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Processo nº 580/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. e marido, B., interpuseram, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º
da Lei nº 28/82, recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa que, julgando improcedente o recurso de apelação por eles
apresentado, manteve a decisão proferida, em Fevereiro de 2006, pelo Tribunal
Judicial de Oeiras. Tal decisão declarara denunciado, a pedido do senhorio – que
afirmara necessitar do locado para sua própria habitação –, o contrato de
arrendamento outorgado por A., condenando em consequência os ora recorrentes ao
despejo da casa que habitavam.
No recurso de apelação que interpuseram junto do Tribunal da Relação, alegaram
A. e marido que, encontrando-se o segundo «doente e incapacitado para o
trabalho», e «sofrendo uma incapacidade de 70%», seria ao caso aplicável o
disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano
(RAU), que prevê, como limitações ao direito de denúncia pelo senhorio,
situações de «invalidez», «incapacidade total para o trabalho» ou «deficiência
superior a dois terços» por parte do arrendatário; e que era inconstitucional,
por violação dos artigos 13º, 36º, 63º e 67º da CRP, a interpretação que a
decisão recorrida fizera da norma do RAU, interpretação essa segundo a qual
«[a]s circunstâncias referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU se
reportam, como tem sido decidido pelos tribunais, [só] ao inquilino e não ao seu
cônjuge». (fls. 797 dos autos).
2. À questão de constitucionalidade, assim suscitada, respondeu o Tribunal da
Relação de Lisboa:
«Seguindo agora as normas da Constituição da República Portuguesa que a
recorrente invoca em sustento da sua tese.
Não acode violação de princípio constitucional da igualdade – art°13 da CRP, ao
distinguir-se aquilo que por opção legislativa foi tratado de diferente maneira.
Isto é, querendo o legislador limitar o senhorio no exercício da denúncia,
comparando a situação de necessidade daquele e do direito de propriedade que se
sobrepõe ao direito de locação, estabeleceu, com clareza, as circunstâncias em
que essa faculdade deve recuar, à luz dos interesses da pessoa do arrendatário,
pois que, afinal foi com ele que contratou, independentemente do seu estado
civil, contrato que, ademais, não carece da intervenção do cônjuge, em caso de
ser casado.
O argumento do litisconsórcio necessário dos cônjuges em acção de despejo tem na
génese a relevância do interesse comum ao casal e da própria restrição na
actuação de cada um dos cônjuges na relação jurídica do casamento, (veja-se o
exemplo paralelo nas acções dispositivas dos comproprietários) não servindo, por
conseguinte, para contextualizar a razão da interpretação do preceito em
análise.
O legislador é peremptório na sua opção legislativa, o contrato de arrendamento
para habitação é incomunicável ao cônjuge do arrendatário – art° 83 do RAU;
logo, aí se detecta razão bastante que justifica a diferenciação da pessoa do
arrendatário e do seu cônjuge no preceito ora em discussão, o art°107 do RAU.
Ora, reconhecendo embora, a ampla tutela legal da família constituída com base
no casamento, e do seu tratamento como realidade jurídica autónoma e consequente
em múltiplas situações, não existe na situação do preceito em análise, motivo
que evidencie que outra foi a intenção do legislador; isto é, o legislador quis
distinguir, a idade, a invalidez e a incapacidade mas por referência à pessoa do
arrendatário, como limites ao exercício da denúncia.
Igualar, como pretende a recorrente, os efeitos da situação da arrendatária à
circunstância da pessoa do seu marido, constituiria, salvo melhor opinião,
arbítrio do intérprete, derrubando a previsão de diferenciação de tratamento
jurídico, que não se ancora em fundamento razoável.
Hipotizando a situação da família constituída à margem do vínculo do matrimónio,
enfrentaríamos nova perplexidade na pretendida extensão do regime de limites do
art°107 do RAU, pois, apesar de a Constituição da República Portuguesa
reconhecer a família para além do casamento, e a lei ordinária atribuir efeitos
jurídicos paralelos às uniões de facto, seria, mais uma vez, inviável a
interpretação extensiva que a recorrente propõe como solução justa para o
litígio.
Por fim, noutra perspectiva, não poderá considerar-se violação do disposto no
art° 65 da Lei Fundamental, a propósito do direito à habitação, como direito
fundamental de natureza social, cuja efectividade está dependente da “ reserva
do possível”.
De igual modo, não cremos que, a interpretação do preceito propugnada na decisão
em recurso conflitue com o princípio – dever da protecção aos portadores de
deficiência a que se refere o art° 71, n° 2 da CRP, visto que, a prossecução
dessa obrigação do Estado há-de obter-se à custa de políticas adequadas que não
podem passar por contender com direitos de terceiro expressamente consagrados na
lei.» (fls. 941-43 dos autos)
Foi portanto desta decisão – que assim aplicou norma cuja
inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo – que recorreram
A. e marido. Nos termos do requerimento de recurso apresentado (fls. 953 dos
autos), pediram os recorrentes que o Tribunal apreciasse a constitucionalidade
da norma contida na alínea a) do nº 1 do RAU, quando interpretada no sentido «em
que apenas o cônjuge que outorgou o contrato de arrendamento pode invocar as
circunstâncias previstas no citado normativo». No seu entendimento, tal
interpretação da norma seria inconstitucional, por violação dos princípios
decorrentes dos artigos 13º, 36º, 63º (por lapso: referiam-se ao artigo 64º) e
67º da lei Fundamental.
3. Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, nele apresentaram
alegações recorrentes e recorrida.
Disseram os primeiros, essencialmente, que a norma aplicada pelo Tribunal da
Relação, para além de «colocar direitos e situações de vida pendentes de acasos
do destino de modo aleatório», seria antes do mais lesiva do princípio da
igualdade contido no artigo 13º da CRP. Ao entender que as circunstâncias
pessoais (i.a. invalidez e incapacidade para o trabalho), previstas pelo RAU
como limitações ao direito do senhorio de denúncia do contrato de arrendamento,
seriam apenas aquelas que afectassem a pessoa do inquilino e não o seu cônjuge,
a referida norma ou interpretação normativa estaria, afinal, a eleger como
«elemento diferenciador da qualificação jurídica» um «acto» que seria «de relevo
mínimo» (ou seja, a outorga do contrato de arrendamento por apenas um dos
cônjuges), pelo que de tal interpretação normativa decorreria a criação «de uma
situação profundamente desigual para quem é igual».
Além disso – e por estar em causa a casa de morada de família – alegaram ainda
os recorrentes que a norma, com a interpretação que fora aplicada, lesaria ainda
os princípios da igualdade entre os cônjuges e da direcção conjunta da família,
inscritos no artigo 36º da CRP; os deveres (do Estado e da sociedade) de
protecção da família, inscritos no artigo 67º; e ainda – por ocorrer in casu
incapacidade de um dos cônjuges – o direito à protecção da saúde, decorrente do
artigo 64º (por lapso, referiu-se aqui o artigo 63º da CRP, relativo à segurança
social).
A recorrida contra-alegou, invocando a não violação, in casu, do princípio da
igualdade. Quanto à eventual lesão de outros direitos fundamentais – como o
direito à segurança social, à habitação e à protecção da família – sustentou
basicamente que, sendo aqueles direitos a prestações que reclamam, por parte do
Estado, a adopção de políticas públicas destinadas à sua concretização, a
adopção de tais políticas por parte do legislador não poderia deixar de ter em
conta a necessária conciliação entre os bens jurídicos protegidos por tais
direitos e os bens protegidos por outros princípios constitucionais, entre os
quais se incluiria a protecção devida à propriedade do senhorio.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
4. A norma sob juízo
4.1. A dado passo das suas alegações, requerem os recorrentes ao Tribunal que,
«por ser este o Tribunal de recurso», conheça de factos que, no seu entender,
estariam «assentes» e não teriam sido conhecidos pelo Tribunal da Relação, de
modo a aplicar ao caso «a norma constante do artigo 107º, nº 1), alínea b) do
RAU.» (fls. 1000 dos autos)
Diz a Constituição da República, no artigo 221º, que o Tribunal Constitucional é
o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de
natureza jurídico-constitucional. Por isso mesmo, nos processos de fiscalização
concreta, os recursos [para o Tribunal] que sejam interpostos de decisões de
tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento na sua
inconstitucionalidade, ou de decisões que (como é o caso dos autos) apliquem
normas cuja inconstitucionalidade tenha sido alegada durante o processo, são
recursos restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de
normas, consoante os casos (artigo 280º, nº 6 da CRP), questão essa que, aliás,
não pode ser outra que não a identificada no requerimento a que alude o artigo
75º-A da Lei nº 28/82.
Assim sendo – e situando-se o ‘pedido’ feito pelos recorrentes nas suas
alegações claramente fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal
Constitucional – o objecto do presente recurso restringe-se à questão colocada
no respectivo requerimento de interposição: é inconstitucional, por violação dos
princípios decorrentes dos artigos 13º, 36º, 67º e 64º da Constituição, o
disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano
(RAU), na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida?
4.2. Incluído na subsecção relativa às limitações ao direito de denúncia, e sob
a simples epígrafe «Limitações», dispõe do seguinte modo, o artigo 107º do RAU:
1. O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio
pelas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 69.°, não pode ser exercido quando no
momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias:
a) Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se
encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de
pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja
portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços;
b) Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa
qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e
decorrido na vigência desta.
2. Para efeitos da alínea b) do número anterior, considera-se como tendo a
qualidade de arrendatário o cônjuge a quem tal posição se transfira, nos termos
dos artigos 84.° e 85.°, contando‑se a seu favor o decurso do tempo de que o
transmitente já beneficiasse.
Como já se sabe, sustenta o recorrente que é inconstitucional, pelos motivos já
apontados, o disposto apenas na alínea a) do nº 1 do preceito, quando entendido
de forma a que as características pessoais aí enunciadas – e que consubstanciam
os fundamentos da excepção ao direito de denúncia do arrendamento por parte do
senhorio, sempre que este necessite do prédio para sua habitação – valham apenas
para quem outorgou o contrato de arrendamento, e não sejam, portanto, extensivas
ao seu cônjuge.
Assim equacionada, a questão de constitucionalidade reporta-se a um elemento de
um sistema que, tendo entre nós raízes fundas, merece ser compreendido na sua
globalidade.
