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Processo n.º 1063/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
I. RELATÓRIO
1. A., foi condenado pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo
artigo 181.º do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €
10,00, no total de € 500,00, bem como ao pagamento ao demandante B. da quantia
de € 1.500,00, a título de indemnização por danos morais.
Desta decisão interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa,
invocando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo
134.º do Código de Processo Penal, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da
Constituição, quando interpretado no sentido de que a testemunha pode recusar-se
a depor, apesar de ter sido o arguido quem a arrolou.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Setembro de 2007, decidiu
rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.
2. O arguido interpôs recurso deste acórdão, nos termos de fls. 527/528 e 533, o
qual foi admitido para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da norma do
artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido que
permita a sua aplicação sendo a testemunha arrolada pelo arguido, por violação
do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
3. Nas respectivas alegações, o recorrente sustenta as seguintes conclusões:
«1. O ora recorrente entende que a norma ínsita no CPP art.134.º, n.º 1. al. a),
sempre que interpretada de forma que permita a sua aplicação quando a testemunha
é arrolada pelo arguido, é inconstitucional por violação do princípio consagrado
na CRP art.32.º, n.º 1.
2. Deste modo, a lei pretende evitar que a testemunha se debata no dilema que se
lhe poderia apresentar e que se traduz por este binómio: dever de lealdade à
verdade; e dever de lealdade aos afectos.
3. Simplesmente, esta teleologia, no caso em apreço, e pelas mesmíssimas razões
válidas para o quod plerumque accidit, impõe solução diferente.
4. Uma vez que é propósito do legislador que a testemunha não tenha de escolher
entre faltar à verdade para não trair o arguido; ou prejudicar este por amor à
verdade, não faz sentido que a testemunha se possa recusar a depor quando é
arrolada pelo arguido.
5. É clara a mensagem do arguido, nestas circunstâncias: as declarações
verdadeiras por parte da testemunha só irão beneficiá-lo; e o prejuízo só poderá
surgir do silêncio da mesma.
6. Consentir que a testemunha arrolada pelo arguido se recuse a depor, ao abrigo
de uma regalia prevista para o comum dos casos, é o mesmo que autorizá-la a
negar-se ao cumprimento do dever geral de testemunhar, o que repugna porque só o
arguido sabe o que tem a ganhar com o depoimento da testemunha por ele arrolada.
7. Isto permite a completa subversão da ratio legis.
8. A testemunha não arrolada pelo arguido pode achar-se dividida entre o dever
de lealdade à verdade e o dever de lealdade aos afectos.
9. Mas já a testemunha arrolada pelo arguido não tem de sentir estes escrúpulos
porque o arguido é que sabe as razões, que tinha, quando a arrolou.
10. Nestes casos, deixar a testemunha decidir o que é melhor para o arguido, é
pôr o destino deste nas mãos daquela.
11. Imagine-se esta situação bem possível: A testemunha sabe que um seu
depoimento verdadeiro vai beneficiar o arguido. No entanto, não quer isso. Mas
também não envereda pela mentira, com temor das sanções penais que possa vir a
sofrer. Perdida, acaba por se agarrar à faculdade concedida por lei.
12. Eis aqui consumada a alegada subversão da finalidade da norma.
13. Norma que existe para sossego da testemunha dividida entre dois deveres
ponderosos e atendíveis, mas nunca como valha couto de um comportamento
censurável.»
O Ministério Público contra-alegou, concluindo pela não inconstitucionalidade da
norma do artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada
no sentido de que a sua aplicação não é afastada no caso de a testemunha ter
sido indicada pelo arguido, e pela improcedência do recurso.
O assistente B. não contra-alegou.
Cumpre decidir:
II. FUNDAMENTOS
4. O artigo 134.º do Código de Processo Penal, na redacção aplicável aos autos
(anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 27 de Agosto, que
aditou na alínea b) do n.º1 a expressão “sendo do mesmo ou de outro sexo”)
tinha o seguinte teor:
Artigo 134.º
(Recusa de parentes e afins)
1. Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao
segundo grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido, ou quem com ele conviver ou
tiver convivido em condições análogas às do cônjuge, relativamente a factos
ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
2. A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de
nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste
de recusarem depoimento.
Em análise está, apenas, a norma do n.º 1 deste artigo, mais
precisamente da respectiva alínea a), enquanto permite a recusa das pessoas nele
mencionadas a depor como testemunhas, quando tenham sido arroladas pelo arguido.
