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Processo n.º 471/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, com o seguinte fundamento:
2. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma (em si mesma ou numa sua interpretação), tal como que tal norma (ou dimensão interpretativa questionada) tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso.
E, em terceiro lugar, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Solicita o requerente que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com a Constituição da interpretação dada pela decisão recorrida às disposições conjugadas dos artigos 403.º, n.º 1 e 432.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal.
Simplesmente, compulsados os autos, verifica-se que a questão de constitucionalidade relativa à norma que integra o objecto do presente recurso não foi previamente suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como é exigido pelo artigo 72.º, n.º 2 da LTC.
Com efeito, em lugar algum da reclamação dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça o aí reclamante suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa, não se podendo como tal considerar a afirmação constante do ponto e) das conclusões, nos termos da qual “[da falta de fundamentação decorreria] a aplicação efectiva de uma interpretação constitucional do direito ao recurso para o STJ que configura objectivamente uma restrição indevida e intolerável ao direito constitucional de pleno recurso”.
Segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Ac. n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Ac. n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
Tanto basta para que o Tribunal Constitucional não possa conhecer do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado dessa decisão, A. veio requerer o seguinte:
1. O arguido introduziu reclamação junto do Presidente do STJ do despacho do TRG que recusou a admissão do recurso anteriormente introduzido para o STJ nos seguintes termos:
“… o ... reclamante interpôs recurso para o S.T.J., do Acórdão do T.R.G. de 31 de Janeiro de 2011 que o condenou na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.
Por despacho ... o recurso não foi admitido …
O art. 400º nº 1, al. f) do CPP...: Não é admissível recurso: de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.”
Porém, o art. 403 nº 1 diz expressamente que “É admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.”
… o número dois do referido artigo do CPP define na generalidade as matérias autonomizáveis.
E o art. 432º nº 1, al. a) do CPP afirma que a questão autónoma deve ter sido produzida em 1ª instância.
… o reclamante motivou ... expressamente: “... restrito a duas questões de direito autónomas umbilicalmente interligadas e susceptíveis de serem autonomamente decididas por este STJ nos termos do disposto nos arts. 403º nº 1 e 432º nº 1 als. a) e b) conjugados do CPP.”
expôs ... as ... duas questões, ... a saber, “violação do direito pleno ao recurso, restrição das garantias da defesa e limitação do exercício do patrocínio forense.”
… a “Nulidade do acórdão por contradição insanável da fundamentação nas duas questões novas de direito decididas.”
… perante ... as questões novas de direito, o despacho ... limitou-se a afirmar o seguinte:
“... não existe disposição legal que consagre expressamente a possibilidade de recurso no caso concreto. (...) Conclui-se portanto, que a decisão proferida por esta Relação é irrecorrível nos termos dos artigos 399°, 400º nº 1, f), 432º nº 1, b) e 414º, nº 2, todos do Código de Processo Penal.”
Não se pronunciando sobre a questão de saber se as duas questões suscitadas são ou não autonomizáveis e se foram ou não decididas em 1ª instância.
E é dessa omissão de pronúncia e falta de fundamentação que reclama o arguido, dado que, o art. 403º do CPP situando-se no Título I – “Dos recursos ordinários” aplica-se também na questão das matérias autonomizáveis aos recursos interpostos de decisões proferidas pelas relações para o STJ.
Ainda que as penas sejam inferiores aos oito anos de prisão. Pois a interpretação contrária se efectivamente aplicada como o foi através desta omissão de pronúncia constitui uma restrição ilegítima, injusta e intolerável ao direito pleno de recurso que fere no seu espírito o princípio constitucional inscrito no artigo 32º da CRP.
a. Falta de fundamentação que configura ... omissão de pronúncia que teve como consequência a aplicação efectiva de uma interpretação inconstitucional do direito ao recurso para o STJ que configura objectivamente uma restrição indevida e intolerável ao direito constitucional de pleno recurso.
b. Situação essa que, a ser decidida de modo desfavorável nesta sede de Reclamação feriria o preceito constitucional do direito do arguido ao processo justo equitativo.”
2. Por despacho proferido em 10.05.2011, a reclamação foi indeferida.
3. E desse despacho interpôs recurso para o tribunal constitucional nos termos conhecidos.
4. Por sua vez foi o arguido notificado desta decisão sumária, onde para além do mais vem elencado o conjunto dos três pressupostos que o recurso deve respeitar.
5. As questões a aclarar, se nos é permitido, são as seguintes:
1° Se o recorrente cumpriu os referidos três pressupostos e se, tão só “... a questão da inconstitucionalidade relativa à norma que integra o objecto do presente recurso não foi previamente suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida ...” por qual razão o TC restringe a obrigatoriedade de invocação dessa inconstitucionalidade unicamente ao teor da reclamação indeferida e não, ao teor do recurso introduzido umbilicalmente interligados-
2° Por que razão de direito in casu no conhecimento do objecto deste recurso, tem de sobrelevar de modo tão ostensivo e desproporcionado ao valor da matéria em causa o formalismo da admissão (modo não adequado de exposição) sobre o conteúdo da reclamação indelevelmente ligado ao teor do recurso rejeitado-
3° Qual o motivo substancial que impediu este TC de compreender o sentido da sindicância da defesa quando esta claramente afirmou que a omissão de pronúncia na reclamação sobre a resposta a dar, se sim ou não as duas questões em liça eram autonomizáveis e se a rejeição do recurso por essa omissão feria ou não o direito de recurso, violou o art. 32° da constituição e o art. 13° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem-
6. Motivos pelos quais requer a defesa aclaração nestes pontos.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. O reclamante afirma pretender a aclaração da Decisão Sumária n.º 371/2011. Simplesmente, em lugar de identificar, de modo preciso, quais as passagens da decisão que, por obscuridade ou ambiguidade, careceriam de algum esclarecimento, aquilo que, em rigor, o reclamante vem fazer é suscitar dúvidas sobre a bondade da decisão.
