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Processo n.º 668/06
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Um grupo de vinte e cinco Deputados do Partido Socialista à Assembleia da
República requereu, ao abrigo da alínea f) do n.º 2 do artigo 281.º da
Constituição, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da
ilegalidade e da inconstitucionalidade de todas as normas contidas nos seguintes
diplomas:
a) Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M, de 1 de Julho (que transforma a
Administração dos Portos da Região Autónoma da Madeira na sociedade APRAM ?
Administração dos Portos da Região Autónoma da Madeira, S.A., e aprova os
respectivos estatutos), na redacção que lhe é dada pelo Decreto Legislativo
Regional n.º 25/2003/M, de 23 de Agosto;
b) Decreto Legislativo Regional n.º 18/2000/M, de 2 de Agosto, que cria a Ponta
do Oeste ? Sociedade de Promoção e Desenvolvimento da Zona Oeste da Madeira, S.
A. (doravante, sociedade Ponta do Oeste);
c) Resolução do Governo da Região Autónoma da Madeira n.º 190/2004, de 12 de
Fevereiro (publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, Série I, N.º
20, suplemento, de 19 de Fevereiro de 2004), que determina a afectação à
sociedade Ponta do Oeste das áreas do domínio público regional afectas à APRAM;
d) Resolução do Governo da Região Autónoma da Madeira n.º 778/2005, de 9 de
Junho (publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, N.º 69, Série
I, de 20 de Junho de 2005), que autoriza a desafectação dominial e a integração
no património da sociedade Ponta do Oeste de uma parcela de terreno com a área
de 46.500 m2, a confinar a Norte com a estrada, a Sul com o mar, a Leste com a
estrada e outros e a Oeste com a falésia.
2. O requerente fundamentou o pedido nos seguintes termos:
- A marina e espaços adjacentes da orla costeira localizados no Lugar de Baixo,
freguesia e concelho da Ponta do Sol, Madeira, vulgarmente designados por ?Marina
do Lugar de Baixo?, constituem um empreendimento de lazer, cuja concepção,
promoção, construção e gestão foram atribuídos à sociedade Ponta do Oeste. Trata-se
de uma parcela de terreno com a área de 46.500 m2, que confina a Norte com a
estrada, a Sul com o mar, a Leste com a estrada e outros e a Oeste com a falésia.
- O Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M transformou a APRAM (até aí, um
instituto público dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimonial)
numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos e desafectou do
domínio público da Região Autónoma da Madeira (doravante, RAM) os equipamentos e
edifícios afectos àquele instituto público, integrando-os no património da
sociedade que lhe sucedeu (artigo 2.º, n.º 4).
- O Decreto Legislativo Regional n.º 18/2000/M criou a sociedade Ponta do Oeste
(sociedade anónima de capital exclusivamente público, mas que pode vir a
integrar capitais privados, nos termos previstos no artigo 2.º, n.º 4) e atribui-lhe
o direito de utilizar e administrar os bens do domínio público ou privado da
Região Autónoma da Madeira que se situem na sua zona de intervenção (Ribeira
Brava, Ponta do Sol e Calheta).
- O Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M alterou o Decreto Legislativo
Regional n.º 19/99/M, passando este diploma a atribuir competência ao Governo
Regional para (i) delimitar, por resolução, as áreas do domínio público da RAM
afecto à APRAM sobre as quais a sociedade Ponta do Oeste exerce o direito de
utilização e administração dominial e (ii) autorizar as operações de
desafectação dominial e de integração dos bens desafectados no património da
sociedade Ponta do Oeste necessárias ao cumprimento dos programas de
desenvolvimento aprovados (artigo 2.º, n.º 7).
- Ao abrigo dessa norma, a Resolução do Governo Regional n.º 190/2004 transferiu
para a sociedade Ponta do Oeste o direito de utilização e administração de áreas
do domínio público regional, incluindo a Marina do Lugar de Baixo.
- A Resolução do Governo Regional n.º 778/2005 (também ao abrigo do artigo 2.º,
n.º 7, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M, na redacção dada pelo
Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M) concretizou a desafectação dominial
e a integração no património da sociedade Ponta do Oeste da parcela de terreno
onde está instalada a Marina do Lugar de Baixo e as instalações anexas.
- A Marina do Lugar de Baixo pertence ao domínio público marítimo do Estado.
Desde logo, o Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro (com as alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 53/74, de 15 de Fevereiro, pelo Decreto-Lei n.º
89/87, de 26 de Fevereiro, e pela Lei n.º 16/2003, de 4 de Junho), que define o
regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico do continente e ilhas
adjacentes, considera pertencerem ao domínio público do Estado os leitos e
margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis (artigo 5.º).
Além disso, o Decreto-Lei n.º 52/85, de 1 de Março, que regula os direitos de
soberania do Estado português sobre o mar territorial, consagra bens dominiais
naturais que pertencem ao domínio público marítimo do Estado, neles incluindo os
leitos das águas territoriais da RAM.
- Esses bens pertencem ao domínio público necessário do Estado e não é
constitucionalmente possível integrá-los no domínio público da RAM (cf. Eduardo
Paz Ferreira, ?Domínio público e privado da Região?, in A Autonomia como
fenómeno cultural e político, Angra do Heroísmo, 1987, p.75, Gomes Canotilho e
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 1993,
pág. 413, bem como o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 330/99). E o domínio
público marítimo pertence ao conjunto de bens que interessam à defesa nacional (Cf.
o Parecer da Comissão Constitucional n.º 26/80, os Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.º 280/90 e n.º 330/99, e os Pareceres do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República n.º 10/82, n.º 92/88 e n.º 16/91), estando
excluído do domínio público regional (artigo 144.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo
da Região Autónoma da Madeira ? doravante EPARAM).
- O Decreto-Lei n.º 468/71 admite o uso privativo de parcelas do domínio público,
mediante atribuição de licença ou concessão (artigos 17.º e 18.º), incluindo as
regiões autónomas entre as entidades competentes para esse efeito (artigo 36.º).
Todavia, esse diploma não atribui competência às regiões autónomas para a
desafectação de bens do domínio público marítimo do Estado.
- Em face do exposto, conclui-se que a área onde se encontra a Marina do Lugar
de Baixo faz parte do domínio público marítimo do Estado e, como tal, não podia
ser alvo de desafectação dominial e consequente integração no património da
sociedade Ponta do Oeste. Essa situação consubstancia uma violação da reserva
legislativa da Assembleia da República constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea
v), da Constituição ? porquanto se trata de matéria relativa ao regime dos bens
do domínio público ? e, consequentemente, uma violação do limite negativo do
poder legislativo regional consagrado no artigo 112.º, n.º 4, e no artigo 227.º,
n.º 1, alínea b), da Constituição.
- Da conjugação do artigo 165.º, n.º 1, alínea v), com o artigo 84.º, n.º 2,
ambos da Constituição, resulta que é a lei parlamentar que estabelece o regime e
condições de utilização dos bens que constituem o domínio público do Estado e de
outras entidades públicas susceptíveis de serem titulares de bens dominiais
públicos, como é o caso das regiões autónomas.
- Os actos normativos objecto do pedido também são ilegais, uma vez que
extravasam o conceito de interesse específico resultante da alínea mm) do artigo
40.º do EPARAM, a partir do qual o artigo 46.º do EPARAM define o âmbito
material da competência legislativa da RAM. Com efeito, o artigo 40.º, alínea mm),
do EPARAM estabelece que a ?orla marítima? constitui matéria de interesse
específico da RAM, mas não parece possível que, ao abrigo dessa norma, se possa
desafectar uma parcela dos bens do domínio marítimo do Estado, pois tal excede,
em muito, a finalidade da norma.
Conclui o requerente que as normas constantes do Decreto Legislativo Regional n.º
19/99/M (na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M) e do
Decreto Legislativo Regional n.º 18/2000/M, e das Resoluções do Governo da RAM n.º
190/2004 e n.º 778/2005 padecem de inconstitucionalidade, por violação do
disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea v), 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1,
alínea b), todos da Constituição, e padecem de ilegalidade, por violação do
disposto nos artigos 40.º, alínea mm), e 46.º do EPARAM.
3. Uma vez que o objecto do processo integra dois decretos legislativos
regionais da Assembleia Legislativa da Madeira e duas resoluções do Governo
Regional da Madeira, foram estes dois órgãos notificados para se pronunciarem,
querendo, sobre o pedido, nos termos do artigo 54.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (Lei de Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
- LTC). A argumentação aduzida nas duas respostas é coincidente, vindo a
resposta do Governo Regional acompanhada de um parecer jurídico, elaborado por
dois professores universitários.
Na sua resposta, os órgãos autores das normas referiram, em suma, o seguinte:
- O pedido confunde domínio público portuário com domínio público marítimo,
ignorando a correspondente diferença entre domínio público regional e domínio
público estadual, e confunde a competência legislativa para definir o regime
jurídico da matéria do domínio público com a competência normativa relativa à
gestão e administração dos bens dominiais.
- O artigo 84.º da Constituição garante a existência de um domínio público
estadual, regional e local, acolhendo um princípio de descentralização. Da
articulação do artigo 165.º, n.º 1, alínea v), com o artigo 84.º, n.º 2, ambos
da Constituição, resulta que estão reservadas à Assembleia da República a
identificação dos bens do domínio público e a delineação do respectivo regime
jurídico.