No caso recusou-se a depor uma irmã do arguido, por este arrolada como
testemunha, num processo por crime de injúrias em que é ofendido e assistente um
outro seu irmão.
Entende o recorrente que uma tal faculdade de recusar a prestação de
depoimento, que é concedida à testemunha que se debata entre o dever de lealdade
à verdade e o dever de lealdade aos afectos, não faz sentido quando a mesma é
arrolada pelo próprio arguido e viola os seus direitos de defesa em processo
penal. Um tal entendimento ancora-se na ideia de que é ao arguido que compete
decidir qual a melhor estratégia a seguir na sua defesa e que é ele quem sabe o
que tem a ganhar com o depoimento da testemunha por si arrolada.
Outro foi o entendimento do acórdão recorrido, que concluiu pela não
inconstitucionalidade da norma em apreço, considerando estar em causa um direito
pessoal da testemunha por esta livremente exercido, estando justificada a
restrição ao direito de defesa do arguido pela necessidade de salvaguardar a
“dignidade da pessoa humana”.
Neste sentido, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
«[…]
8 – Sustenta também o arguido que o facto de a sua irmã, C., ter feito uso do
direito que lhe era conferido pelo artigo 134º, n.º 1, alínea a), do Código de
Processo Penal é ilegal por a testemunha ter sido por si arrolada, defendendo
que essa recusa importa uma inadmissível limitação do seu direito de defesa.
Entende que uma interpretação daquela norma que confira à testemunha esse
direito numa situação como a presente é inconstitucional por violação das
garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Salvo o devido respeito, entendemos que o direito conferido à testemunha pela
mencionada disposição legal é de natureza pessoal, razão pela qual só à própria
compete decidir sobre o seu exercício. Daí que não se justifique qualquer
interpretação restritiva da mesma.
A limitação ao direito de defesa que daí pode, eventualmente, decorrer é
constitucionalmente justificada pela necessidade de salvaguardar a dignidade da
pessoa humana (artigo 18º, n.º 2, da Constituição).
Tal norma, na indicada dimensão, não padece, por isso, de qualquer
inconstitucionalidade material.
[…]»
5. O artigo 134.º do Código de Processo Penal de 1987 surgiu na sequência da
supressão da distinção entre as figuras de testemunha e de declarante, que
existia no direito anterior (cf. artigo 214.º e segs. do Código de Processo
Penal de 1929), e do alargamento do princípio geral de que todas as pessoas
poderão depor como testemunha, com exclusão dos interditos por anomalia
psíquica, nos termos do artigo 131.º, e daqueles que estão legalmente impedidos
de prestar testemunho, em função do seu posicionamento processual (os arguidos,
assistentes e partes cíveis) ou por estarem sujeitos ao “dever de segredo”.
Insere-se num conjunto de situações típicas (cf. artigos 132.º, n.º 2, 134.º e
135.º) que, em derrogação do dever jurídico de prestar declarações que incumbe
às testemunhas [cf. artigo 132.º n.º 1, alínea d); dever penalmente censurado no
artigo 360º do Código Penal, em caso de falso testemunho], consagram o direito a
recusar depoimento (aliás, em algumas das hipóteses a recusa é um dever
profissional ou deontológico).
Essas situações de legitimação da recusa a depor assentam em razões ou
fundamentos não inteiramente sobreponíveis, se bem que relativamente próximos.
«Trata-se, inter alia e fundamentalmente de: prevenir formas larvadas e
indirectas de auto-incriminação; preservar a integridade e a confiança nas
relações de maior proximidade familiar; proteger o alargado espectro de valores
individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da
violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes,
como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente
envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de
escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de
clientes» (M. Costa Andrade, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código
de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter
sido diferente, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3950,
pág. 280).
A hipótese que agora se contempla, a possibilidade de recusa a prestar
depoimento por parte dos familiares, cônjuge e afins do arguido (bem como por
parte do ex-cônjuge de quem com ele conviver ou tiver convivido em condições
análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento
ou a coabitação), tem o propósito imediato de evitar situações em que tais
pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade,
contribuírem para a condenação do seu familiar.