O «sistema», que foi o que durante décadas inspirou o nosso regime jurídico do
arrendamento para habitação, resultou da conjunção de três ‘princípios’
essenciais. O primeiro – qualificado por alguns como sendo a matriz da chamada
legislação vinculística do arrendamento – não só constava do artigo 1095º do
Código Civil, na sua versão primitiva, como já decorria de legislação avulsa
emitida desde as primeiras décadas do século XX. Determinava o artigo 1095º do
Código Civil: «Nos contratos de arrendamento a que esta secção se refere
[arrendamentos de prédios urbanos] o senhorio não goza do direito de denúncia,
considerando-se o contrato renovado se não for denunciado pelo arrendatário nos
termos do artigo 1055º». O artigo 1055º atribuía tanto a locador quanto a
locatário o direito de denúncia do contrato, que podia ser exercido sem qualquer
fundamento, uma vez cumpridos os requisitos formais, que aí se fixavam, de
comunicação prévia à outra parte. Da titularidade deste direito, e nos contratos
de arrendamento urbano, estava pois excluído o senhorio. Aí, a denúncia ad nutum
era – e era-o desde há décadas – um direito exclusivo do arrendatário.
A este primeiro «princípio» do «sistema – e primeiro, na ordem lógica das coisas
– veio o Código Civil acrescentar um outro. No artigo 1096º permitia-se, porém,
a denúncia fundamentada do contrato de arrendamento por parte do senhorio, sendo
que um dos fundamentos previstos era, justamente, o da «necessidade do prédio
para sua habitação ou para nele construir a sua residência». Mas também aqui não
inovava o Código: desde a década de cinquenta que se regulava, por lei, o
exercício do direito de denúncia, com este fundamento, do contrato de
arrendamento por parte do senhorio (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil
Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 1968, pp. 372 e ss.).
Entrada em vigor a Constituição de 1976 – e depois de um interregno agora de
recordação inútil, que durou de 1974 a 1976 – mantiveram-se no direito
infraconstitucional estes dois ‘princípios’, enquanto elementos estruturantes do
sistema de arrendamento urbano. Em 1979, porém, a lei (Lei nº 55/79, de 15 de
Setembro, artigo 2º) veio acrescentar ao «sistema» um outro dado: o direito de
denúncia do contrato de arrendamento por parte do senhorio, e fundamentado na
sua necessidade do prédio para habitação, nunca poderia ser exercido, caso o
inquilino tivesse 65 anos ou mais de idade (alínea a) do nº 1 do artigo 2º) ou
se mantivesse «na unidade predial há vinte anos nessa qualidade» (alínea b) do
nº 1). Desde essa altura que se deixou claro que, «[p]ara efeitos da alínea b)
…. [s]e considera como tendo a qualidade de inquilino o cônjuge a quem tal
posição se transfira» (itálico nosso).
Foi esta solução que, com algumas alterações – em que se contam, sobretudo a
previsão de condições de «invalidez» ou de «incapacidade para o trabalho» do
inquilino como limitações ao direito de denúncia por parte do senhorio
acrescentadas à previsão da idade (Lei nº 46/85, artigo 41º), e o alongamento do
prazo de manutenção do arrendatário no local arrendado de 20 para 30 anos – se
veio a manter na redacção do artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano (RAU),
aprovado pelo Decreto-Lei nº 321/B/90.
4.3. Não está agora em causa a questão de saber se este sistema de vinculismo
arrendatício, com raízes tão fundas entre nós, se manterá ainda, no seu núcleo
essencial, face às alterações introduzidas pela Lei nº 6/2006, de 27 de
Fevereiro, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU). A questão –
que se coloca sobretudo face ao disposto na alínea c) do artigo 1101º do Código
Civil, na sua versão actual – não é pertinente in casu, por força das
disposições conjugadas dos artigos 59º, nº1; 60º, nº 1, 26º nº 4 alínea a) e 28º
do NRAU. Pertinente é, no entanto, ponderar o seguinte.
Todo o paradigma vinculístico que acabámos de descrever – e que culmina com a
previsão das chamadas «limitações ao direito de denúncia» previstas no artigo
107º do RAU – foi densamente escrutinado pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional. Na verdade, o Tribunal disse, antes do mais, por que razão não
era inconstitucional a «matriz» do regime vinculístico, que vedava ao senhorio –
mas concedendo-a ao arrendatário – a possibilidade da denúncia ad nutum do
contrato de arrendamento (vejam-se, quanto a este ponto, e entre outros, os
Acórdãos nºs 151/92, 263/00, 570/01, 543/01, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Depois, o Tribunal disse também por que razão
não era inconstitucional a excepção a este princípio, fundada na necessidade,
por parte do senhorio, do prédio para habitação própria (veja-se, quanto a este
ponto, sobretudo o Acórdão nº 151/92, mas também o nº 405/00 e o 420/00).
Finalmente, o Tribunal disse por que razão não era inconstitucional a excepção à
excepção, ou seja, por que razão se deveria entender que não lesava a Lei
Fundamental a previsão das «limitações ao direito de denúncia», constantes por
último do artigo 107º do RAU (Acórdão nº 425º/87, DR, IIº Série, nº 3, 5-1-1988,
pp. 96-98).