- Não existe no ordenamento jurídico português uma lei parlamentar que
estabeleça um regime geral dos bens do domínio público, mas existe uma série de
diplomas avulsos de onde se retiram os traços fundamentais do estatuto da
dominialidade ? a ?extracomercialidade privada? e a ?comercialidade de direito
público? [cf., por exemplo, o artigo 202.º, n.º 2, do Código Civil, o artigo 178.º,
n.º 2, alíneas d) e e), do Código de Procedimento Administrativo e o artigo 6.º
do Código das Expropriações]. O regime jurídico dos bens dominiais tem sido
fundamentalmente extraído dessas normas e de princípios gerais, mediante
construções doutrinais e jurisprudenciais.
- O Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M (na redacção dada pelo Decreto
Legislativo Regional n.º 25/2003/M) e Decreto Legislativo Regional n.º 18/2000/M
não visam definir o regime jurídico do domínio público, mas tão só o exercício
dos poderes de gestão de determinados bens, incluídos no domínio público
regional. Trata-se de uma actuação paralela à do Governo nacional, ao atribuir,
através de decretos-lei emitidos ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da
Constituição, a gestão dos portos situados no continente a empresas de capitais
públicos [Decretos-Lei n.ºs 335/98, 336/98, 337/98, 338/98 e 339/98 (este último
alterado pelo Decreto-Lei n.º 40/2002, de 28 de Fevereiro), todos de 3 de
Novembro].
- O exercício dos poderes de gestão incluídos no conjunto de faculdades
inerentes ao estatuto da dominialidade não faz parte da reserva parlamentar,
resultando antes da atribuição legal da titularidade dominial ao ente
administrativo (proprietário público ou titular de poderes de domínio). O que
importa, pois, é determinar se os bens do domínio público abrangidos pela
legislação regional questionada integram o domínio público regional ou o domínio
público estadual.
- A titularidade e a delimitação do domínio público regional face ao estadual
são reguladas, fundamentalmente, pelos estatutos político?administrativos das
regiões autónomas, aprovados pela Assembleia da República. Do EPARAM decorre a
regra da titularidade regional dos bens dominiais situados no território da RAM
(artigo 144.º, n.º 1), sendo esta indissociável da garantia de autonomia
político-administrativa do arquipélago da Madeira. Qualquer excepção a essa
regra implica uma justificação que apenas pode ser fundamentada no facto de
estarem em causa bens afectos à defesa nacional ou a serviços públicos não
regionalizados (artigo 144.º, n.º 2).
- A jurisprudência constitucional tem identificado como bens afectos à defesa
nacional os integrados no domínio público marítimo e no domínio público aéreo (cf.
os Acórdãos n.º 280/90, n.º 330/99 e n.º 131/2003), mas os Decretos Legislativos
Regionais objecto do pedido reportam-se à administração ou gestão do domínio
público portuário, que está excluído daquelas categorias.
- A distinção entre o domínio público marítimo e o domínio público portuário
ancora-se na destrinça entre domínio público natural (praias, fozes e portos
naturais) e domínio público artificial (portos artificiais, terminais, cais e
marinas). Esta distinção é reconhecida pelo Tribunal Constitucional (cf. os
Acórdãos n.º 886/96, n.º 330/99 e n.º 131/2003) e é confirmada pelo artigo 4.º
do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de Outubro, que autonomiza as águas marítimas e
terrenos conexos [alínea a)] dos portos artificiais e docas [alínea e)]. São
realidades distintas, justificando um regime jurídico igualmente distinto.
- Os portos artificiais (não militares) situados no arquipélago da Madeira
pertencem à RAM (artigo 144.º, n.º 1, do EPARAM) e esta detém sobre eles todos
os poderes inerentes ao direito de propriedade pública, incluindo os poderes de
gestão (inter alia, os poderes de auto-tutela administrativa e os relativos à
decisão sobre a concessão de exploração ou de uso privativo de parcelas
territoriais delimitadas) e os poderes de desafectação e alteração do estatuto
da dominialidade. Esses portos regionais incluem as respectivas águas marítimas
interiores, na medida em que entre eles existe uma relação de conexão funcional
? esta unidade de gestão porto/águas apenas cessa para satisfação de
necessidades de defesa nacional ?, detendo a RAM sobre estas águas apenas
poderes de gestão.
- O regime definido nos Decretos Legislativos Regionais objecto do pedido
corresponde, pois, ao simples exercício de faculdades incluídas na titularidade
dominial da RAM sobre os bens do domínio público infra?estrutural portuário
regional.
- No que toca à questão da ilegalidade dos Decretos Legislativos Regionais
suscitada no pedido, contesta-se que a Assembleia Legislativa tenha excedido os
seus poderes, uma vez que as questões relativas a infra-estruturas marítimas e à
administração dos portos constituem, como resulta das alíneas d), e) e mm) do
artigo 40.º do EPARAM, matérias de interesse específico, para efeitos de
definição dos poderes legislativos da Região. Não se percebe como possa ter sido
violado o artigo 46.º do EPARAM, tendo em conta que este preceito respeita
apenas ao funcionamento interno da Assembleia Legislativa.
- Finalmente, é questionável que as Resoluções do Governo Regional n.º 190/2004
e n.º 778/2005 preencham o conceito funcional de norma elaborado pela
jurisprudência constitucional e pela doutrina para efeitos de determinação do
objecto de controlo nos processos de fiscalização da constitucionalidade, uma
vez que se limitam a proceder à afectação de determinados bens à produção de uma
concreta utilidade pública dominial, constituindo meros actos administrativos
com eficácia real.
- Mesmo que tais Resoluções possuam carácter normativo, não podem ser objecto de
juízo autónomo de inconstitucionalidade ou ilegalidade, uma vez que constituem
meros actos executivos dos Decretos Legislativos Regionais visados pelo pedido.
4. Discutido o memorando, apresentado pelo Presidente do Tribunal ao abrigo do
artigo 63.º da LTC, cumpre formular a decisão em conformidade com a orientação
fixada.
II ? Fundamentação
5. Questões prévias
5.1. A sindicabilidade das normas contidas nas Resoluções n.º 190/2004 e n.º 778/2005,
do Governo Regional da Madeira
O pedido incide sobre o conteúdo de dois decretos legislativos regionais e de
duas resoluções do Governo Regional, podendo questionar-se se estas últimas
constituem actos normativos, para efeitos de controlo da constitucionalidade e
legalidade.
Constitui jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional que
esse objecto de controlo integra apenas as normas, mas todas as normas, de
acordo com um conceito de norma funcionalmente adequado ao sistema de
fiscalização da constitucionalidade previsto na Lei Fundamental. Neste contexto,
o Tribunal tem entendido serem sindicáveis não apenas os preceitos de natureza
geral e abstracta, mas também todo e qualquer acto do poder público que contenha
uma regra de conduta para os particulares ou para a Administração, um critério
de decisão para esta última ou para o juiz ou, em geral, um padrão de valoração
de comportamento (cf., designadamente, o Acórdão n.º 667/99, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 45.º Vol., pág. 731 e segs., e a jurisprudência aí
citada). Pelo contrário, não se incluem nesse conceito funcional de norma os
actos políticos ou de Governo, os actos jurisdicionais e os actos
administrativos (não incorporados em diplomas legais).
Nem a Constituição nem os estatutos político-administrativos das regiões
autónomas se referem às resoluções dos governos regionais, prevendo apenas esses
estatutos que os actos do governo regional devem ser publicados no jornal
oficial da região (artigo 70.º, n.º 2, do EPARAM, e artigo 61.º, n.º 3, do
EPARAA). Apesar de não existirem elementos seguros para proceder à
caracterização da natureza jurídica das resoluções, é certo que elas não são
actos legislativos (artigo 112.º, n.º 1, da Constituição). Mas podem produzir
efeitos normativos, pelo que têm de ser consideradas, nessa medida e quando
assim for, sujeitas ao controlo jurisdicional de constitucionalidade (cf., no
mesmo sentido, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pág. 984, J. J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 7.ª edição, Almedina, 2003, pág. 859 e
860, Jorge Miranda, ?Resolução?, in Dicionário Jurídico da Administração Pública,
Vol. VII, 1996, págs. 252 a 255, e Vitalino Canas, Introdução às decisões de
provimento do Tribunal Constitucional, Cognitio, 1984, pág. 62).
Nesse contexto se compreende que o Tribunal Constitucional tenha já sindicado
diversas resoluções dos governos regionais, tanto dos Açores (Acórdãos n.ºs 63/88,
95/88, 249/88 e 296/88, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º
Vol., pág. 645 e segs., pág. 757 e segs., 12.º Vol., pág. 699 e segs. e pág. 769
e segs., respectivamente) como da Madeira (Acórdãos n.ºs 42/85, 170/90 e 483/2003
publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º Vol., pág. 181 e segs. 16.º
Vol., pág. 87 e segs. e 57.º Vol., pág. 617 e segs.).
O que importa, portanto, é determinar se as Resoluções n.º 190/2004 e n.º 778/2005,
do Governo Regional da Madeira, têm ou não conteúdo normativo.