Entendeu aqui a lei que o interesse público da descoberta da verdade no processo
penal deveria ceder face ao interesse da testemunha em não ser constrangida a
prestar declarações. Mas, além de pretender poupar a testemunha ao conflito de
consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos
imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos, o
legislador quer proteger as “relações de confiança, essenciais à instituição
familiar”. Como salienta Medina de Seiça (Comentário ao Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1996, “Prova Testemunhal. Recusa de
Depoimento de Familiar de um dos Arguidos em Caso de Co-Arguição”, na Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, Fasc. 3º, pág. 492 e 493):
«Com o direito de recusa evidencia-se que, e digamo-lo com a conhecida fórmula
do Supremo Tribunal Alemão, «não é nenhum princípio da ordenação processual que
a verdade deva ser investigada a todo o preço» (…). De facto, embora a
descoberta da verdade constitua finalidade essencial de todo o processo penal
(…) e elemento fundamental para uma correcta administração da justiça, a qual,
enquanto vector essencial à manutenção da comunidade juridicamente organizada,
representa uma vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito (…), a
eventual perda de prova com possível relevância para a descoberta da verdade
será de aceitar nos casos em que a sua aquisição se traduza na lesão de um bem
mais valioso. É o que sucede com o privilégio constante do artigo 134.°, n.º 1,
do CPP: a lei renuncia ao possível conhecimento probatório da testemunha, ou
melhor, renuncia aos meios de constrangimento destinados a obter o depoimento,
deixando nas mãos da testemunha a decisão de prestar declarações (… ). E para
que tal decisão seja efectivamente fruto de uma escolha livre e esclarecida a
lei impõe às entidades competentes para receber o depoimento, uma vez verificado
o laço familiar legalmente consignado, a obrigação de advertir a testemunha,
«sob pena de nulidade, da faculdade que lhes assiste de recusar o depoimento»
(artigo 134.°, n.º 2 do COO) (…).
Com o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não
só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha
caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar
seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as “relações de confiança,
essenciais à instituição familiar”»
Esta é também a opinião de Costa Andrade que conclui não haver razões para se
afastar da teoria tradicional alemã na parte em que adscreve o primado no
programa de tutela destas proibições de prova aos interesses pessoais da
testemunha individualmente considerada ou na teia das relações de confiança e de
solidariedade que a instituição familiar oferece (M. Costa de Andrade, Sobre as
Proibições de Prova …, ob. cit. pág. 75 a 78):
«Não faltam autores a interpretar determinadas proibições de prova como
obedecendo ao propósito de excluir meios de prova susceptíveis de pôr em perigo
a própria verdade. Neste sentido devem, segundo por exemplo Gössel – e ao
arrepio do que vem sendo o entendimento da jurisprudência e a opinião
maioritária dos autores – compreender-se proibições de prova como as que
resultam dos artigos 132.º, n.º 2 (Deveres gerais das testemunhas) e 134.º
(Recusa de parentes e afins) do CPP.
Na Alemanha, e face ao § 55 da Strafprozessordnung (StPO) – de conteúdo
sensivelmente idêntico ao disposto no n.º 2 do artigo 132.º do CPP – a
jurisprudência e a doutrina dominante inclinam-se para o primado da tutela dos
direitos ou posições da própria testemunha. De acordo com o Tribunal Federal,
tratar-se-á, em primeira linha, de poupar à testemunha o conflito e o embaraço
de ter de depor contra si própria [Por todos, Schäfer, in Löwe/Rosenberg,
Einleitung, Cap. 14, Rn.54]. Na mesma linha se tem, em geral, interpretado e
aplicado o § 52 da StPO alemã, no fundamental correspondente ao artigo 134.º da
lei processual portuguesa e que reconhece à testemunha o direito de recusar
depoimento contra parentes ou afins. Para além de poupar à testemunha o conflito
de consciência, este preceito visará igualmente salvaguardar as relações de
confiança, essenciais à instituição familiar, aqui tratada como autónomo bem
jurídico, merecedor de tutela. «O direito de recusa – escreve Schäfer – não é
apenas outorgado por causa do conflito de consciência da própria testemunha mas
também para protecção da família do acusado. Nesta medida, a esfera jurídica do
acusado é directamente atingida quando, por falta do esclarecimento legalmente
exigido, uma testemunha sem formação jurídica não pode decidir livremente sobre
se deve ou não fazer uso do seu direito ao silêncio» [Schäfer, ob. cit., Rn 51].
Na mesma direcção, acentua Grünwalg que este regime obedece à «ideia de que
ninguém deve ver-se obrigado a contribuir para levar os seus familiares à
prisão». Acresce a «necessidade que a pessoa tem de confiar nos seus parentes
mais próximos, sem ter de recear que o Estado» a obrigue a depor contra eles.