Quanto ao primeiro ponto, o Tribunal demonstrou, essencialmente, a natureza não
arbitrária – porque racionalmente fundada numa ponderação possível das
diferenças – de um regime jurídico infraconstitucional que, preocupando-se
sobretudo com a manutenção da relação jurídica do arrendamento se fosse essa a
vontade do arrendatário, tratava desigualmente, nessa relação, senhorio e
inquilino. Quanto ao segundo ponto, o Tribunal disse que, havendo porém conflito
ou colisão entre dois direitos iguais – o direito à habitação do inquilino e o
direito à habitação do senhorio – , seria «inteiramente razoável» que se
«sacrificasse o direito do inquilino à habitação», por deter, nestes casos de
colisão, o senhorio, proprietário, um «melhor direito» (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 21º Vol., p. 658). Finalmente, e quanto às «limitações do
direito de denúncia» constantes do artigo 107º do RAU (sobretudo, as constantes
da sua alínea a)) disse o Tribunal que elas se justificavam, por se apresentar
aqui o inquilino «mais carecido [do que o senhorio] do amparo da lei», em
virtude de lhe não poder ser imposta uma «mudança de vida» que poderia levá-lo
«a sentir-se completamente perdido e desenraizado» (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 48º Vol., p. 231).
Relativamente à questão colocada nos autos – a de saber se não imporá a
Constituição uma «leitura» da alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU diversa da
adoptada pela decisão recorrida, por decorrer da CRP uma necessária extensão das
condições pessoais aí prescritas (enquanto fundamento de limitação do direito de
denúncia do senhorio) ao cônjuge do inquilino – não se pronunciou ainda o
Tribunal.
Sustenta o recorrente, antes do mais, que uma tal «leitura» – diversa da
adoptada pela decisão recorrida – não pode deixar de ser imposta pelo princípio
constitucional da igualdade.
Vejamos então.
5. O Princípio da Igualdade
5.1. Duas dimensões da igualdade
É conhecida, e abundante, a jurisprudência do Tribunal relativa à densificação
do princípio constitucional da igualdade.
Como sempre se tem dito – e como foi repetido, em síntese expressiva de todo o
acervo jurisprudencial anterior, pelo Acórdão nº 232/2003 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) – enquanto vínculo específico do poder
legislativo (pois só essa sua ‘qualidade’ agora nos interessa), o princípio da
igualdade não tem uma dimensão única. Na realidade, ele desdobra-se em duas
«vertentes» ou «dimensões»: uma, a que se refere especificamente o nº 1 do
artigo 13º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio
legislativo; outra, a referida especialmente no nº 2 do mesmo preceito
constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação. Em ambas
as situações está em causa a dimensão negativa do princípio da igualdade. Do que
se trata – tanto na proibição do arbítrio quanto na proibição de discriminação –
é da determinação dos casos em que merece censura constitucional o
estabelecimento, por parte do legislador, de diferenças de tratamento entre as
pessoas. Mas enquanto, na proibição do arbítrio, tal censura ocorre sempre que
(e só quando) se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um
qualquer fundamento racional bastante, na proibição de discriminação a censura
ocorre sempre que as diferenças de tratamento introduzidas pelo legislador
tiverem por fundamento algumas das características pessoais a que alude – em
elenco não fechado – o nº 2 do artigo 13º. É que a Constituição entende que tais
características, pela sua natureza, não poderão ser à partida fundamento idóneo
das diferenças de tratamento legislativamente instituídas.
Ao invocar, in casu, a violação do princípio da igualdade, os recorrentes estão
justamente a afirmar que, na norma sob juízo (lida, evidentemente, de acordo com
a interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida ) o legislador
estabeleceu diferenças de regime que não deveria ter estabelecido. A dimensão do
princípio que entendem ter sido lesada é, portanto, essa sua dimensão negativa
ou proibitiva, cuja dupla «vertente» se acabou de analisar. E – embora o não
digam expressamente – entendem ainda os recorrentes que no caso foi ofendida
tanto a proibição do arbítrio quanto a proibição da discriminação.
Com efeito, invoca-se, por um lado, a violação do princípio geral da igualdade,
contido no artigo 13º da CRP. Como decorre do relato atrás feito, a sustentar a
invocação está o argumento segundo o qual, na alínea a) do nº 1 do artigo 107º
do RAU, o legislador teria eleito, «como elemento diferenciador de qualificação
jurídica», um «acto de relevo mínimo» – a saber: o ter sido apenas um dos
cônjuges a outorgar o contrato de arrendamento – , pelo que dessa eleição
resultaria «uma situação profundamente desigual para quem é igual». O que se
contesta aqui, portanto, é a racionalidade ou razão de ser da «diferença»
instituída: ao afirmar que o fundamento da diferença é de «relevo mínimo», os
recorrentes estão justamente a perguntar ao Tribunal se será, ou não, arbitrária
a diversidade de regimes que decorrerá da alínea a) do nº 1 do artigo 107º do
RAU, na leitura que dele fez a decisão recorrida. O «parâmetro» constitucional
invocado é, pois, o decorrente do nº 1 do artigo 13º da CRP.
Contudo – e por outro lado – os recorrentes sustentam que, in casu, lesado terá
sido, também, o princípio de igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges,
decorrente do artigo 36º da CRP. Ora, não sendo tal princípio mais do que a
concretização de uma das proibições de discriminação contida no nº 2 do artigo
13º ( a saber: a proibição da discriminação em função do sexo), a sua invocação,
nos autos, revela que a outra dimensão do princípio da igualdade também foi
considerada. Do que aqui se trata é de determinar se o parâmetro constitucional
fixado no nº 2 do artigo 13º da CRP – e concretizado no artigo 36º enquanto
proibição de discriminação no seio da sociedade conjugal – terá sido, ou não,
lesado.