Ora, as Resoluções em referência foram aprovadas pelo Governo Regional ao abrigo
do artigo 2.º, n.º 7, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M (cf. o último
parágrafo do preâmbulo das Resoluções) e o seu conteúdo circunscreve-se a:
a) afectar à sociedade Ponta do Oeste as áreas do domínio público afectas à
APRAM (ponto 1.º da Resolução n.º 190/2004);
b) autorizar a sociedade Ponta do Oeste a atribuir a terceiros licenças e
concessões (ponto 2.º da Resolução n.º 190/2004);
c) reconhecer a utilidade pública dos empreendimentos a levar a cabo pela
sociedade Ponta do Oeste na Marina do Lugar de Baixo e no Porto de Recreio da
Calheta (ponto 3.º da Resolução n.º 190/2004);
d) autorizar a sociedade Ponta do Oeste a promover, gerir e executar projectos e
obras relativos aos ditos empreendimentos (ponto 4.º da Resolução n.º 190/2004);
e) autorizar a desafectação dominial e integração no património da sociedade
Ponta do Oeste da parcela de terreno correspondente à Marina do Lugar de Baixo (ponto
1.º da Resolução n.º 778/2005);
f) reconhecer a utilidade pública do empreendimento a levar a cabo pela
sociedade Ponta do Oeste nessa parcela (ponto 2.º da Resolução n.º 778/2005).
Essas Resoluções consubstanciam uma decisão do Governo Regional, concretizadora
de uma imposição (delimitar as áreas do domínio público da RAM sobre as quais a
sociedade Ponta do Oeste exerce o direito de utilização e administração dominial)
e de uma faculdade (autorizar operações de desafectação dominial e integração no
património dessa sociedade) previstas no artigo 2.º, n.º 7, do Decreto
Legislativo Regional n.º 19/99/M. Contêm ?decisões ou operações de vontade?, no
âmbito das quais o Governo Regional ?aproveita faculdades legais, usa os seus
poderes, cumpre os seus deveres, escolhendo (?) as oportunidades de intervenção
e determinando-se nela por motivos de conveniência? ? características típicas da
função administrativa, segundo Jorge Miranda (Teoria do Estado e da Constituição,
Coimbra Editora, 2002, pág. 366). Trata-se de actos do Governo Regional, que, ?em
execução directa (?) de normas, se destinam a produzir efeitos jurídicos no
âmbito de relações com um objecto especificado entre a Administração e
particulares individualizados? ou a definir a situação jurídica de uma coisa ?
actos tipicamente administrativos, segundo J. M. Sérvulo Correia (Noções de
Direito Administrativo, Vol. I, Danúbio, 1982, pág. 267).
Aliás, a afectação e a desafectação de bens do domínio público são correntemente
qualificados como actos administrativos (sobre o acto administrativo de
afectação, cf. Ana Raquel Moniz, O Domínio Público, Almedina, 2005, págs. 137 a
140, bem como os autores aí citados; sobre o acto administrativo de desafectação,
cf. José Manuel Sérvulo Correia, ?Defesa do domínio público?, in Francisco
Salgado Zenha: Liber Amicorum, Coimbra Editora, 2003, pág. 447).
Em face do exposto, há que concluir que as Resoluções em questão são desprovidas
de carácter normativo, assumindo a natureza de actos administrativos (cf. artigo
120.º do Código de Procedimento Administrativo), pelo que o Tribunal
Constitucional não pode conhecer do pedido na parte que lhes respeita.
5.2 Delimitação das normas contidas no Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M
(na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M) e no Decreto
Legislativo Regional n.º 18/2000/M concretamente questionadas
O requerente solicita a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade e ilegalidade de todas as normas do Decreto Legislativo
Regional n.º 19/99/M, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M,
e pelo Decreto Legislativo Regional n.º 18/2000/M. Contudo, a argumentação
desenvolvida no pedido apenas se refere ao problema da constitucionalidade das
normas ?através? das quais se ?procedeu à desafectação da área onde se encontra
a Marina do Lugar de Baixo e instalações adjacentes, passando a integrar o
património da sociedade Ponta do Oeste, S.A.?. A questão da ilegalidade coloca-se
em termos idênticos, visto que o requerente se limita a afirmar que ?não parece
possível que, ao abrigo dessa norma [alínea mm) do artigo 40.º do EPARAM], se
possa desafectar uma parcela dos bens do domínio marítimo do Estado?.
Essa ideia é confirmada pelo requerente, nas conclusões do pedido, ao afirmar
que a área da Marina do Lugar de Baixo ?faz parte do domínio público marítimo do
Estado e, como tal, não poderia ser alvo de desafectação dominial e consequente
integração no património da sociedade Ponta do Oeste, S.A.?.
Tendo em conta os termos em que o requerente definiu e especificou o sentido e
dimensão das normas relativamente às quais suscita dúvidas de
constitucionalidade e legalidade, uma interpretação razoável do pedido faz com
que se delimite o seu objecto às normas concretamente questionadas, isto é,
àquelas em relação às quais são apresentados os fundamentos que justificam, no
entendimento do requerente, a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade
(cf. no mesmo sentido, o Acórdão n.º 258/2006, Diário da República, Série I-A,
de 19 de Maio de 2006).
Assim sendo, considera-se submetida à apreciação do Tribunal a
constitucionalidade e a legalidade das normas que o requerente entende
permitirem a desafectação dominial da área da Marina do Lugar de Baixo e a sua
consequente integração no património da sociedade Ponta do Oeste (uma sociedade
anónima de capitais públicos).
Ora, esse efeito ou resultado decorre de uma única norma, identificada,
transcrita e sublinhada pelo requerente no ponto 11.º do pedido. Trata-se da
norma contida no artigo 2.º, n.º 7, in fine, do Decreto Legislativo Regional n.º
19/99/M, aditada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M, que dispõe o
seguinte:
?O Governo Regional delimitará, por resolução, as áreas do domínio público da
RAM afecto à APRAM, S. A., sobre as quais a Ponta do Oeste ? Sociedade de
Promoção e Desenvolvimento da Ponta do Oeste, S.A., exercerá, como sociedade de
capitais exclusivamente públicos, o direito de utilização e administração
dominial consignado no artigo 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2000/M,
de 2 de Agosto, podendo autorizar igualmente as operações de desafectação
dominial e de integração no património dessa sociedade necessárias ao
cumprimento dos programas de desenvolvimento aprovados.
Importa, ainda, precisar dois aspectos.
Apesar do enunciado legal, não parece que possam subsistir dúvidas de que o que
nele se disciplina é o poder de o Governo Regional desafectar determinados bens
do domínio público para integração no património da Ponta do Oeste e não o de
autorizar qualquer outro ente, nomeadamente esta sociedade ou a APRAM, a
proceder a essa desafectação.
Além disso, de acordo com a fundamentação do pedido, não é todo o conteúdo
normativo deste inciso legal, a totalidade dos poderes por essa via conferidos
ao Governo Regional, que está em exame. O que se discute é a atribuição de tais
poderes de desafectação dominial na medida em que tenham por objecto os terrenos
sob jurisdição da APRAM delimitados pelos artigos 8.º, 9.º e 13.º do Anexo II ao
Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M e aí referidos como ?faixa do domínio
público marítimo?. Não está em apreciação o restante conteúdo normativo do
preceito legislativo regional, designadamente o que possa respeitar à
desafectação de quaisquer outros bens dominiais ? v. gr. os edifícios e
equipamentos neles integrados ou implantados como bens do domínio público
portuário ? que se situem na zona de intervenção da mencionada sociedade de
capitais públicos.
É essa a norma, assim interpretada e delimitada, cuja constitucionalidade e
legalidade se apreciará de seguida.
6. A questão de constitucionalidade suscitada
Como vimos, o Requerente coloca a questão da inconstitucionalidade da norma
contida no artigo 2.º, n.º 7, in fine, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M
(na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M), por violação
da reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º,
n.º 1, alínea v), da Constituição) e dos limites da competência legislativa das
regiões autónomas (artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Constituição).
É esta a questão que cumpre apreciar.
6.1. Poderes legislativos das regiões autónomas a respeito dos bens do domínio
público nelas situados
A definição dos poderes das regiões autónomas e a sua articulação com os poderes
do Estado em matéria de domínio público exige uma articulação conjugada e
relativamente complexa de diversas disposições constitucionais.
O artigo 165.º, n.º 1, alínea v), da Constituição, estabelece que compete à
Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar em matéria de ?definição
e regime dos bens do domínio público? e o artigo 227.º, n.º 1, alínea b), também
da Constituição, exclui a possibilidade de autorização legislativa às regiões
autónomas em tal matéria.
Estes preceitos deverão, porém, conjugar-se com o artigo 84.º, n.º 2, que
reconhece a existência de um 'domínio público regional' e, ainda, com o artigo
227.º, n.º 1, alínea a), da Lei Fundamental, que reconhece às regiões o poder de
?legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto
político-administrativo', sendo certo que, para o que agora importa, o artigo 40.º,
do Estatuto Político?Administrativo da Região Autónoma da Madeira, estabelece
que a ?administração dos portos? (alínea e)) e a ?orla marítima? (alínea mm))
constituem matéria de interesse específico da RAM.
O artigo 165.º n.º 1, alínea v), da Constituição, parece exigir que seja a
Assembleia da República, ou o Governo devidamente autorizado, a definir o tipo
de bens que integram o domínio público e as regras sobre a sua titularidade e
utilização. Mas isto não significa necessariamente que esteja excluída qualquer
intervenção reguladora das regiões autónomas na definição do regime dos bens do
domínio público, dado o natural interesse que a Região Autónoma tem na ?administração
dos portos? nela situados bem como na utilização da sua ?orla marítima? e tendo,
além disso em conta, as especificidades que, a esse respeito, se podem verificar
no ?âmbito regional?.
Não está, pois, excluído que as regiões autónomas possam legislar em matéria de
utilização do seu próprio domínio público ? isto é, do domínio público regional
? ou, até, dentro de certos limites, em matéria de utilização dos bens do
domínio público estadual nela situados.