Assim, não se tratando, em substância, de um pedido de aclaração, nada há a aclarar.
4. Tendo em conta que, a partir do ponto 5 da reclamação, o reclamante questiona o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do recurso de constitucionalidade por si interposto – o de falta de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade relativa à norma que integra o objecto do mesmo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como é exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional – à reclamação em causa responder-se-á, a partir de agora, nos termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC.
No subponto 1, questiona o reclamante a obrigatoriedade de invocação da inconstitucionalidade na reclamação que veio a ser indeferida.
No segundo subponto, questiona o reclamante que se sobreleve, de modo que considera ostensivo e desproporcionado ao valor da matéria em causa, o formalismo da admissão sobre o conteúdo da reclamação indelevelmente ligado ao teor do recurso rejeitado.
Por último, no terceiro subponto, o reclamante questiona qual possa ter sido o motivo substancial que impediu o Tribunal Constitucional de compreender o sentido da sindicância da defesa. Trata-se aí, em substância, de um modo diferente de expor o argumento já utilizado de, na decisão sumária reclamada, se sobrelevar a forma sobre a substância.
Não tem razão o reclamante para as dúvidas manifestadas relativamente à bondade da decisão sumária.
4.1. No que respeita à dúvida manifestada no primeiro subponto do ponto 5 da reclamação apresentada, importa observar que tendo o recurso de constitucionalidade sido interposto do despacho proferido pelo Exmo. Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 10.05.11, que indeferiu a reclamação deduzida contra o despacho do Exmo. Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Guimarães, que não admitiu o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, o único modo, processualmente adequado, de cumprir o ónus de prévia suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida era fazê-lo na reclamação deduzida contra o despacho do Exmo. Desembargador Relator que não admitiu o recurso, sendo irrelevante, para efeitos de verificação do pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade assinalado, que a questão de constitucionalidade possa, eventualmente, ter sido suscitada em peça processual anterior.
Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, consistindo a intervenção do Tribunal Constitucional em uma reapreciação, enquanto instância de recurso, do juízo efectuado pelo tribunal a quo sobre uma questão de constitucionalidade normativa, é um pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade que se verifique, de facto, uma prévia apreciação jurisdicional relativamente a uma questão de constitucionalidade. Assim, para que, posteriormente, ao recorrente esteja aberta a via de recurso para o Tribunal Constitucional, é indispensável que, previamente, tenha suscitado a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. A eventual verificação de uma suscitação da questão de constitucionalidade em momento anterior, designadamente nas próprias alegações do recurso interposto, é, assim, irrelevante, sempre que tal questão seja, posteriormente abandonada, enquanto fundamento autónomo na peça apresentada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
A circunstância, meramente casual, de o tribunal que proferiu a decisão recorrida ser, in casu, o mesmo tribunal a que o recurso rejeitado era dirigido é irrelevante, pois, na sua decisão, o tribunal a quo, apenas teve que apreciar o teor da reclamação apresentada, não tendo apreciado – não estando a isso obrigado – o próprio recurso interposto e rejeitado.
Ora, só se pode dar por satisfeito o pressuposto de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, quanto a sua suscitação é feita em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional.
4.2. No que respeita às dúvidas suscitadas nos segundo e terceiro subpontos do ponto 5 da reclamação, importa dizer que, embora sendo inquestionável que o fundamento oferecido na decisão sumária para a não admissão do recurso de constitucionalidade é eminentemente formal, nela inexistindo qualquer fundamento material, a verdade é que, em sede de fiscalização concreta, os pressupostos de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional são apenas formais.
No sistema português de controlo da constitucionalidade, o legislador excluiu qualquer critério material – tal como, por exemplo, a relevância jurídico-social da questão de constitucionalidade ou a sua adequação à função específica da justiça constitucional – que permita ao Tribunal seleccionar aquilo que conhece.
De acordo com o sistema actualmente vigente, o Tribunal deve conhecer de questões de constitucionalidade – quaisquer que elas sejam (e por muito irrelevantes que possam ser) – desde que o recorrente tenha dado cumprimento aos pressupostos (formais) de admissibilidade do recurso. Inversamente, o Tribunal Constitucional vê-se impedido de conhecer de questões juridico-constitucionalmente relevantes sempre que o recorrente não tenha dado cumprimento aos pressupostos (formais) de admissibilidade do recurso.
Serve isto para dizer que, ao decidir como decidiu, o Tribunal Constitucional não incorreu em um qualquer formalismo. Sendo os pressupostos de admissibilidade do recurso meramente formais, cabe ao Tribunal Constitucional aplicá-los.
III – Decisão
5. Nestes termos, o Tribunal decide indeferir o requerido a fls. 196 ss.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 4 de Agosto de 2011. Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão
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