«Nesta medida – prossegue Grünwald – protege-se também o interesse da comunidade
na existência de relações de confiança entre os membros da mesma família»
[Grünwald, Juristenzeitung 1966, pág. 407]. Na síntese do tribunal Federal
[Bundesgerichtshof,St 11, 216], o direito da testemunha ao silêncio tem
subjacente «a consideração solícita (schonenden Rücksicht) pelos laços
familiares que ligam a testemunha e o acusado». Esta interpretação doutrinal e
jurisprudencial não deixa de enfatizar ao mesmo tempo o relevo da verdade
material. Só que lhe adscreve um plano secundário, reconhecendo-lhe, por isso,
uma tutela meramente reflexa.
Afastando-se deste entendimento tradicional e dominante, sustenta Gössel que só
na perspectiva do primado da verdade material poderá alcançar-se uma
interpretação correcta do direito de recusa de depoimento quer contra si próprio
quer contra parentes e afins (respectivamente, arts. 132.º, n.º 2, e 134.º do
CPP) [Cf., do autor, Neue Juristische Wochenschrift 1981, págs. 653 e 2219;
Goltdammer’s Archiv für Strafrecht 1991, págs. 488 e segs., e Bockelmann-Fs.,
pág. 805. Já antes e no mesmo sentido, Eb. Schmidt, Juristenzeitung 1958, págs.
599 e segs.]. Tanto num caso como noutro, argumenta Gössel, uma «consideração
mais realista» obriga a concluir que estes «preceitos legais só podem ser vistos
como preordenados a evitar, no interesse da verdade, depoimentos marcados pelo
conflito» Neue Juristische Wochenschrift 1981, pág. 653; no mesmo sentido,
Goltdammer’s Archiv für Strafrecht 1991, págs. 489 e segs.].
Não é nosso propósito assumir nesta sede uma posição definitiva sobre a
controvérsia. Sempre declinaremos a nossa convicção quanto ao bem fundado da
concepção tradicional na parte em que adscreve o primado no programa de tutela
destas proibições de prova aos interesses pessoais da testemunha,
individualmente considerada (art. 132.º, n.º 2), ou na teia das relações de
confiança e solidariedade que a instituição familiar oferece [Não cremos, em
qualquer caso, que possa considerar-se definitivo o argumento de GÖSSEL segundo
o qual a doutrina dominante não logra explicar o facto de ao parente ou afim
assistir a faculdade de renunciar ao direito de recusa de depoimento, dessa
forma atingindo a família ou a esfera jurídica do arguido (Bockelmann-Fs., pág.
805). O argumento é, pelo menos, neutralizado pela consideração invocada, v. g.,
por Grünwalg, contra a tese do primado da procura da verdade. «Pois, refere o
autor, a verdade é que em caso de depoimento feito livremente, ele não deixa de
ser recebido, apesar do seu possivelmente escasso valor probatório»
(Juristenzeitung 1966, pág. 497). Para uma crítica da ideia da procura da
verdade como referente material geral das proibições de prova, Amelung,
Informationsbeherrschungsrechte, págs. 14 e segs.]. Uma interpretação cujo texto
do direito português se nos afigura claramente reforçado pelo teor dos
pertinentes dispositivos legais.»
6. Aceite a ideia de que a razão de ser da norma é, não só a de obstar ao
conflito de consciência que resultaria para a testemunha de ter de responder com
verdade sobre os factos imputados a um seu familiar ou afim, mas também e
sobretudo proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à
instituição familiar – verdadeiramente, é esta a sua raiz última –, importa
agora perguntar se este “direito ao silêncio” concedido à testemunha é
compatível com as garantias de defesa do arguido em processo criminal quando é
ele quem requer o depoimento da testemunha. De notar que não se trata de um meio
de prova que seja rejeitado por razões heurísticas (não se trata de uma situação
de incapacidade para testemunhar, de inidoneidade probatória, de uma genérica
configuração de tais testemunhos como não credíveis) tanto que, se a testemunha
optar por depor, as suas declarações ficam simplesmente sujeitas à regra da
livre valoração da prova.
6.1. O artigo 134.º do Código de Processo Penal concede, como se referiu, às
pessoas mencionadas no seu n.º 1 a faculdade de recusarem o depoimento sem
incorrerem em qualquer sanção.
