|
Processo n.º 776/10
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, os ora reclamantes, A. e esposa, B., vieram interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão datado de 29 de Abril de 2010, que negou provimento ao recurso de revista pelos mesmos interposto.
Os reclamantes figuravam como réus na presente acção e, nessa qualidade, foram condenados a restituir ao autor o valor de rendas prediais, que receberam, desde a sua citação para acção de preferência, até ao trânsito da sentença respectiva. Foram ainda condenados a reconhecer a ineficácia, em relação ao autor, da doação que fizeram, relativamente ao prédio que era objecto do direito de preferência.
Inconformados, recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 22 de Outubro de 2009, julgou o recurso improcedente, mantendo a sentença recorrida.
Os reclamantes interpuseram, então, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que veio proferir o acórdão, que aqui figura como decisão recorrida, em 29 de Abril de 2010.
2. Após ter sido dada a possibilidade às partes de se pronunciarem sobre a admissibilidade do recurso, face à eventual falta da respectiva norma fundante, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão de não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por falta de suscitação prévia de qualquer questão de constitucionalidade ou legalidade, susceptível de constituir objecto idóneo do recurso em causa.
É desta decisão, proferida em 7 de Julho de 2010, que os recorrentes interpõem a presente reclamação.
3. Os reclamados B. e outros pronunciaram-se, concordando, quanto ao que à inadmissibilidade do recurso interposto diz respeito, com a decisão reclamada.
O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, igualmente defendeu o indeferimento da reclamação, referindo que nenhuma questão de constitucionalidade foi suscitada, de forma inequívoca e expressa, perante o tribunal a quo, não sendo suficiente qualquer suscitação implícita – como pretendem os reclamantes – que, de resto, se encontra ausente, concluindo que os reclamantes não levantaram, de forma minimamente inteligível, qualquer questão de constitucionalidade.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
4. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos, pois, se tais requisitos se encontram preenchidos in casu ou se, pelo contrário, procedem os argumentos utilizados na decisão reclamada e sustentados pelos reclamados.
Comecemos pela natureza do objecto de recurso de constitucionalidade.
Os reclamantes centram o objecto do recurso na “inconstitucionalidade da concreta aplicação de dispositivos legais, mormente os art.ºs 277.º, n.ºs 2 e 3, 1260.º, n.ºs 1 e 2, 1270.º, n.º 1, todos do Cód. Civil e ainda o art.º 481.º, alínea a) do CPC.”
Apoiam o recurso, nos seguintes fundamentos:
“Enquanto cidadão português, goza dos direitos – e está sujeito aos deveres – consagrados na CRP, como prevê o n.º 1 do artigo 12.º da CRP (princípio da Universalidade – remisso ao artigo 26.º da Lei Fundamental).
(…) E enquanto cidadão, goza também, dos mesmos direitos, acolhidos na Constituição, mas proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigos 1.º e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
(…) Decorre do preceituado legal acima citado que é Direito Fundamental Constitucional do Recorrente o direito de recurso às últimas instâncias judiciais; jamais sendo legais Decisões Judiciais, que apliquem normas em sentido inconstitucional.
(…) Pelo que, subsiste manifesta ofensa dos princípios e normas constitucionais (…) quando se aplicam tais normas violando os mais elementares princípios constitucionais, como a violação do direito de propriedade, constitucionalmente consagrado no art.º 62.º da CRP.
(…) Face ao reportado, salvo melhor opinião, a Decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça violou a norma consagrada no art.º 62.º da CRP – direito de propriedade -, tendo sido realizada interpretação dos normativos acima identificados.
(…) a questão da inconstitucionalidade foi suscitada nas conclusões das alegações de recurso, quer para o Supremo Tribunal de Justiça, quer para o Tribunal da Relação do Porto, revelando-se inconstitucional a aplicação nos termos em que foi feita dos art.ºs 277.º, n.ºs 2 e 3, 1260.º, n.ºs 1 e 2, 1270.º, n.º 1, todos do Cód. Civil e ainda o art.º 481.º, alínea a) do CPC;
(…) discorda-se, nos termos já expostos, pela errónea apreciação e aplicação das referidas normas, consubstanciando violação do direito de propriedade estatuído no art.º 62.º da CRP.”
Da delimitação do objecto de recurso feita pelos reclamantes, bem como da fundamentação aduzida, resulta que os mesmos pretendem a sindicância da própria decisão jurisdicional, enquanto acto de autónoma valoração da singularidade do caso concreto e juízo subsuntivo do julgador.
Na verdade, os reclamantes assacam à própria decisão jurisdicional a desconformidade com a Lei Fundamental, referindo-se, recorrentemente, à aplicação dos preceitos de direito infraconstitucional – que identificam como pretenso alvo de sindicância – como o cerne da violação do seu direito de propriedade, protegido pelo artigo 62.º da CRP.
Os excertos transcritos são demonstrativos do aparente equívoco, em que os reclamantes incorrem, de considerar a competência deste Tribunal extensiva à sindicância das decisões jurisdicionais, quando a mesma se encontra restringida à apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas.
A propósito da inadmissibilidade de um tal objecto de recurso, são transponíveis para o presente caso, mutatis mutandis, as considerações aduzidas no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt), que se transcrevem:
“ (…) cumpre acentuar que, sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)
Face às considerações expendidas, conclui-se pela não admissibilidade do recurso, por falta de verificação do primeiro pressuposto supra enunciado: a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação.
5. Resta apenas dizer que, encontrando-se ausente, do requerimento de interposição de recurso, a colocação de uma verdadeira questão de constitucionalidade com dimensão normativa, igualmente não se vislumbra qualquer suscitação prévia, perante o tribunal a quo, de uma questão com tal natureza, mostrando-se não verificado tal pressuposto de admissibilidade, tal como refere a decisão reclamada.
Na verdade, percorrido o teor da motivação, incluindo as respectivas conclusões, do recurso de revista – peça processual, onde os reclamantes poderiam suscitar, de forma útil e tempestiva, qualquer questão de constitucionalidade, que pretendessem ver ulteriormente apreciada, pelo Tribunal Constitucional – não se vislumbra qualquer problematização de constitucionalidade normativa.
De facto, os reclamantes limitam-se a apresentar os motivos da sua discordância, quanto à solução dada ao caso concreto, criticando os juízos subsuntivos realizados pelo julgador, sem nunca autonomizarem qualquer questão relativa aos específicos critérios normativos utilizados, na sua componente de regras abstractas, vocacionadas para uma aplicação potencialmente genérica.
Face às considerações expendidas, conclui-se que, não tendo os reclamantes suscitado qualquer questão de constitucionalidade normativa, durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, deixaram precludir, definitivamente, a possibilidade de virem interpor recurso útil de constitucionalidade, ulteriormente.
Assim, ainda que os reclamantes tivessem apresentado uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, no seu requerimento de interposição de recurso – o que não fizeram, como já deixámos exposto – não poderia o recurso ser admitido, por falta de suscitação prévia perante o tribunal a quo.
Nestes termos, conclui-se pela inadmissibilidade do recurso e consequente improcedência da presente reclamação.
III – Decisão
6. Pelo exposto, decide-se:
- julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto, por inidoneidade do respectivo objecto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de Dezembro de 2010.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
|