|
Processo n.º 833/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. intentou, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, acção administrativa especial de pretensão conexa com actos administrativos, pedindo que fosse anulado o acto do Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Educação que lhe aplicara a pena disciplinar de advertência.
A. exercia as funções de Director Pedagógico na Escola … em Cantanhede, e a pena, atrás referida, fora-lhe aplicada nos termos do disposto no artigo 99.º, nºs 2 e 4, do Decreto-Lei nº 553/80, de 21 de Novembro (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo) e da Portaria nº 208/98, de 28 de Março.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em sentença proferida a 23 de Novembro de 2010, decidiu, invocando para tanto o juízo proferido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 398/2008, não aplicar ao caso, por inconstitucionalidade, o disposto no artigo 99.º do Decreto-Lei nº 553/80, anulando por isso o acto administrativo que fora impugnado e considerando procedente a acção.
Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Admitido o recurso no Tribunal, nele apresentou alegações, na qualidade de recorrente, o Exmo. Representante do Ministério Público, que, essencialmente, pugnou pela manutenção do juízo de inconstitucionalidade, pelos fundamentos constantes do já citado Acórdão nº 398/2008.
O Ministério da Educação não apresentou no Tribunal, na qualidade de recorrido, as contra-alegações referentes à questão da constitucionalidade.
Importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Para fundamentar a recusa de aplicação de norma invocou a sentença recorrida o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 398/2008.
Estava em causa, neste Acórdão, um despacho do Secretário de Estado da Administração Educativa, que decidira aplicar à recorrente perante o Tribunal – uma entidade privada, proprietária de estabelecimento de ensino –, a título de sanção disciplinar, pena de multa, nos termos das disposições conjugadas do artigo 99.º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 553/80, de 21 de Novembro (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo) e do artigo 3.º, alíneas c) e g), da Portaria nº 207/98, de 28 de Março.
Indagando da validade do direito sancionatório assim decorrente das normas conjugadas do decreto-lei e da portaria (o recorrente arguira, i.a., a inconstitucionalidade orgânica do referido decreto-lei), acabou o Tribunal por conceder provimento ao recurso, proferindo juízo de inconstitucionalidade incidente apenas sobre as normas atrás referidas, aplicáveis ao caso.
Fê-lo, não por ter acolhido a ideia segundo a qual o acto legislativo do Governo enfermaria in totum de inconstitucionalidade orgânica por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, mas por ter dado razão ao argumento segundo o qual a remissão para portaria, constante do nº 4 do citado artigo 99.º – “a cominação das sanções será objecto de regulamentação específica, a definir por portaria dos Ministros das Finanças e do Plano e da Educação e Ciência, ouvido o Conselho Consultivo do Ensino Particular e Cooperativo” – lesava o princípio constitucional da reserva de função legislativa.
Os fundamentos foram os seguintes:
(…) diversa da questão da (inexistente) invasão da reserva competencial do Parlamento é a questão da (eventual) invasão da reserva de função legislativa.
Sustenta a recorrente que é inconstitucional o regime sancionatório definido pelo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo por nele se não ter respeitado a reserva da função legislativa: ao remeter para normação administrativa (mais exactamente para portaria) a tipificação dos comportamentos puníveis; a adequação das sanções aos tipos; a escolha do procedimento sancionatório a aplicar, o legislador do Estatuto – diz a recorrente – fez aquilo que a Constituição lhe proíbe: deixou de regular matérias que só poderiam ser reguladas por acto da função legislativa, reenviando portanto para uma outra autoridade (no caso, a administrativa) o exercício de uma competência que só a ele pertencia.
É certo – e a doutrina assim o tem consensualmente defendido (por todos: Afonso Queiró, «Teoria dos Regulamentos», em Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXVII, p. 11) – que até 1982 nada havia na Constituição que impedisse o legislador, quer parlamentar quer governamental, de «deslegalizar» certa normação por ele iniciada, reenviando a sua continuação para regulamentos administrativos que dispusessem sobre a matéria em termos novos e originários, desde que a referida matéria não estivesse ela própria, por imposição constitucional, sujeita a reserva de lei.
Foi exactamente isso que fez – e validamente, à luz da primeira versão da Constituição – o legislador que definiu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
Com efeito, por um lado e como já se viu, não estava então reservada à lei a «matéria» por ele regulada. Por outro, o «reenvio» que se fazia no artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80 implicava uma verdadeira «deslegalização», na medida em que através dele se habilitava a administração a emitir, sobre a matéria, uma verdadeira regulação praeter legem, porque primária e inovatória. Atentemos agora, com mais vagar, neste segundo aspecto.
Não é fácil – como bem se sabe – estabelecer traços seguros entre aqueles regulamentos administrativos que são secundum legem e aqueles que vão para além da lei, ou que são praeter legem. No entanto, se se tomar como bom o critério doutrinário segundo o qual «o regulamento executivo não pode inovar no domínio das restrições à esfera individual, nem criar preceitos que se não liguem por um vínculo de pormenorização ou procedimentalização às normas contidas na lei regulamentada», por ser ele um regulamento «secundário ou derivado, relativamente ao regime estabelecido pelo legislador» (José Manuel Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 241), limitando-se a «editar as providências necessárias para assegurar a fidelidade ou (…) a conformidade à vontade do legislador (…)» sem dar vida a nenhuma regra de fundo, a nenhum preceito jurídico «novo» e originário» (Afonso Queiró, ob.cit., p. 9), então parece certo que na categoria destes regulamentos se não insere aquele para o qual reenviou o legislador que estabeleceu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
Na verdade – e ao contrário do que sustenta a entidade recorrida – a lei não definiu então, com densidade suficiente, o regime sancionatório que deveria ser aplicado às escolas inadimplentes. Limitou-se a estabelecer o elenco das sanções a cominar «em caso de violação do disposto no decreto-lei», afirmando ainda que tais sanções deveriam ser aplicadas de acordo com a natureza e a gravidade da violação. Foi, pois, o regulamento administrativo que veio densificar todo este regime, que a lei, finalmente, apenas desenhou a título principial: como já vimos, a Portaria nº 207/98 definiu os ilícitos sancionáveis; estabeleceu as sanções correspondentes a cada um; fixou o procedimento a adoptar na aplicação das sanções. É bem difícil sustentar que um regulamento assim não inova no domínio das restrições à esfera individual, ou não cria normação primária, dando vida a preceitos jurídicos «novos» ou «originários». Seguro é porém que a habilitação legal para a emissão deste tipo de regulamentos não era proibida pela primeira versão da Constituição.