Assim sendo, importa distinguir.
5.2. Da igualdade enquanto proibição do arbítrio
Como já foi referido, sustenta o recorrente que a alínea a) do nº 1 do artigo
107º do RAU – na interpretação adoptada pela decisão recorrida – lesa desde logo
o princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio (artigo 13º, nº 1 da
CRP), por ter nela o legislador escolhido «como elemento diferenciador da
qualificação jurídica» um «acto de relevo mínimo», do qual resultaria «uma
situação profundamente desigual para quem é igual».
É claro, como também já foi visto, que o «acto de relevo mínimo» a que se refere
o recorrente é a outorga, por apenas um dos cônjuges (facultada nos termos do
artigo 1690º, nº 1 do Código Civil) do contrato de arrendamento. Alega-se não
ser este um fundamento razoável bastante para que se trate desigualmente o que é
igual. Mas não é claro qual é a situação de desigualdade que, no entender do
recorrente, daí resulta, e em que será tratado, sem razão e «de forma
profundamente desigual», quem é igual. A clarificação é, no entanto,
absolutamente necessária.
Com efeito, a norma sob juízo insere-se num «regime» – dotado enquanto tal de
unidade de sentido – que foi adoptado pelo legislador tendo em conta, não uma,
mas três «situações de desigualdade». Antes do mais, o legislador fixou estes
limites ao direito de denúncia do senhorio (quando exercido por necessidade do
prédio para habitação) porque partiu do princípio segundo o qual seriam aqui
desiguais a situação do senhorio e a situação do inquilino. Em segundo lugar, o
legislador fixou este regime – e não outro – porque partiu do princípio segundo
o qual, nas relações apenas entre inquilinos, seriam desiguais a situação
daqueles que apresentassem as características referidas na alínea a) do nº 1 do
artigo 107º do RAU e aqueles outros que estivessem na situação referida na
alínea b). (Na verdade – e como já se viu – para os segundos vale aquilo que, de
acordo com a interpretação normativa feita pela decisão recorrida, não vale para
os primeiros: diz o nº 2 do artigo 107º do RAU que, «[p]ara efeitos da alínea b)
do número anterior [se] considera como tendo a qualidade de arrendatário o
cônjuge a quem tal posição se transfira…»). Finalmente, o legislador fixou este
regime (ainda na interpretação que dele foi feita pelo tribunal a quo) porque
partiu do princípio segundo o qual, nas relações apenas entre cônjuges, e em
caso de idade, invalidez ou incapacidade de um deles, só o cônjuge arrendatário
mereceria a «protecção» conferida pelo sistema vinculístico do RAU.
O regime fundado na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU – a não ser
arbitrário, como alega o recorrente – só poderá vir a ser compreendido à luz de
todo este «sistema de diferenças»: o fundamento racional bastante que se procura
há-de justificar (ou não) este sistema, assim mesmo considerado. Ora, a verdade
é que todo ele partiu da consideração, por parte do legislador, de um ponto de
semelhança.
O ponto de partida da aplicação do que vem dispor o artigo 107º do RAU é o de
que senhorio e inquilino se encontram em situação semelhante no que respeita ao
direito à habitação constitucionalmente consagrado: ambos pretendem o imóvel
arrendado para sua habitação. O ‘bem’ pretendido é no entanto um bem escasso.
Como o imóvel é só um, e não poderá por isso ser usufruído por ambos
pretendentes em lapsos de tempo coincidentes, o exercício do direito à habitação
de um vem necessariamente excluir o direito à habitação do outro. Coube, por
isso, ao legislador a escolha entre dois ‘interesses’ conflituantes e que
merecem igual ponderação.
Como o Tribunal já disse (cfr. supra, ponto 4.3), em situações normais o
legislador resolveu o conflito protegendo os interesses do senhorio, titular do
«melhor direito». Não assim em situações especiais de carência do inquilino, que
são justamente aquelas que vêm identificadas na alínea a) e na alínea b) do nº 1
do artigo 107º do RAU. No entanto, entre elas, há ainda que distinguir.
A alínea b) do n.º 1, do artigo 107.º do RAU estabelece uma excepção ao direito
de denúncia do contrato de arrendamento, que é facultado ao senhorio quando este
necessita do prédio para habitação, nos casos em que o arrendatário se mantenha
no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de
tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.