O problema dos poderes legislativos das regiões autónomas em matéria de
utilização dos bens do domínio público foi recentemente discutido no Acórdão n.º
402/08. Nesse aresto o Tribunal colocou a questão nos termos que se seguem:
?Desta norma ? isto é, da alínea v) do n.º 1 do art. 165.º da Constituição da
República Portuguesa resulta que a ?definição e regime dos bens do domínio
público? é matéria contida na reserva relativa da Assembleia da República, pelo
que só poderá constar de lei formal ou de decreto-lei autorizado.
Por outro lado, o preceito que fixa o estatuto constitucional da dominialidade
pública ? o artigo 84.º da CRP ? comete à lei tarefas complementares de normação,
no domínio da definição dos bens integrantes e da fixação do regime, condições
de utilização e limites (alínea f) do n.º 1 e n.º 2).
A questão central que o confronto entre as duas disposições suscita é a de saber
se todas estas dimensões normativas enunciadas no artigo 84.º estão
compreendidas na esfera da reserva relativa de competência da Assembleia da
República, ou, por outras palavras, se a reserva fixada na alínea v) do n.º 1 do
artigo 165.º da CRP é total, abarcando a regulação primária de qualquer aspecto
do regime de bens públicos.?
A esta questão relativa à articulação entre o artigo 165.º, n.º 1, alínea v) e o
artigo 84.º, da Constituição da República Portuguesa, viria o Tribunal a
responder da forma seguinte:
'Ao inserir, na revisão de 1989, o artigo 84.º, com as remissões para a lei dele
constantes, o legislador constitucional não se limitou a reproduzir a fórmula
hoje expressa no artigo 165.º, n.º 1, alínea v), e então consagrada, nos mesmos
termos, no artigo 168.º, n.º 1, alínea z). Foi mais longe, pois, para além da ?definição?
e do?regime?, referiu as ?condições de utilização? e os ?limites? como objecto
de intervenção legal. Pondo de lado a hipótese de estas duas últimas referências
constituírem uma desnecessária reiteração pleonástica, improdutiva de sentido,
por já estarem contidas no conceito de ?regime?, que a mesma norma utiliza, há
que atribuir à previsão maior latitude do que a que cabe à da alínea v) do n.º 1
do artigo 165.º
[?] numa concepção moderna de gestão de bens públicos susceptíveis de
aproveitamento económico produtivo, faz todo o sentido separar os aspectos
básicos e centrais do estatuto da dominialidade, definidores do seu objecto (categorias
de bens), das regras de aquisição e cessação desse estatuto e dos parâmetros
nucleares da sua exploração (nomeadamente, as constrições impostas pelos
interesses públicos coenvolvidos) ? aquilo ?que a dominialidade tem de essencial?,
como se diz no voto de vencida da conselheira MARIA DOS PRAZERES BELEZA, aposto
no Acórdão n.º 330/99 ? de todos os outros aspectos mais ?regulamentares?,
quanto a formas concretas de utilização, mormente quanto ao regime dos actos de
licenciamento e dos contratos de concessão que a facultem a privados. Estes
aspectos estão sujeitos a uma apreciação mais conjuntural e a determinantes mais
particularizadas, pelo que se justifica não impor uma lei da República para os
fixar.
Esta opinião do Tribunal beneficia, aliás, de amplo apoio doutrinal.
Diz Pedro Lomba em comentário ao Acórdão n.º 131/03 do Tribunal Constitucional,
onde se discutiu o problema da titularidade dos bens do domínio público hídrico,
enquanto bens do domínio público que beneficiam de um regime específico de
salvaguarda (Jurisprudência Constitucional, n.º 2, Abr./Jun. 2004, pág 58):
?este tema [o domínio público hídrico, incluindo o domínio público marítimo]
coloca-nos perante a sempre problemática repartição de competências legislativas
do Estado e das regiões autónomas. É que, por um lado, a Assembleia da República
dispõe, segundo a alínea v), do artigo 165.º, da Constituição, da competência
reservada para a definição dos bens do domínio público e respectivo regime. Mas,
por outro, não é manifesto se tal competência reservada abrange os bens do
domínio público regional. E no que respeita aos recursos hídricos, que o
legislador estatutário ? e, desde 1997, o legislador constitucional -,
consideram ser de interesse específico regional, subsiste a dúvida sobre o
alcance da competência legislativa das regiões para definir o regime de tais
recursos enquanto bens integrantes do domínio público regional'.
Depois, a este propósito, toma o Autor a seguinte posição (loc. cit., pág. 62):
?Ao estabelecer o regime de utilização do domínio público hídrico, este
normativo [o Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro, enquanto diploma que
define o regime de utilização do domínio público hídrico] é da competência
reservada da Assembleia da República (artigo 165.º, alínea v), da Constituição).
Todavia o artigo 165.º, alínea v), só pode referir-se ao regime de utilização do
domínio público do Estado e não ao domínio público regional. Na verdade, caso se
entendesse ser matéria reservada da Assembleia da República a definição do
regime de utilização do domínio público regional, afastar-se-ia, por completo, o
poder legislativo regional nesta matéria, interpretação que consideramos vedada
pelo texto constitucional, uma vez que a definição daquele regime é,
indubitavelmente, matéria de interesse específico. Quer isto dizer que as
regiões podem definir os bens que integram o domínio público regional com
excepção dos afectos ao domínio público do Estado?.
Entendimento semelhante é actualmente acolhido por Gomes Canotilho e Vital
Moreira (Constituição da República Portuguesa, 4.ª ed., 1007):
«O regime legal dos bens do domínio público é da competência reservada da AR (art.
165.º/v), embora não totalmente. De facto, do programa normativo atribuído à lei
pelo n.º 2 ? definição do domínio público dos diferentes entes territoriais,
regime, condições de utilização e limites ? a referida alínea do art. 168.º [leia-se,
165.º] só menciona a definição e o regime. Por isso, os demais aspectos caem na
concorrência legislativa concorrente da AR e do Governo».
Posição mais restritiva mantém Rui Guerra da Fonseca (Comentário à Constituição
Portuguesa, org. por Paulo Otero, p. 330), ainda assim consciente da necessidade
de se reconhecer às regiões autónomas competências regulamentares no que
respeita ao exercício dos específicos poderes que detêm sobre os bens do domínio
público estadual nelas situados:
?nos casos em que se admita que o Estado atribua às regiões autónomas
determinados poderes sobre bens do domínio público estadual, estas podem fazer
uso da sua competência regulamentar, ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo
227.º da Constituição da República Portuguesa, para em subordinação à lei,
disciplinar o respectivo exercício'.
É neste contexto, em que se aceita que as regiões autónomas possam regular (e
inclusivamente legislar) sobre as condições de utilização dos bens do domínio
público situados no respectivo território, que se deverá colocar a questão da
constitucionalidade do artigo 2.º, n.º 7, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M,
na redacção do Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M.
O referido artigo 2.º, n.º 7, na sua primeira parte ? em concordância com a
lógica dos actuais modelos de gestão portuária introduzidos no nosso país em
final dos anos 90 (ver Pedro Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos,
Coimbra 2005, págs. 897-901) ? reconhece a possibilidade de atribuição do
direito de utilização e administração dominial dos bens do domínio público
afectos à APRAM S.A. a uma outra empresa pública, isto é, à Ponta do Oeste, S.A.,
caracterizando esta sociedade, explicitamente, como 'sociedade de capitais
exclusivamente públicos'.
O mesmo artigo 2.º, n.º 7, determina, ainda, na sua segunda e última parte, que
o Governo Regional possa autorizar operações de desafectação dominial das áreas
do domínio público da RAM afecto à APRAM, S. A., e de subsequente integração
dessas áreas no património da sociedade Ponta do Oeste SA..
Aqui levanta-se, porém, um problema: o artigo 2.º, n.º 7, do Decreto Legislativo
Regional n.º 19/99/M, na redacção do Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M,
refere-se, genericamente, às ?áreas do domínio público da RAM afecto à APRAM, S.A.?.
Ora essas áreas estão definidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 2.º do mesmo Decreto
Legislativo Regional n.º 19/99/M, e abrangem: ?os terrenos situados dentro da
área de jurisdição da Administração dos Portos da Região Autónoma da Madeira,
que não sejam propriedade municipal ou de particulares, bem como os cais,
terminais, docas, acostadouros e outras obras marítimas existentes e delimitados
no anexo II?.
Este Anexo II, por sua vez, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto
Legislativo Regional n.º 25/2003/M, enumera diversos portos, terminais e cais
existentes na orla marítima da Região, entre os quais se contam o cais da
Ribeira Brava, o cais da Calheta e o cais da Ponta do Sol e Lugar de Baixo, que
constituem a zona de intervenção da Ponta do Oeste SA (nos termos expressos do
artigo 1.º do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2000/M, que criou esta última
sociedade). A delimitação desta zona de intervenção da Ponta do Oeste SA é feita,
pelo referido Anexo II, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M (que
transformou a APRAM em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos),
nos termos que de seguida se transcrevem:
?[?]
Artigo 8.º
Cais da Ribeira Brava
O cais da Ribeira Brava compreende a faixa do domínio público marítimo
delimitada pelos pontos n.ºs 1 a 11, cujas coordenadas rectangulares UTM são as
seguintes:
1 ?x=306 758,32; y=3 616 087,86;
2 ?x=306 828,87; y=3 616 123,01;
3 ?x=306 808,17; y=3 616 141,71;
4 ?x=306 812,67; y=3 616 143,72;
5 ?x=306 857,57; y=3 616 122,11;
6 ?x=306 878,67; y=3 616 102,81;
7 ?x=306 935,77; y=3 616 124,11;
8 ?x=307 042,47; y=3 616 134,81;
9 ?x=307 047,07; y=3 616 153,59;
10 ?x=307 281,33; y=3 615 249,36;
11 ?x=306 526,35; y=3 615 196,05.
