes e penas é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, constante do artigo 165.º, n.º 1, b), da C.R.P., não contempla apenas a criminalização de comportamentos, mas também a sua descriminalização, apenas sendo possível despenalizar uma determinada conduta até aí tipificada como crime, através da aprovação de lei parlamentar, ou lei governamental devidamente autorizada (vide, neste sentido, J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. II, pág. 328, da 4.ª ed., da Coimbra Editora) .
Encontrando-se tipificada como crime a recusa à realização de qualquer exame para detecção de estados de influenciado pelo álcool, no artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, o qual havia sido precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto, conclui-se que o legislador do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, não tinha autorização do parlamento para proceder à despenalização da conduta de recusa de interveniente em acidente de viação à realização de colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
Daí que, optando-se pela interpretação do disposto no artigo 162.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, no sentido de não ser criminalmente punida essa recusa, teríamos também que concluir que nos encontrávamos, mais uma vez, perante normação emitida sem autorização do órgão legislativo competente, pelo que, tal como se considerou, relativamente ao Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 22 de Maio, a mesma não era idónea para avaliar do conteúdo inovatório das normas do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, sendo necessário recuar um pouco mais no percurso legislativo para apurar a última vontade do legislador competente, nesta matéria.
Ora, como vimos, anteriormente à redacção do Código da Estrada, conferida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, a punição criminal dos actos de recusa à realização de exames dos intervenientes em acidente de viação estava prevista, como crime específico, no artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril de 1990, não se mostrando afastada essa previsão pela regras que previam a colheita de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool em estabelecimento hospitalar, quando não fosse possível realizar o exame através do método de ar expirado no local do acidente (artigo 8.º).
Estando essa tipificação autorizada pelo legislador parlamentar (artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto), encontraríamos, finalmente, aqui expressa a última vontade emitida por um legislador devidamente credenciado, anteriormente à emissão do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, caso se perfilhasse a interpretação de que a redacção do Código da Estrada introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, não punia criminalmente a recusa à colheita de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool por interveniente em acidente de viação. E essa vontade, quanto à admissibilidade da recusa à colheita de sangue, era coincidente com a solução contida nas normas sob análise, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, pelo que as mesmas não revelavam um cariz inovatório, relativamente à última pronúncia efectuada por legislador credenciado por autorização parlamentar. É certo que se regista uma alteração do tipo legal de crime onde se encontra previsto o sancionamento penal deste comportamento, mas essa alteração já advém da redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o qual dispunha da necessária autorização parlamentar para esse efeito.
Assim sendo, verifica-se que, independentemente da interpretação infra-constitucional que se prefira, relativamente à solução que resultou da redacção dos artigos 158.º, n.º 3, e 162.º, n.º 3, do Código da Estrada, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, a conclusão é precisamente a mesma – o conteúdo do disposto nos artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, não regista qualquer inovação relativamente à legislação anteriormente vigente, aprovada com a devida autorização do legislador parlamentar.
Deste modo, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, ao tipificar a recusa da pessoa interveniente em acidente a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, como crime de desobediência, apesar de não se encontrar credenciado para legislar sobre esta matéria pelo parlamento, limitou-se a manter a tipificação de tal comportamento, constante da legislação que o antecedeu, a qual dispunha da necessária autorização legislativa, pelo que tal norma não reveste um cariz inovador, não necessitando, por isso de estar coberta por nova autorização parlamentar.
Tendo-se concluído pela não inconstitucionalidade orgânica da norma objecto deste recurso, deve este ser julgado procedente, ordenando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com este juízo de não inconstitucionalidade.
Decisão
Pelo exposto, decide-se
a) Não conhecer do recurso na parte em que a decisão recorrida desaplicou o disposto no artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
b) Não julgar organicamente inconstitucionais, os artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º, 2 do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que não admitem a possibilidade da pessoa interveniente em acidente recusar-se a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, tipificando tal recusa como um crime de desobediência.
c) Conceder provimento ao recurso nesta parte e, em consequência, determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com este juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas
Lisboa, 9 de Dezembro de 2010.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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