Atentando ao que vem dispor esta norma verifica-se que, nesta situação, o
inquilino permanece no local arrendado um lapso de tempo que é considerado, pelo
legislador infra-constitucional, como sendo bastante para justificar o seu
“enraizamento”. De acordo com as palavras já usadas pelo Tribunal, considera-se
que há aqui uma “permanência inquestionavelmente duradoura”
que justifica o tratamento desigual entre senhorio e inquilino (Cfr. , entre
outros, os acórdãos n.º 201/2007 e 97/2000, ambos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, as circunstâncias de facto que
contextualizam a posição do senhorio (o titular do imóvel mas que o nele não
habita) e do arrendatário por um lapso de tempo prolongado (o que efectivamente
habita o prédio) são realmente diferentes, na medida em que o inquilino tem uma
situação de vivência estável naquela habitação, coisa que não sucederá com o
senhorio. São memórias, vivências, hábitos sociais – ou seja, todo o acervo de
factualidade que compõe a designação social de «lar»- que, em suma, explica a
razão de ser desta excepção ao direito de denúncia do senhorio. Como tal acervo
de factualidade será, por princípio, comum a ambos os cônjuges, compreende-se o
disposto no nº 2 do artigo 107º do RAU, que manda que nestes casos (ou seja, nos
casos previstos na alínea b) do seu nº 1) se considere «arrendatário» não apenas
o cônjuge que outorgou o contrato, mas ainda aquele «a quem tal posição se
transfira».
De muito diferente maneira se passam as coisas, quanto à alínea a) do nº 1 do
artigo 107º do RAU.
Como já se viu, a referida alínea vem consagrar uma excepção ao direito de
denúncia do contrato de arrendamento, que é facultado ao senhorio quando este
necessita do prédio para habitação, nos casos em que o arrendatário tenha 65 ou
mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de
reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez,
sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a
que corresponda incapacidade superior a dois terços.
Ao contrário do que sucede na alínea b) do mesmo preceito, verifica-se, neste
caso, que a diferença entre a situação do inquilino e a situação do senhorio não
se prende com a “estabilidade” do vínculo contratual e com questões de vivência
e de contextualização social no local arrendado. Qual será, então – e onde
residirá -, o “grau de diferença” aqui existente?
Nestes casos, a diferença residirá na asserção segundo a qual a senioridade e a
incapacidade total para o trabalho vêm dificultar sobremaneira a capacidade que
aquele inquilino tem de procurar nova habitação. Senhorio e inquilino serão, aos
olhos do legislador ordinário, diferentes, na medida em que o segundo, por força
da sua idade ou da sua invalidez, tem uma dificuldade acrescida em procurar nova
habitação para residir. Sendo este o escopo da norma, não se vê como pode ser
considerada arbitrária a sua redacção (e consequente interpretação) literal, que
prevê que a condição de «invalidez» valha apenas para o arrendatário e não seja,
enquanto tal, extensiva ao seu cônjuge. Como se sabe, o juízo de
inconstitucionalidade por violação do princípio inscrito no nº 1 do artigo 13º
da CRP só ocorrerá nos casos em que as diferenças de regimes instituídas pelo
legislador ordinário se não sustentem em qualquer fundamento razoável, ou não
sejam inteligíveis a partir de um critério racional bastante. Não é esse o caso
da norma sob juízo, na interpretação que dela fez o tribunal a quo.
5.3. Da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges
Diferente da proibição do arbítrio é a proibição da discriminação, consagrada no
nº 2 do artigo 13º da CRP. Como já se viu, o legislador constituinte não quis
aqui, apenas, impedir que o legislador ordinário estabelecesse entre as pessoas
diferenças de tratamento que não fossem racionalmente fundadas. Mais do que
isso, o que se pretendeu foi proibir que o legislador ordinário estabelecesse
diferenças de tratamento que fossem «fundadas» em certas características
pessoais, tidas pela Constituição – à partida – como inidóneas para «justificar»
qualquer diferença. Não vale a pena, agora, voltar a sublinhar por que motivo é
meramente exemplificativo o elenco dessas «características pessoais» (que não
podem nunca ser fundamento de diferenças in pejus entre as pessoas) que o nº 2
do preceito constitucional consagra (quanto a este ponto, e entre outros,
veja-se o Acórdão nº 69/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). O
que vale a pena é atentar no seguinte.
Como a Constituição entendeu que o sexo é justamente uma daquelas «categorias»
ou «características» pessoais que não podem nunca ser fundamento de diferenças –
pelo menos de diferenças in pejus – entre as pessoas, os seus princípios
relativos à liberdade de constituir família e de contrair casamento, contidos no
artigo 36º, são todos eles inspirados pela necessária indiferenciação do
estatuto jurídico do cônjuge-marido e do cônjuge-mulher, necessária
indiferenciação essa que há-de vincular o legislador ordinário e que assume
especial formulação no nº 3 do artigo 36º. Nessa medida, o princípio que aí vem
enunciado – o princípio da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges –
não é mais do que a concretização de uma das proibições de discriminação,
fixadas no nº 2 do artigo 13º.
Ora, é justamente este o princípio que os recorrentes invocam para fundamentar a
inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do
RAU, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida. Subjacente à
invocação estará portanto o argumento segundo o qual – e no domínio específico
das relações entre cônjuges – a norma sob juízo introduzirá uma «diferença» – a
saber: entre o cônjuge arrendatário, ao qual se não aplica nenhuma das condições
aí previstas, e o cônjuge não arrendatário, esse sim ‘portador’ de condição de
invalidez ou deficiência – que será em si contrária à proibição de discriminação
contida no nº 3 do artigo 36º. Levado o argumento às suas últimas consequências,
o que se está a afirmar é que a Constituição exige, aqui, que se «equiparem»
plenamente as «condições» de ambos os cônjuges, de tal modo que a «condição» do
cônjuge arrendatário seja extensível ao cônjuge inválido, mas não arrendatário.