Artigo 9.º
Cais da Calheta
O cais da Calheta compreende a faixa do domínio público marítimo delimitada
pelos pontos n.ºs 1 a 8, cujas coordenadas rectangulares UTM são as seguintes:
1 ?x=296 688,87; y=3 621 897,47;
2 ?x=296 873,07; y=3 621 812,97;
3 ?x=297 100,94; y=3 621 620,55;
4 ?x=297 108,37; y=3 620 699,51;
5 ?x=296 091,06; y=3 621 041,36;
6 ?x=296 632,17; y=3 621 776,87;
7 ?x=296 635,37; y=3 621 785,37;
8 ?x=296 659,57; y=3 621 827,27.
[?]
Artigo 13.º
Cais da Ponta do Sol e lugar de Baixo
O cais da Ponta do Sol e lugar de Baixo compreende a faixa do domínio público
marítimo delimitada pela linha que une os pontos n.ºs 1 a 28, cujas coordenadas
rectangulares UTM são as seguintes:
1 ?x=303 180,33; y=3 616 091,81;
2 ?x=304 944,68; y=3 616 075,86;
3 ?x=304 272,34; y=3 617 338,23;
4 ?x=304 229,97; y=3 617 356,61;
5 ?x=304 215,63; y=3 617 372,19;
6 ?x=304 184,64; y=3 617 379,51;
7 ?x=304 149,15; y=3 617 401,37;
8 ?x=304 021,76; y=3 617 512,82;
9 ?x=303 958,55; y=3 617 559,31;
10 ?x=303 874,67; y=3 617 537,81;
11 ?x=303 790,53; y=3 617 523,58;
12 ?x=303 773,67; y=3 617 518,91;
13 ?x=303 508,06; y=3 617 370,61;
14 ?x=303 370,23; y=3 617 332,29;
15 ?x=303 275,43; y=3 617 297,19;
16 ?x=303 667,86; y=3 617 453,11;
17 ?x=303 166,50; y=3 617 281,33;
18 ?x=303 127,00; y=3 617 264,50;
19 ?x=303 100,00; y=3 617 256,83;
20 ?x=303 084,05; y=3 617 263,54;
21 ?x=303 099,68; y=3 617 301,70;
22 ?x=303 107,58; y=3 617 304,86;
23 ?x=303 091,02; y=3 617 310,40;
24 ?x=303 059,59; y=3 617 250,47;
25 ?x=302 965,91; y=3 617 219,04;
26 ?x=302 703,91; y=3 616 837,30;
27 ?x=302 441,91; y=3 616 455,56;
28 ?x=302 888,32; y=3 616 413,15.
Assim, fica claro que o artigo 2.º, n.º 7, do Decreto Legislativo Regional n.º
19/99/M, na redacção que lhe foi dada em 2003, se refere às faixas do domínio
público marítimo identificadas no Anexo II, desse mesmo diploma. O decreto
legislativo regional pressupõe o entendimento de que essas faixas do domínio
público marítimo, que estão situadas dentro da área de jurisdição da APRAM S.A.,
seriam passíveis de desafectação, por acto do Governo Regional, e de subsequente
integração no património da Ponta do Oeste, por serem domínio público da Região
Autónoma da Madeira.
Torna-se, assim, necessário verificar se será verdadeira esta premissa de que as
faixas do domínio público marítimo situadas dentro da área de jurisdição da
APRAM SA são domínio público da Região Autónoma ou se, pelo contrário, não serão,
antes, domínio público do Estado.
6.2. A questão da titularidade dos bens do domínio público marítimo situados nas
regiões autónomas
Devemos começar por notar que o Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M,
segundo a redacção do Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M, qualifica
todas as faixas de terreno em causa como ?faixas do domínio público marítimo?.
As questões que se colocam são, portanto duas: (i) saber quem é titular dos bens
do domínio público marítimo situados nas regiões autónomas e (ii) saber se
haverá, porventura, alguma razão válida para afastar a qualificação que o citado
Decreto Legislativo Regional dá a tais bens.
A definição dos bens que integram o domínio público resulta da Constituição e da
lei.
O artigo 84.º, n.º 1, da Constituição, identifica directamente um conjunto de
bens que pertencem ao domínio público [n.º 1, alíneas a) a e)] e remete para a
lei a possibilidade de atribuir essa qualificação a outros bens [alínea f)]. Por
seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo remete para a lei a tarefa de definir a
titularidade dos bens do domínio público que pertencem ao Estado, às regiões
autónomas e às autarquias locais.
A garantia institucional contida no artigo 84.º da Constituição exige, todavia,
que haja uma intervenção clarificadora do seu exacto conteúdo
constitucionalmente determinado, por parte do legislador (seja na alínea f) do n.º
1, seja no n.º 2)
O diploma que, à data de aprovação da norma agora impugnada, concretizava a
exigência constitucional era a Lei n.º 16/2003, de 4 de Junho (que republicou o
Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro). Nela se estabelece o regime dos
terrenos do domínio público hídrico, e aí se qualificam como ?domínio público do
Estado os leitos e as margens das águas do mar? (artigo 5.º, n.º 1). O Decreto-Lei
n.º 477/80, por seu turno, veio confirmar, no seu artigo 4.º, quais são os bens
do domínio público do Estado: a alínea a) refere as margens das águas marítimas;
a alínea e) refere os portos artificiais e docas. Estes diplomas concretizam a
garantia institucional do artigo 84.º, da Constituição da República Portuguesa,
considerando ambos as margens das águas do mar como domínio público do Estado.
Por margem entende-se uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que
limita o leito das águas, em regra com 50 metros de largura, contados a partir
da linha de limite do leito ou da crista do alcantil se aquela linha atingir
arribas alcantiladas (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71).
Actualmente, a matéria encontra-se regulada pela Lei n.º 54/2005, de 15 de
Novembro, que disciplina a titularidade dos recursos hídricos, cujo artigo 29.º
revogou os capítulos I e II do Decreto-Lei n.º 468/71. Depois de reconhecer que
o domínio público hídrico pode pertencer ao Estado, às Regiões Autónomas, e aos
municípios e freguesias, o artigo 4.º preceitua que ?o domínio público marítimo
pertence ao Estado?. E igualmente se incluem no domínio público marítimo as
margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das
marés (alínea a) do artigo 3.º), definindo-se a margem e estabelecendo-se a sua
largura em termos essencialmente coincidentes com o que constava do regime legal
vigente à data da emissão do diploma em que se insere a norma em apreciação (artigo
11.º).
É verdade que o artigo 144.º, n.º 1, do EPARAM, estabelece que ?os bens do
domínio público situados no arquipélago, pertencentes ao Estado, bem como ao
antigo distrito autónomo, integram o domínio público da Região?. Mas, logo
depois, o n.º 2, deste mesmo preceito, estabelece que não integram o domínio
público regional os bens situados na Região Autónoma que interessem à defesa
nacional ou estejam afectos a serviços públicos não regionalizados (mas ainda,
excepção à excepção, desde que não sejam classificados como património cultural).
Na verdade, há bens que, em vista da repartição constitucional do domínio
público requerida pelo artigo 84.º, n.º 2, da Constituição, não podem deixar,
pela sua especial conexão com a identidade e a soberania nacionais, de pertencer
ao Estado. É o que sucede com os bens do domínio público marítimo, como
claramente se afirmou no Acórdão n.º 402/08:
?Há que atentar, na verdade, que a titularidade do domínio público marítimo cabe
ao Estado [?] ? cabe, e não pode deixar de caber, por imperativo constitucional,
atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais.
É também o que afirmam, com clareza, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição
da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., Coimbra 2007, págs. 1004 e segs.):
?Compete à lei a determinação do sujeito titular dos diversos tipos de bens do
domínio público, embora pareça natural que certos bens não podem deixar de
integrar o domínio público do Estado, por serem inerentes ao próprio conceito de
soberania (como sucede com o domínio público marítimo e aéreo), não podendo por
isso pertencer ao domínio de entes públicos infra-estaduais'.
E a questão que agora mais directamente interessa, que é a de saber se as
margens das águas do mar situadas nas regiões autónomas se integram, ou não, no
domínio público necessário do Estado, foi resolvida pelo Acórdão n.º 131/03 (publicado
no Diário da República, I Série-A, de 4 de Abril de 2003. Neste aresto o
Tribunal sustentou o entendimento de que as ?margens?, isto é, as faixas de
terreno junto ao mar são, pela sua inerente ligação à defesa nacional, domínio
público do Estado, nos seguintes termos:
?Podemos deste modo concluir que, designadamente por força do princípio da
unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional
[?], não é possível a transferência para os governos regionais de determinados
bens, nomeadamente os que integram o domínio público marítimo, domínio público
necessário do Estado. Assim sendo, os Estatutos Político-Administrativos das
Regiões Autónomas não operaram qualquer transferência desses bens do domínio
público marítimo, que continuam, assim, a ser bens do Estado?.