É uma faculdade que a lei processual penal rodeia de cautelas destinadas a
permitir o seu efectivo exercício, impondo à entidade competente para receber o
depoimento o dever de advertir tais pessoas dessa faculdade, sob pena de
nulidade (cf. n.º 2). Com a imposição desta advertência (à semelhança do que
ocorre com dispositivos homólogos de outros ordenamentos: §52 da StPO germânica;
art.º 199 do Codice di Procedura Penale, art.º 416 da Ley de Enjuiciamento
Criminal) preocupou-se o legislador em assegurar que a opção da testemunha
decorra de uma decisão informada, pois só assim fica inteiramente salvaguardada
a faculdade – o direito ao silêncio – que, repete-se, lhe é conferida não só por
causa do seu íntimo conflito de consciência, mas também para protecção do mesmo
círculo familiar a que ela e o acusado pertencem.
Argumenta o arguido que a ele cabe avaliar a vantagem para a sua defesa na
audição do seu familiar ou afim e que, ao ser indicada pelo próprio arguido, não
tem a testemunha que sentir-se dividida entre o dever de lealdade à verdade e o
dever de lealdade aos afectos.
Mas as coisas não têm essa simplicidade.
Sendo embora uma faculdade concedida à testemunha em função da sua relação com o
arguido, não é pela circunstância de o arguido “autorizar” o seu familiar ou
afim a depor que fica inteiramente afastado o constrangimento da testemunha
colocada entre o dever de responder com verdade às perguntas que lhe venham a
ser dirigidas (artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal) e o
impulso afectivo ou o escrúpulo moral ou social em não contribuir para a
condenação do seu parente, cônjuge ou afim. Neste domínio prevalecem sentimentos
e representações pessoais e só a testemunha sabe o que teme ser chamada a dizer
e só ela pode avaliar, nesse plano moral ou sócio-afectivo, o que (ab immo
pectore) receia poder resultar do que tiver de dizer contra o arguido e é
susceptível de condicionar a sua decisão de prestar ou de recusar o depoimento.
Pode ainda acrescentar-se que, obrigar a testemunha a prestar depoimento quando
é indicada pelo arguido, pode reverter numa forma de pressão sobre a testemunha
que, não querendo contribuir para a condenação do seu familiar, pode sentir-se
compelida a mentir. Uma testemunha particularmente sensível àqueles valores que
estão na base do regime de dispensa pode sentir-se coagida a faltar à verdade
por não se conseguir libertar do íntimo conflito afectivo ou da pressão
familiar, apesar de ser o arguido o sujeito processual que a coloca em tal
dilema.
6.2. É certo que no outro braço da ponderação está o direito à prova que, em
processo penal tem, quanto ao arguido, uma dimensão qualificada, como corolário
da imposição constitucional de que o processo assegure todas as garantias de
defesa.
Efectivamente, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição contempla a garantia de que
“o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o
recurso”, sendo entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência
constitucional que esta fórmula condensa não só todas as garantias de defesa que
estão contempladas nos demais números do mesmo artigo, como “também serve de
cláusula geral englobadora de todas as garantias de defesa que, embora não
explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção
global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal” (cf.
J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, Volume I, p. 516).
Como se disse no Acórdão nº 61/88 (publicado no Diário da República, II Série,
de 20 de Agosto e 1988):
“Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e
«residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes
do mesmo artigo - e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um
carácter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se proclama aí o
próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo
essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um
eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em
casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cfr.
Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os tribunais, p.
51; e acórdão nº 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da
República, I série, de 31 de Dezembro de 1979).
A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por
onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio
da defesa, para além das consignadas nos nºs 2 e seguintes do artigo 32º - será
a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law,
devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas
processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento
inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr.
Acórdão nº 337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de
Dezembro de 1986)'.
Tem de reconhecer-se que o direito de a testemunha recusar a
prestação de declarações mesmo quando indicada pelo arguido – esta extensão do
que podemos designar como segredo familiar – se materializa, em último termo,
numa restrição de uma das dimensões ou desdobramentos da garantia de defesa em
processo criminal conferida pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que é o
direito à prova, entendido como o poder de um sujeito processual representar ao
juiz a realidade dos factos que lhe é favorável e de exibir os meios
representativos desta realidade (Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Estudos Sobre
Direitos Fundamentais, 1.ª ed., pág. 170). Será essa limitação
constitucionalmente suportável, em homenagem à protecção da dignidade ou da
liberdade de conformação da personalidade da testemunha e da tutela da
instituição familiar?