Não se vê, porém, como extrair do artigo 36º da Constituição semelhante
imposição. Na verdade, a única exigência que do princípio constitucional se
retira é a de que se não venham a estabelecer, no plano mais recôndito da vida
familiar, elos de subordinação e dependência (juridicamente tutelados) de um
cônjuge em relação ao outro. É esta, aliás, a imposição que o Código Civil
cumpre, quando em harmonia com o princípio da direcção conjunta da família
(artigo 1671º, nº 2), prevê os efeitos pessoais e patrimoniais do casamento,
onde avulta, no âmbito dos primeiros, o princípio da reciprocidade dos vínculos
decorrentes dos deveres dos cônjuges (artigo 1672º) e, no âmbito dos segundos, o
princípio geral da administração conjunta ou de mão comum dos bens do casal
(artigo 1678º, nº 3). Nada permite concluir que, no sentido desta exigência
constitucional – assim cumprida pelo legislador ordinário – se encontre uma
injunção específica que obrigue o intérprete a «ler» a norma contida na alínea
a) do nº 1 do artigo 107º do RAU de modo diverso do que foi adoptado pela
decisão recorrida. Só se poderia concluir diferentemente se se provasse que tal
norma, com a interpretação que dela foi feita, incorporaria em si uma
«discriminação» constitucionalmente proibida, por ser contrária ao princípio de
não subordinação e dependência (de um cônjuge em relação ao outro) que se
inscreve no âmago do programa contido no nº 3 do artigo 36º da Constituição.
Ora, é bem evidente que tal prova não pode ser feita. Como acabou de se ver no
ponto anterior, a norma é justificada por uma teleologia que exclui toda e
qualquer dimensão «discriminatória».
6. Da protecção da família e da protecção da saúde
6.1. Alegam por último os recorrentes que é ainda inconstitucional a norma sob
juízo por violação dos direitos consagrados nos artigos 67º e 64º da
Constituição (por lapso, referiram-se aqui ao artigo 63º, relativo à segurança
social). Deve no entanto dizer-se desde já que também quanto a este ponto não
procedem as razões invocadas.
No artigo 67º a Constituição reconhece que a «família», enquanto elemento
fundamental da sociedade, tem «direito à protecção» da sociedade e do Estado (nº
1) ; e que, por isso, deve este último, em relação a ela, adoptar certos
procedimentos e certas políticas que visem a realização de determinados fins
(todas as alíneas
do nº 2).
Sustenta o recorrente que, por assim ser – e por a Constituição consagrar este
direito à protecção da família –, será inconstitucional a norma sob juízo: a
interpretação que dela se fez, diz-se, não protege suficientemente a casa de
morada de família, pelo que o seu resultado estará em contradição com o disposto
no artigo 67º da CRP. A alegação ignora, porém, a natureza do direito que nesta
disposição constitucional se consagra. Ao contrário do que sucede no artigo 36º
– também ele, como já vimos, alusivo à instituição «família» – a Constituição
não prevê aqui nenhuma liberdade fundamental, que, nos termos do nº 1 do artigo
18º, seja directamente aplicável e tenha, por isso, um conteúdo determinado e
determinável a nível constitucional (e não legal). O artigo 67º não diz respeito
à liberdade de constituir ou não constituir família, liberdade que impõe ao
Estado, e a todos os membros da comunidade política, um dever de não fazer, de
não perturbar, de não obstaculizar. O que o artigo 67º faz, pelo contrário, é
impor ao Estado deveres de agir, de prestar e de realizar, deveres esses que
são, antes do mais, cumpridos pelo legislador ordinário, quando este adopta
políticas públicas adequadas à realização dos fins que a Constituição fixou. É
claro que tais deveres podem deixar de ser cumpridos, ou podem ser cumpridos de
modo insuficiente ou deficitário. No entanto, para que tal suceda, necessário é
que se prove que o legislador, nas escolhas que fez, se afastou de forma
manifesta e evidente do cumprimento das tarefas que, positivamente, lhe haviam
sido constitucionalmente atribuídas.
Ora, é evidente que tal, in casu, não sucedeu.
A legislação vinculística do arrendamento – em cujo espírito se inscreve, como
já vimos, a norma sob juízo – terá sido adoptada, seguramente, para a realização
de múltiplos fins e no contexto de políticas públicas de escopo variável. Certo
é que num desses fins se inscreveu primordialmente a necessária protecção das
famílias e das suas moradas: a prevalência da vontade do arrendatário na
manutenção do vínculo do arrendamento, independentemente da vontade do senhorio,
não terá tido outra justificação maior que não essa – a da protecção da
«família», nos termos do artigo 67º da Constituição. Contudo, sendo essa
finalidade isso mesmo – algo a realizar por uma política legislativa – para a
prosseguir o legislador não pôde deixar de fazer escolhas; de resolver
conflitos; de procurar harmonizar diferentes bens jurídicos em concorrência.
Como vimos (supra, ponto 5.2.), o regime contido na alínea a) do nº 1 do artigo
107º do RAU justifica-se precisamente por, nele, o legislador ter feito uma
ponderação entre dois bens igualmente merecedores de protecção: o da (eventual)
protecção da casa de morada de família do inquilino e o da (eventual) protecção
da casa de morada de família do senhorio. A forma por que o fez, não sendo
seguramente a única constitucionalmente possível, correspondeu no entanto ao
cumprimento do programa da Constituição. Sobretudo, correspondeu ao dever de
realização do bem jurídico protegido pelo seu artigo 67º.