O Acórdão cita em seu apoio o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 16/91
(publicado no Diário da República, II-Série, 20 de Setembro de 1986, págs. 13255
e segs.), onde se afirma (pág. 13265):
?aceite a distinção entre «domínio acidental e necessário, aqui incluindo o
domínio marítimo, hídrico e militar», o domínio necessário, salienta-se, «continua
a pertencer exclusivamente ao Estado». Não sendo, assim, possível admitir «a
transferência dos bens em apreço para as regiões», só poderá, de resto,
subscrever-se a constitucionalidade de uma disposição tal como a [?] do artigo
76º [actual 144º] do Estatuto da Madeira, se se entender que a excepção feita
aos «bens que interessem à defesa nacional e os que estejam afectos a serviços
públicos não regionalizados» compreende os «que se incluem no domínio marítimo e
no domínio aéreo». Basta, inclusive, recordar o «âmbito de aplicação nacional»
do «sistema da autoridade marítima» para facilmente se concluir que os leitos e
margens do domínio público do Estado, para além de interessarem à defesa
nacional, se encontram afectos a serviços públicos não regionalizados?.
Também se convoca o Parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo, órgão
consultivo da Autoridade Marítima Nacional (Parecer n.º 5111, de Novembro de
1987, in Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, n.º 101, 1987, págs.
158 e segs.), onde se afirma:
?as áreas do domínio público marítimo situadas nos Açores porque interessam à
defesa nacional por declaração implícita da lei, não podem ser integradas no
elenco dos bens dominiais pertencentes à Região Autónoma, pelo que continuam
pertencendo ao Estado, ficando, portanto, sujeitas ao mesmo regime das áreas
homólogas sitas no Continente?.
Em sentido análogo, a doutrina entende que o artigo 144.º, do EPARAM, só não
colide com o artigo 84.º, n.º 2, da Constituição, caso seja atribuída à
expressão ?bens que interessem à defesa nacional? um sentido amplo que abranja o
domínio público marítimo. Explicam Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, (Estatuto
Político-Administrativo dos Açores Anotado, Principia, 1997, págs. 249 e 250).
?Sublinhe-se, como ponto de partida, que o n.º 2 do artigo 84º da Constituição
de 1976, embora consagre uma concepção descentralizada do domínio público (v.
José Magalhães, Dicionário..., cit., pág. 48), não dá um cheque em branco ao
legislador. Conforme sublinha a jurisprudência portuguesa, os bens
indissociavelmente ligados à soberania não podem pertencer ao domínio público
regional, devendo permanecer integrados no domínio público necessário do Estado,
tomado este na acepção de pessoa colectiva de direito público que tem por órgão
o Governo?.
Depois, referindo-se explicitamente ao problema do domínio público marítimo,
afirmam que a expressão estatutária ?bens que interessam à defesa nacional? não
se pode limitar ao domínio público militar, isto é, aos bens directamente
afectos a usos militares, e tem de abranger os bens do domínio público marítimo:
?Concretamente, a referência estatutária de que pertencem ao Estado os bens que
'interessam à defesa nacional' não pode de modo algum conduzir ao entendimento (restritivo)
de que essa expressão equivale a 'domínio público militar' [...]. Não é
constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio
público da Região.
O exemplo de Direito Comparado é sugestivo. Em Itália, o artigo 32º do Estatuto
da Sicília colocou também já o problema análogo da determinação da titularidade
estadual ou regional das águas marítimas sicilianas. A Corte Costituzionale
acabou por decidir que, apesar de o domínio público marítimo não ser
expressamente excepcionado no teor literal do referido preceito do âmbito do
domínio da Sicília, deveria ser dele excluído dado que se trata de um bem que
interessa manifestamente à defesa nacional. É idêntica a posição defendida pela
doutrina mais autorizada (v. Vezio Crisafulli/Livio Paladin, Comentario Breve
alla Costituzione, Pádua, 1990, pág. 726). Em Espanha, o n.º 2 do artigo 132º da
Constituição de 1978 resolveu expressamente a questão ao considerar que «são
bens de domínio público estatal os que a lei determinar e, em todo o caso, a
zona marítimo-terrestre, as praias, o mar territorial e os recursos naturais da
zona económica e da plataforma continental»?.
É ainda de salientar o entendimento de Ana Raquel Moniz (O Domínio Público, pág.
123):
?independentemente do reconhecimento (constitucionalmente consagrado) do domínio
público regional (enquanto corolário da autonomia político-administrativa das
Região Autónoma), e do domínio público autárquico, torna-se imprescindível
acentuar o facto de que certos bens, atenta a função que desempenham ou a sua
inerência à própria identidade (soberania) do Estado português (face à sociedade
internacional), hão-de impreterivelmente constituir domínio público estadual?.
Depois ? amparando-se em jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional ? a
Autora dá como o exemplo o ?domínio público marítimo e aéreo?, ao qual
acrescenta, embora neste caso com dúvidas, ?o domínio público radioeléctrico? (ob.
cit., p. 126). E conclui ainda (ibidem, nota 68):
'Uma consequência da dominialidade pública estadual dos bens abrangidos pelas
cláusulas de exclusão prende-se com a impossibilidade (constitucional) da
transferência para os órgãos regionais dos poderes característicos dos órgãos
titulares dos bens dominiais sobre as coisas públicas estaduais'.
É, pois, generalizado o entendimento de que o domínio público marítimo,
incluindo as águas costeiras e a margem do mar como um todo, pertence,
necessariamente, ao Estado. Daí que as águas do mar e respectivas margens (com a
largura de 50 metros) compreendidas na área de jurisdição da APRAM pertençam ao
domínio público estadual.
No parecer junto ao processo defende-se a ideia de que os terrenos em torno dos
cais e portos constituiriam bens da Região pelo facto de os portos e cais serem
domínio público da Região e tais terrenos constituírem, em conjunto com eles,
uma universalidade pública. Diz-se:
?o domínio público portuário, como universalidade pública, abrange todo o
complexo de bens pertencente à mesma pessoa colectiva pública, adstrito à
satisfação das mesmas funções públicas (unidade funcional) e que constitui
objecto de um tratamento unitário por parte do ordenamento jurídico, em
particular pelo legislador' - o que significa que, não só os terrenos que
integram o porto não se confundem necessariamente com as margens (podendo
abarcar zonas mais largas), como a infra-estrutura portuária implica a
existência de outros equipamentos em nada relacionáveis com o domínio público
marítimo?.
É, de facto, verdade que a questão do domínio público se coloca de modo diverso
consoante estejam em causa construções humanas, as infra-estruturas e os
equipamentos imobiliários, ou bens do domínio público natural (sobre a
especificidade do conceito de domínio público infra-estrutural, Ana Raquel Moniz,
O Domínio Público, p. 221-251). Assim se compreende que, nos termos do artigo
144.º, n.º 2, do EPARAM, sejam domínio público regional os bens do domínio
público afectos a ?serviços públicos não regionalizados? caso constituam ?património
cultural? da região. E que o Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na
redacção da Lei n.º 16/2003 de 4 de Junho, considerasse que a margem, que é
domínio público do Estado, só se estende até onde se encontre uma 'estrada
regional ou municipal' (artigo 3.º; o mesmo dispõe o n.º 7 do artigo 11.º da Lei
54/2005).
Compreende-se a diferença de regime entre as infra-estruturas específicas e as
margens do mar como um todo: por um lado, não se pode afirmar que a titularidade
regional de infra-estruturas específicas existentes no perímetro normal das
margens tenha necessariamente relevância estratégica sob o ponto de vista da ?defesa
nacional?, não se justificando portanto a invocação da cláusula de salvaguarda
constante do artigo 144.º, n.º 2, do EPARAM; por outro lado, as infra-estruturas
carecem de cuidados de conservação e manutenção que deverão ficar a cargo de
quem está mais próximo delas e mais directamente delas retira benefícios. É
neste sentido que se fala de um ?domínio público infra-estrutural? (Ana Raquel
Moniz, O Domínio Público, págs. 221-251), e é nessa linha de raciocínio que se
defende a titularidade regional das infra-estruturas portuárias existentes nas
regiões autónomas (ibidem, pág. 238).
Contudo, o que permite o artigo 2.º, n.º 7, do Decreto Legislativo Regional n.º
19/99/M, na redacção de 2003 agora em apreciação, não é apenas a transferência
dessas infra-estruturas portuárias. Nem sequer o é em primeira linha, como muito
facilmente se retira do confronto com o n.º 4 do mesmo artigo que desafecta tais
infra-estruturas (?equipamentos e edifícios?) integrando-os no património da
APRAM, S.A. Com efeito, se o n.º 7, do artigo 2.º, tivesse em vista, na sua
parte final, apenas infra-estruturas portuárias, então o n.º 4, desse mesmo
artigo, não teria efeito útil. Naquele preceito, têm-se em vista não as infra-estruturas
portuárias, mas sim as ?áreas? (isto é, as faixas de terreno) do domínio público
que estão afectas à APRAM SA e se situam na zona de intervenção da Ponta do
Oeste SA.
Ora, essas faixas de terreno não podem considerar-se ?domínio público infra-estrutural?.
Não são infra-estruturas ? enquanto suporte físico artificial das actividades de
serviço público susceptíveis de se desenvolverem através delas ? não valendo,
portanto, para elas as razões que levam a admitir que os bens do domínio público
infra-estrutural situados na Região se devam considerar domínio público regional.
E a esta conclusão não obsta a circunstância de os terrenos em causa se
compreenderem no perímetro portuário e estarem funcionalmente afectos, com as
construções neles porventura erigidas e os equipamentos neles instalados, à
satisfação do serviço público que constitui a actividade portuária. A unidade
funcional de um determinado conjunto de bens pode justificar que a gestão da sua
utilização caiba a uma só entidade, mas não implica necessariamente a unidade da
titularidade dominial do complexo de bens que o integram.
Não há, portanto, razão para comprimir o domínio público marítimo, enquanto
domínio público natural, nas áreas em torno dos portos e cais. Tais áreas são
parte integrante do domínio público marítimo.