Veio no entanto a proibi-la a revisão constitucional de 1982, o que não pode deixar de ser tido em conta no caso agora sob juízo. É que, nele, se não manteve apenas a habilitação legal para a emissão de regulamentos praeter legem; mais do que isso, tal habilitação só veio a ser cumprida pela Portaria nº 207/98, anos após a entrada em vigor da Lei de Revisão Constitucional nº 1/82.
E não restam dúvidas que a Lei de Revisão pretendeu, justamente, vedar ao legislador este ‘tipo’ de reenvios normativos.
Antes do mais, ficou claro, a partir de 1982, que o direito à criação de escolas privadas era para a CRP uma liberdade fundamental constitucionalmente tutelada.
O direito sancionatório previsto pelo artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80 – esse mesmo que remete para regulamento administrativo a definição, inovatória, dos ilícitos cometidos; a graduação das sanções que se lhes deveria aplicar; o procedimento a adoptar na sua aplicação – passou assim a ser direito sancionatório incidente sobre o exercício de uma liberdade fundamental, com todas as consequências que daí advêm quanto à extensão e à densidade da reserva de lei na regulação de matérias que lhe digam respeito. Com efeito, e como muito bem se sabe – e como sempre o tem dito o Tribunal: vejam-se, entre outros, o Acórdão nº 307/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º volume, p. 499 e ss.), e ainda os Acórdãos nºs 174/93 e 185/96 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) – em matérias que impliquem restrições ou condicionamentos essenciais ao exercício de liberdades fundamentais só são constitucionalmente admissíveis os regulamentos de execução.
Mas, além disso, a revisão constitucional de 1982 veio a proibir em geral as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos praeter legem, ou seja, de regulamentos que venham a “interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar” quaisquer preceitos da própria lei “habilitante” (artigo 112º, nº 5, da versão actual da CRP). Este princípio constitucional, introduzido em 1982, não pode deixar de ser considerado como um princípio de índole material ou substancial. O que nele se contém é algo mais do que uma regra ou conjunto de regras relativas a formas ou a competências. Com efeito, do princípio contido no nº 5 do artigo 112º da CRP decorre uma proibição (de reenvios normativos para regulamentos praeter legem) que, para além de incidir directamente sobre o âmbito da conformação do legislador ordinário, limitando-o, reflecte a intenção do regime aprovado em 1982: a de conferir uma outra, e mais intensa, tutela constitucional à reserva da função legislativa – enquanto delimitação daqueles domínios de vida que só podem ser regulados por actos legislativos com exclusão de quaisquer outras fontes normativas –, «reserva» essa que, em última análise, decorre do princípio mais vasto do Estado de direito (que, recorde-se, só veio a ser consagrado pelo texto da Constituição a partir de 1982).
Por todos estes motivos, tem dito o Tribunal, em jurisprudência constante, que a proibição de habilitações legais para a emissão de regulamentos praeter legem afecta directamente, não os regulamentos que tenham sido emitidos ao abrigo de «habilitações legais» indevidas, mas as próprias normas legais que os habilitaram, ainda que estas tenham sido aprovadas antes da revisão de 1982. Entende-se, com efeito, que, nesses casos, tais normas se tornam supervenientemente inconstitucionais, precisamente por ser de ordem material – e não orgânica ou formal – o novo regime constitucional que veio dar outra, e mais intensa, tutela ao princípio da reserva de função legislativa (assim, e entre outros, Acórdão nº 203/86, em DR, IIª série, nº 195, 26/8/1986, pp. 7978 e ss; Acórdão nº 458/89, em DR, IIª série, nº 25, 30/1/1990, pp. 1019 e ss; Acórdão nº 1/92, em DR, Iª série, nº 43, 20/2/1992, pp. 1026 e ss.; Acórdão nº 869/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). É esta a doutrina que se deve aplicar às normas contidas no artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80, que fixaram, sem a densidade que, ratione materiae, seria constitucionalmente exigida, o regime sancionatório aplicável às escolas privadas.
Prejudicada fica, assim, a questão de saber se as normas da Portaria nº 207/98 lesam, em si mesmas, algum parâmetro constitucional. A análise do problema torna-se inútil, face ao juízo, que acabou de ser feito, quanto à invalidade das normas legais que habilitaram a sua emissão.
São estes fundamentos inteiramente válidos para o presente caso, em que está em juízo uma outra vertente do direito sancionatório decorrente do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo – aplicado, desta feita, não às entidades proprietárias de escolas particulares mas aos directores pedagógicos das mesmas, nos termos do nº 2, alínea a) do artigo 99.º do Decreto-Lei nº 553/80, de 21 de Novembro.
Tanto basta, assim, para que também agora se profira juízo de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no nº 5 do artigo 112.º da Constituição, as normas constantes do nºs 2 e 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei nº 553/80, de 21 de Novembro; e, consequentemente;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida quanto ao juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Setembro de 2011. – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.
|