O direito de defesa do arguido em processo penal, não assume um carácter
absoluto. Desde logo, e no que respeita à matéria de prova, o direito de defesa
sofre as limitações decorrentes das proibições de prova nos termos do n.º 8 do
artigo 32.º da Constituição, que considera nulas as provas obtidas mediante
tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva
intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações, o que impede a valoração da prova obtida por estes meios,
mesmo no interesse do arguido.
Como já se disse, o fundamento último da legitimidade da recusa a
depor por parte das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 134.º do CPP situa-se
no interesse da família enquanto elemento fundamental da sociedade e espaço de
desenvolvimento da personalidade dos seus membros (n.º1 do artigo 67.º da CRP),
cuja importância supera o interesse da punição dos culpados. A possibilidade de
um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a
confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido,
que é o cimento da coesão desse elemento básico da sociedade.
Por este ângulo, o que a regra do n.º 1 do artigo 134.º protege, em
última linha, é a confiança e a espontaneidade inerentes à relação familiar,
prevenindo (enquanto desenho do sistema jurídico relativo a esse ambiente
privilegiado no qual as relações e as trocas de informação se devem desenvolver
sem receio de aproveitamento por terceiros ou pelo Estado) e evitando (quando,
perante um concreto processo, o risco passa de potencial a actual) que sejam
perturbadas pela possibilidade de o conhecimento de factos que essa relação
facilita ou privilegia vir a ser aproveitado contra um dos membros. E
visa também – aliás, é essa a sua justificação de primeira linha – poupar a
testemunha ao angustioso conflito entre responder com verdade e com isso
contribuir para a condenação do arguido, ou faltar à verdade e, além de
violentar a sua consciência, poder incorrer nas sanções correspondentes.
Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das
vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no
n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade
que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também
consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do
postulado básico da dignidade da pessoa humana (Embora não pareça, como concluiu
o acórdão recorrido e afirma alguma doutrina, que possa ancorar-se directamente
na tutela da intimidade da vida privada. Os factos podem não ter outra ligação à
testemunha senão a circunstância de serem imputados ou interessarem à definição
da responsabilidade penal de um seu familiar (lato sensu) e mesmo assim existe
direito ao silêncio).
Sucede que, ainda que seja o arguido a indicar o seu familiar, cônjuge ou afim
como testemunha, o referido conflito de consciência não deixa de ter a
intensidade que justifica a faculdade de recusa a depor para não colocar o
sujeito perante exigências contraditórias. E, na generalidade dos casos, o
exercício do direito ao silêncio por parte da testemunha indicada, redundando
sempre em alguma compressão do direito de defesa do arguido que a tenha
arrolado, não atinge esse direito de forma intolerável, desproporcionada ou
manifestamente opressiva este direito.
Com efeito, no processo penal não impende sobre o arguido qualquer ónus
probatório. O arguido goza da presunção de inocência, o que, articulado com o
princípio in dubio pro reo, se traduz numa imposição dirigida ao juiz no sentido
de se pronunciar de forma favorável à defesa em todas as situações de incerteza
quanto a factos determinantes para a decisão da causa.
É certo que não pode excluir-se a ocorrência de situações extremas em que só o
familiar tenha conhecimento de factos juridicamente relevantes para a
inexistência ou atenuação da gravidade do crime, para a não punibilidade do
arguido ou para a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis
(cfr. artigo 129.º do CPP). Porém, a essas situações particulares corresponderá
uma dimensão qualificada da norma de que não pode falar-se numa situação como a
presente em que a testemunha é apenas mais uma de entre as que foram arroladas
pelo arguido e que foram ouvidas, nada se tendo alegado por forma a indiciar que
o seu silêncio comprometa inexoravelmente o direito de defesa.
Deste modo, há, pois, que concluir que a norma do artigo 134.º, n.º 1, alínea a)
do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de permitir a recusa a
depor por parte da irmã do arguido, arrolada por este como testemunha, tem um
fundamento razoável, não atingindo, de forma intolerável, desproporcionada ou
manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso, não havendo
um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, o Tribunal
considera que a norma em causa não viola a garantia de que o processo criminal
assegura todas as garantias de defesa, consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da
Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e
condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e
cinco) UCS.
Lisboa, 25/3/2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
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