Se, porventura existirem, de entre essas faixas de terreno, áreas que extravasam
já o perímetro do domínio público marítimo tal como a lei, em cumprimento do
mandato constitucional, o estabelece (não sendo portanto domínio público
estadual, mas regional), tal sucederá contra o teor literal do Decreto
Legislativo Regional n.º 19/99/M (que as qualifica como ?faixas do domínio
público marítimo?) e nunca será por tais áreas estarem em torno de infra-estruturas
portuárias ? será, sim, por se situarem para além da margem do mar. Fora desta
hipótese, as áreas consideradas são, repita-se, domínio público marítimo.
6.3. Impossibilidade de as regiões autónomas desafectarem bens do domínio
público marítimo
O artigo 2.º, n.º 7, in fine, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M, na
redacção do Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M, prevê a ?desafectação
dominial? com subsequente integração no património de uma sociedade de capitais
exclusivamente públicos.
Deve começar por notar-se que aquilo que se prevê neste segmento normativo é
algo de semelhante, nos efeitos, a uma mutação dominial subjectiva de um bem de
cariz territorial para um ente público não territorial. Ora se é certamente
possível afectar a utilização de bens do domínio público de uma entidade
territorial aos fins de uma entidade pública não territorial (por exemplo, uma
sociedade de capitais exclusivamente públicos como a APRAM S.A. ou a Ponta do
Oeste S.A.), já é discutível que seja possível transferir a titularidade de tais
bens integrantes do domínio público material ou por natureza (de cariz
territorial) para o património de um ente público não territorial (uma sociedade
de capitais exclusivamente públicos como a APRAM S.A. ou a Ponta do Oeste S.A.).
As mutações dominiais subjectivas envolvendo entes públicos não territoriais são
actualmente proibidas pelo Decreto-Lei n.º 280/07, de 7 de Agosto, que
estabelece o regime jurídico dos bens imóveis do domínio público do Estado, das
regiões autónomas e das autarquias locais. Na verdade, o artigo 15.º, deste
diploma, preceitua: ?A titularidade dos imóveis do domínio público pertence ao
Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais e abrange poderes de uso,
administração, tutela, defesa e disposição nos termos do presente decreto -lei e
demais legislação aplicável?; e o artigo 24.º, por seu turno, sob a epígrafe ?Mutações
dominiais subjectivas?, estabelece: ?A titularidade dos imóveis do domínio
público pode ser transferida, por lei, acto ou contrato administrativo, para a
titularidade de outra pessoa colectiva pública territorial a fim de os imóveis
serem afectados a fins integrados nas suas atribuições, nos termos previstos no
Código das Expropriações?. O citado decreto-lei teve, portanto, o cuidado de
especificar que a transferência de bens do domínio público se deveria fazer
sempre de pessoa colectiva pública territorial para outra pessoa colectiva
pública ?territorial? (excluindo, assim, as entidades públicas não territoriais).
E já antes, perante o vazio legislativo, era também essa a posição maioritária
na doutrina que ia no sentido de excluir a possibilidade de domínio público
afecto a entidades não territoriais. E esta opinião mantém-se ainda vigente (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.,
Vol. I, p. 1004-1005 e Ana Raquel Moniz, O Domínio Público, págs. 392-400; vejam-se
porém as críticas de Medeiros/Lino Torgal, in Constituição da República
Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda/Rui Medeiros, p. 90-92 e Rui Guerra da
Fonseca, Constituição da República Portuguesa, org. Paulo Otero, p. 320-322).
A questão perante a qual estamos colocados é, porém, diversa: a norma impugnada
não pretende directamente uma mutação dominial subjectiva; o que ela pretende é
permitir a desafectação de bens do domínio público, perdendo a área em causa
essa qualidade ou estatuto jurídico e passando essas faixas de terreno a ser
propriedade privada de uma sociedade de capitais exclusivamente públicos.
Mas tal também não parece ser possível.
É certo que a Região Autónoma pode ? através de licenças e, em especial, através
de concessões ? autorizar não só a exploração, mas inclusivamente o uso
privativo de partes específicas dos bens do domínio público (sobre a distinção
entre os dois tipos de concessão pública, Freitas do Amaral, Curso de Direito
Administrativo, Vol. II, com a colaboração de Lino Torgal, Coimbra 2001, pág.
544).
A Região Autónoma pode fazê-lo nos termos gerais do Decreto-Lei n.º 280/2007,
actualmente em vigor (artigos 27.º a 30.º). E poderia tê-lo feito em 2003 nos
termos do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, republicado em anexo à Lei n.º
16/2003 de 4 de Junho. Na verdade, este diploma previa a possibilidade de uso
privativo de terrenos do domínio público (artigo 17.º), mediante licença ou
concessão (artigo 18.º). Essas concessões são admitidas quando tal uso privativo
possa considerar-se de utilidade pública e, nomeadamente, quando tenha por fim a
instalação de serviços de apoio à navegação marítima ou a edificação de
estabelecimentos hoteleiros e conjuntos turísticos [artigo 19.º, alíneas b) e e)].
As concessões de uso privativo podem, pois, inclusivamente envolver a realização
de obras e a construção de edifícios (veja-se Freitas do Amaral/J. Pedro
Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Público Hídrico, Coimbra
1978, pág. 197).
A faculdade de concessão de uso privativo de partes da margem do mar, quando se
compreendam no perímetro portuário, funda-se na distinção entre poderes
primários e poderes secundários relativamente aos bens dominais. Mesmo não sendo
titular de tais bens dominiais, a Região pode exercer sobre eles poderes
secundários tais como o poder de concessão de uso privativo (cf. Ana Raquel
Moniz, O Domínio Público, pág. 126, n.º 68).
Foi o que se explicou no já citado Acórdão n.º 402/08. Depois de reconhecer que,
no caso, estariam em causa bens do domínio público marítimo não disponíveis pela
Região, afirmou o Tribunal:
?O que acaba de dizer-se não significa ? cumpre sublinhá-lo ? que, mantida
incólume a titularidade do Estado, não estejam constitucionalmente legitimadas
formas dúcteis de exploração e rendibilização dos bens dominiais, em cuja
definição tenham um papel relevante os poderes regionais. Uma tal opção encontra
apoio claro nos fundamentos e objectivos da autonomia traçados no artigo 225.º,
em particular nos objectivos de ?desenvolvimento económico-social? e no de ?promoção
e defesa dos interesses regionais? (n.º 2 do citado artigo).
Nem sequer, rejeitada a tese de que a titularidade do domínio é necessariamente
acompanhada pela titularidade de (todas as) competências gestionárias, estará
excluída a possibilidade de uma transferência para outros entes de certos
poderes de gestão ínsitos na titularidade do Estado, designadamente de poderes
que não digam respeito à defesa nacional e à autoridade do Estado. A não
regionabilidade da titularidade do domínio público marítimo integrante ou
circundante da área territorial das regiões autónomas não arrasta consigo, como
consequência forçosa, a insusceptibilidade de transferência de certos poderes
contidos no domínio. Já o parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo n.º
5945, de 18.01.2002 (Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, n.º 116,
2002, 12-17) o reconhecia, ao admitir a «transferência de poderes secundários,
que não afectasse a autoridade suprema do Estado nesta matéria [?]».
Nada disto vale, porém, para a desafectação dominial. O ente territorial não
titular de determinados bens do domínio público, quando estes se encontrem no
seu território, apenas pode exercer poderes dominiais secundários (concessão ou
licença de exploração e uso privativo), mas já não poderes primários (desafectação).
A respeito dos bens do domínio público marítimo situados nas regiões autónomas e
que compreendam na área portuária (sob jurisdição das autoridades regionais), o
Estado e as Regiões colocam-se numa posição análoga, respectivamente, à de
proprietário e usufrutuário de um mesmo bem: o usufrutuário pode usar e fruir do
bem, mas terá se ser o proprietário a dispor dele.
Não detendo a Região a titularidade dos bens do domínio público marítimo (e
nomeadamente de faixas de terreno que integram as margens do mar, que é o que
agora releva), a respectiva desafectação não é uma questão de ?âmbito regional?.
Não é, portanto, matéria passível de ser regulada num decreto legislativo
regional (artigos 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1, alínea a) da Constituição).
Assim, só é possível desafectação de bens do domínio público marítimo, mediante
poder conferido por acto legislativo dos órgãos de soberania (sendo, aliás,
fácil encontrar exemplos nos últimos anos de decretos-lei de desafectação de
terrenos sem utilização portuária reconhecida), e não por acto dos órgãos
regionais, pois a titularidade da margem como um todo é do Estado e não da
Região Autónoma. A lei permite a desafectação de terrenos situados nas margens
do mar (artigo 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na
redacção da Lei n.º 16/2003 de 4 de Junho e, actualmente, artigo 19.º da Lei n.º
54/2005). Mas é ao respectivo titular que compete proceder a tal desafectação.
Na já antes citada passagem do Acórdão n.º 402/08, em que se reitera a
titularidade por parte do Estado dos bens do domínio público marítimo, conclui-se
com a impossibilidade de transferir para as regiões autónomas tais bens,
advertindo?se:
Há que atentar, na verdade, que a titularidade do domínio público marítimo cabe
ao Estado [?] ? cabe, e não pode deixar de caber, por imperativo constitucional,
atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais. Como
corolário, está assente a intransferibilidade de bens de domínio público
marítimo do Estado para as regiões.