6.2. Invocam por último os recorrentes a violação, por parte da norma sub
judice, do «direito à protecção da saúde», consagrado no artigo 64º da CRP. Na
verdade, estando em causa, no caso, uma disposição legislativa que visa proteger
situações de invalidez e incapacidade para o trabalho, mais do que o bem
jurídico «saúde» – que de facto é protegido pelo direito consagrado no artigo
64º – deverá ser convocado, como parâmetro constitucional da validade do direito
infraconstitucional, o bem jurídico tutelado pelo artigo 71º, referente
especificamente a «cidadãos portadores de deficiência».
A norma contida no artigo 71º da CRP – como norma especial face à norma geral do
artigo 64º – é aquela que mais directamente é cumprida pela alínea a) do nº 1 do
artigo 107º do RAU: ao prever, como limites ao direito de denúncia do senhorio,
a condição de invalidez e incapacidade para o trabalho do inquilino, o
legislador do RAU não fez mais do que dar concretização ao «programa» previsto
no nº 2 do artigo 71º, segundo o qual «o Estado [se] obriga a realizar uma
política nacional de (…) reabilitação e integração dos cidadãos portadores de
deficiência e de apoio às suas famílias (…)». Mais uma vez, a forma como a norma
do RAU realizou esta «política» não era a única constitucionalmente possível;
inquestionável é, porém, que ela se coadunou com o «valor» constitucional de
protecção à deficiência, consagrado no artigo 71º da CRP.
Este «valor», que obriga o Estado a proteger especialmente os cidadãos
portadores de deficiência, anda, no sistema da Constituição, estreitamente
associado ao princípio da igualdade. Com efeito, um tal princípio não tem apenas
a dimensão negativa alegada pelos recorrentes, e que analisámos no ponto 5. Mais
do que isso – e como disse o Tribunal, por exemplo, no Acórdão nº 412/2002 – a
igualdade tem ainda uma vertente positiva, pois pode abranger, para além das
proibições de diferenciação, autorizações – dirigidas ao legislador ordinário –
para que este estabeleça diferenças favoráveis a certos grupos de pessoas «como
forma de compensar as desigualdades de oportunidades» (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 54º Vol., p. 417). Ao obrigar o Estado a realizar uma política
nacional de protecção à deficiência, o artigo 71º da CRP está a autorizar a
criação, por via legislativa, de um «estatuto especial» do cidadão deficiente,
que – correspondendo a uma «necessidade de diferenciação positiva» – o venha a
compensar das desigualdades de oportunidades que marcaram a sua condição
existencial. Nesta perspectiva, a norma contida no nº 1, alínea a) do artigo
107º do RAU integra, plenamente, tal estatuto. Assim sendo, a referida norma não
apenas concretiza o programa contido no artigo 71º da CRP, como corresponde ao
cumprimento da dimensão positiva do princípio da igualdade.
No entanto, de nenhum destes parâmetros constitucionais, aplicáveis ao caso, se
pode extrair a conclusão segundo a qual o legislador deveria ter tido em
consideração, ao limitar o direito de denúncia do senhorio do contrato de
arrendamento, não apenas a condição de invalidez do inquilino, mas também a
condição de invalidez do seu cônjuge.
Tal conclusão se não pode extrair, antes do mais, do prescrito pelo artigo 71º,
nº 2 da CRP. Embora aí se diga que o Estado «[se] obriga a realizar uma política
nacional de «integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às
suas famílias», daí se não retira que tivesse o legislador o dever de considerar
como extensiva ao inquilino a situação de invalidez do seu cônjuge. Os motivos
são os mesmos que foram invocados quanto ao «direito à protecção da família»:
tratando-se estes (o do artigo 71º quanto o do artigo 64º) de direitos que se
cumprem através da adopção, por parte da lei ordinária, de políticas públicas
adequadas à realização de certos fins, nunca é mecânico o modo [legislativo] da
sua concretização. Ao legislador será sempre confiada a tarefa de, no desenho e
consecução dessas políticas, conciliar interesses e harmonizar bens jurídicos
conflituantes. Ora, já vimos que foi justamente isso que o legislador do RAU
fez, ao regular como regulou os limites ao direito de denúncia do senhorio.
Por outro lado, correspondendo o valor constitucional «protecção dos
deficientes» a uma forma de discriminação positiva, autorizada pela CRP em
função da «dimensão positiva» do princípio da igualdade, o modo pelo qual o
poder legislativo democrático concretiza tal autorização não pode deixar de
incluir uma ampla margem de liberdade conformadora dos vários valores e
interesses em presença. Por isso, também aqui nada permite concluir pela
existência de um dever constitucional, oponível ao legislador, de estender a
condição de invalidez para além dos limites literais do preceito contido na
alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU. Ora, foram justamente esses os limites
que a decisão recorrida, na sua interpretação, acolheu.
Por todos estes motivos, improcedem igualmente estas últimas razões invocadas
pelos recorrentes.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não conceder provimento ao
recurso, mantendo-se a decisão recorrida quanto à questão de
constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixadas em 20 uc de taxa de justiça.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
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