Assim, sendo o domínio público marítimo (enquanto expressão territorial do
princípio da unidade do Estado) insusceptível de transferência para as regiões (correspondendo
isto ao conteúdo mínimo da garantia institucional constante do artigo 84.º, n.º
2, da Constituição da República Portuguesa), é forçoso considerar que excede o
âmbito regional adoptar providências legislativas que contendam com a
titularidade dos bens nele compreendidos, designadamente, permitir a
desafectação para posterior transferência para o património de uma terceira
entidade.
Em conclusão, não pode o artigo 2.º, n.º 7, do Decreto Legislativo Regional n.º
19/99/M permitir a desafectação dominial de partes do domínio público marítimo,
sendo, na medida em que o faz, violador da garantia constitucional do domínio
público do Estado.
7. A questão de ilegalidade suscitada
O requerente acrescenta, ainda, que os actos normativos objecto do pedido são
ilegais, uma vez que extravasam o conceito de ?interesse específico? resultante
da alínea mm) do artigo 40.º do EPARAM, pedindo a correspondente declaração de
ilegalidade.
Esta última questão fica, porém, prejudicada pela resposta encontrada quanto à
questão de constitucionalidade.
III ? Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma
contida no artigo 2.º, n.º 7, in fine, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M,
na versão constante do Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M, por violação
dos artigos 84.º, n.º 2, 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1, alínea a), todos da
Constituição, na medida em que permite ao Governo Regional da Madeira autorizar
a desafectação dominial e a integração no património de uma sociedade de
capitais exclusivamente públicos das faixas do domínio público marítimo
delimitadas nos artigos 8.º, 9.º e 13.º do Anexo II daquele Decreto Legislativo
Regional;
b) Não tomar conhecimento do pedido quanto às restantes normas nele mencionadas.
Lx. 16/XII/2009
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
Joaquim de Sousa Ribeiro
Maria Lúcia Amaral
José Borges Soeiro
João Cura Mariano
Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração que se anexa)
Carlos Pamplona de Oliveira ? vencido, conforme declaração
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido da não inconstitucionalidade da norma contida no artigo 2.º, n.º
7, in fine, do Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M, na versão constante do
Decreto Legislativo Regional n.º 25/2003/M, na medida em que permite ao Governo
Regional da Madeira autorizar a desafectação dominial e a integração no
património de uma sociedade de capitais exclusivamente públicos das faixas do
domínio público marítimo delimitadas nos artigos 8.º, 9.º e 13.º do Anexo II
daquele Decreto Legislativo Regional.
1. Relativamente às faixas em causa, qualificadas por aquele Decreto Legislativo
Regional como ?faixas do domínio público marítimo?, entendo que integram o
domínio público infra-estrutural (portuário) de que é titular a Região Autónoma
da Madeira. Tais faixas integram o perímetro portuário, estando funcionalmente
afectas à satisfação do serviço público que constitui a actividade portuária. ?Um
conceito funcional de porto não se pode bastar com os bens infra-estruturais (criados
mediante a intervenção humana), mas inclui todos os bens funcionalmente
conexionados com aqueles? (assim, Parecer junto ao autos).
Este entendimento é compatível com o que decorre da Constituição da República
Portuguesa em matéria de repartição do domínio público (artigo 84.º),
designadamente no que se refere à titularidade estadual do domínio público
marítimo, ?atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania
nacionais? (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 402/2008). Se, por um lado, a
integração das águas marítimas no domínio público estadual ?não prejudica a
existência de um regime especial que permita o exercício dos poderes de gestão
do Estado pelas regiões autónomas ? o que, aliás, surge em plena consonância com
o princípio da descentralização na matéria do domínio público e com o vector
funcional característico do estatuto da dominialidade?; por outro, os interesses
da defesa nacional continuam tutelados (cf. artigo 144.º, nº 2, do Estatuto
Político Administrativo da Região Autónoma da Madeira), ?ficando o Estado,
enquanto titular do domínio, com livre acesso e gestão às mesmas águas sempre
que tal seja reclamado para prover às necessidades defensivas, sobrepondo-se,
então, ao regime especial (que é o regime normal de administração portuária), o
regime geral, por força da emergência preponderante do interesse nacional? (assim,
Parecer junto ao autos).
2. Entendo também que não há obstáculos do ponto de vista jurídico-constitucional
à desafectação dominial e à integração subsequente no património de uma
sociedade de capitais exclusivamente públicos de ?faixas do domínio público
marítimo?, funcionalmente afectas à satisfação do serviço público que constitui
a actividade portuária, desde que subsistam os poderes de domínio estadual que
são impostos pela identidade e soberania nacionais.
A este propósito, deve notar-se que a parte final do n.º 7 do artigo 2.º do
Decreto Legislativo Regional n.º 19/99/M, na versão constante do Decreto
Legislativo Regional n.º 25/2003/M (bem como a Resolução do Governo da Região
Autónoma da Madeira n.º 778/2005, de 20 de Junho) estabelece uma conexão entre a
desafectação dominial e a integração no património da Ponta do Oeste ? Sociedade
de Promoção e Desenvolvimento da Zona Oeste da Madeira, S.A. e o cumprimento dos
programas de desenvolvimento já aprovados, o que é significativo da submissão a
vínculos reais jurídico-públicos e aos poderes de domínio da Região Autónoma da
Madeira (sobre isto, cf. Parecer junto aos autos).
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o acórdão pelas razões que sumariamente passo a expor.
1. A Constituição prevê, no seu artigo 84º, que o Estado, as regiões autónomas e
as autarquias locais exercem poderes de domínio público sobre certas categorias
de bens, determinando ainda que cabe ao legislador ordinário identificar os bens
que integram o domínio público de cada uma dessas pessoas colectivas públicas, e
definir o regime, as condições de utilização e os limites desse poder público.
Esta tarefa, tal como se reconhece no acórdão, cabe na reserva relativa de
competência da Assembleia da República, por força da alínea v) do n.º 1 do
artigo 165º da Constituição, e o seu exercício não pode ser autorizado às
regiões ? alínea b) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição. Quanto a estas,
prevalece, como impõe o n.º 1 do artigo 227º da Constituição, a disciplina
fixada nos estatutos político-administrativos que são, por excelência, os
diplomas conformadores das competências regionais que a Constituição não regula
expressamente.
Ora, o artigo 144º do Estatuto da Madeira integrou no domínio público da região
os bens submetidos ao domínio público do Estado, com ressalva dos afectos à
defesa nacional e a serviços públicos não regionalizados não integrantes do
património cultural, excepções que se compreendem pela sua conexão com o
exercício da soberania e, por isso, excluídas do âmbito regional. A própria
noção de domínio público pressupõe um requisito de inalienável interesse público
relativo ao bem em causa, e a submissão a um regime de direito público, pelo que
a disciplina desse regime deve obrigatoriamente respeitar tais requisitos, sob
pena de frustrar o desígnio constitucional relativo à obrigatória existência de
um conjunto de bens integrados no domínio público. Por essa razão, isto é, em
virtude de a Constituição impor o exercício de poderes públicos dominiais quanto
a uma determinada classe de bens, deve entender-se que ao legislador ordinário
está vedado não só extinguir essa realidade, como dar-lhe uma configuração tal
que desfigure o carácter próprio da dominialidade.
É à região que incumbe praticar os actos de administração dos bens integrados no
seu património (alínea h) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição), incluindo,
como não pode deixar de ser, os que integram o domínio público regional. No
entanto, escapa-lhe competência para alterar o regime da dominialidade quer no
que toca à disciplina jurídica do poder público em causa, quer na designação dos
bens sujeitos ao domínio público. Deve, com efeito, aceitar-se que tal
disciplina jurídica, em razão da sua natureza constitucional, deve ser uniforme
nos seus traços essenciais quanto a todo o domínio público do Estado, das
regiões autónomas, ou das autarquias locais; por outro lado, se não havia razões
fundadas em especificidade regional que permitissem admitir uma especial
configuração desse regime jurídico na Madeira, o certo é que, hoje, o artigo 40º
da Estatuto da Madeira, em conjugação com a alínea a) do n.º 1 do artigo 227º da
Constituição, não consente o exercício de um tal poder legislativo, inscrito,
além do mais, em área de reserva relativa de competência da AR.
Assim, apesar de a Assembleia da República ter feito incluir o domínio público
do Estado no domínio público regional, através do artigo 144º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, tal transferência não
habilita a Região a alterar o regime jurídico da dominialidade, nem a modificar
a classificação dos bens nela incluídos. É todavia seguro, pelas razões já
apontadas, que lhe cabe exercer os poderes de administração e gestão desse
património e que a via pela qual a Região exerce tais poderes de administração
pode apresentar uma feição não uniforme, designadamente pela sua entrega a
entidades públicas ou privadas, através de instrumentos jurídicos diversificados,
desde que se mostre garantido o essencial da dominialidade.
Por estas razões entendo que a norma regional em apreço, ao autorizar a
desafectação dominial de bens incluídos no domínio público ? ainda que regional
? e a sua posterior integração no património de uma sociedade comercial, ofende
o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição, na sua versão
contemporânea, mas, ao contrário do que se afirma no acórdão, não viola a 'garantia
constitucional do domínio público do Estado'.
2. Discordo ainda da delimitação do pedido, na parte em que se concluiu pela não
sindicabilidade das Resoluções n.ºs 190/2004 e 778/2005 do Governo Regional; em
meu entender, tais diplomas apresentam claramente natureza normativa, ainda que
administrativa, pelo que não estão fora da fiscalização que a alínea f) do n.º 2
do artigo 281º atribui ao Tribunal Constitucional.
Carlos Pamplona de Oliveira
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