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Processo n.º 207/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em que é recorrente Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, da sentença daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, da norma do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, com as alterações posteriores, adiante designado RGIT), quando «interpretada no sentido de que consagra ou autoriza uma responsabilização subsidiária por coimas aplicadas à sociedade, que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra os administradores e gerentes».
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. A norma do artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, quando interpretada no sentido de que consagra uma responsabilização subsidiária pelas coimas que se efectivam através do mecanismo da reversão de execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora, não viola os artigos 30.º, n.º 3, e 32.º, n.º 2, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
3. O recorrido não contra-alegou.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
4. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 8.º do RGIT, na parte em que consagra uma responsabilização subsidiária pelas coimas que se efectiva através do regime da reversão de execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora, o que significa que apenas está em causa a norma resultante das alíneas a) e b) do n.º 1 do citado artigo 8.º
O preceito em questão estabelece o seguinte:
«Artigo 8.º
Responsabilidade civil pelas multas e coimas
1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
2 – (…).
3 – (…).
4 – (…).
5 – (…).
6 – (…).
7 – (…).
8 – (…).»
A sentença recorrida julgou procedente o pedido de extinção da execução de onde emerge o presente recurso, declarando a mesma extinta, com fundamento na inconstitucionalidade da citada norma do artigo 8.º do RGIT, na parte em que consagra a responsabilidade subsidiária que se efectiva através da reversão no âmbito da execução fiscal.
5. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da norma, aderindo à fundamentação dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 129/2009 e 150/2009.
No referido Acórdão n.º 129/2009, proferido na 3.ª Secção deste Tribunal, decidiu-se não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação.
Os fundamentos deste aresto podem resumir-se no seguinte:
I - O que está em causa na norma sub iudicio não é a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva, mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
II - Não existe na previsão da norma em causa um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é líquido - que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contra-ordenações.
III - Do mesmo modo, o dispositivo constante da norma em análise não põe em causa o princípio da presunção da inocência do arguido, já que não ocorre uma imputação a terceiro de uma infracção contra-ordenacional relativamente à qual este não tenha tido oportunidade de se defender, mas uma mera responsabilidade civil subsidiária que resulta de um facto ilícito e culposo que se não confunde com o facto típico a que corresponde a aplicação da coima.
No Acórdão n.º 150/2009, da mesma Secção, julgou-se não inconstitucional a norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal. Neste aresto, seguiu-se de perto a fundamentação do Acórdão supracitado, em termos que se podem resumir do seguinte modo:
I - A sentença recorrida recusou aplicação ao artigo 7.º-A do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras), entendendo que a atribuição de responsabilidade subsidiária a administradores e gerentes e outras pessoas com funções de administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados, por dívida resultante de coima fiscal aplicada à pessoa colectiva, nos termos previstos naquela disposição legal, é susceptível de violar os princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência do arguido, consagrados no n.º 3 e do artigo 30.º e no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República, que entende aplicáveis no domínio do ilícito contravencional.
II - A questão é, no que à violação destes princípios respeita, em tudo semelhante àquela que o Tribunal apreciou no recente acórdão n.º 129/2009, a propósito das normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias), de teor, para o que interessa, semelhante ao da norma que constitui objecto do presente recurso. As considerações que ali se fizeram são inteiramente transponíveis para a apreciação da constitucionalidade da norma que é objecto do presente recurso.
III - Efectivamente, não é aqui menos evidente a natureza civilística da responsabilidade em causa, ou seja, que se trata de efectivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa colectiva. O chamamento do terceiro a responder pela quantia que não foi possível obter mediante execução do património do primitivo devedor resulta de ser imputada a uma sua conduta culposa a não satisfação das 'relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas' às pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados a que a sanção foi aplicada. Não é a sanção aplicada pelo ilícito contra-ordenacional que se transmite, mas a responsabilidade culposa pela frustração da satisfação do crédito correspondente que se efectiva contra o gerente ou administrador que, incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o pagamento da coima em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva.
6. Posteriormente, foi proferido, nesta 2.ª Secção, o Acórdão n.º 481/2010, de sentido contrário ao dos anteriormente citados. Nele se decidiu «julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro) na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal».
Na parte relevante, é do seguinte teor a fundamentação do referido aresto:
«6. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro) na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal.
A norma em questão estabelece o seguinte:
«ARTIGO 7.º-A
Responsabilidade civil subsidiária
1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis, em caso de insuficiência do património destas, por si culposamente causada, nas relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas àquelas entidades referentes às infracções praticadas no decurso do seu mandato.
2 - Se forem várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade.»
A sentença recorrida julgou parcialmente procedentes os autos de oposição à execução fiscal deduzidos por B., tendo-o, além do mais, absolvido do pedido executivo quanto às coimas, pelas quais este vinha responsabilizado como gerente da sociedade “C., Lda.”. Para o efeito, considerou que a “responsabilidade subsidiária, quer no domínio do RJIFNA, quer no domínio do RGIT, é inconstitucional”.
A sentença é absolutamente omissa quanto aos fundamentos de tal juízo. Limita-se a invocar, nesse sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12/03/2008 e de 28/05/2008. Vendo nessa citação uma remissão integradora, é de considerar que os fundamentos da decisão são os que constam destes arestos.
Deles se deduz que o fundamento onde basicamente se alicerça este juízo de inconstitucionalidade é a violação da regra da intransmissibilidade da responsabilidade penal, consagrada no artigo 30.º, n.º 3, da CRP, regra tida por extensível à responsabilidade contra-ordenacional. Adicionalmente, são referidos como violados o princípio da presunção de inocência (artigo 30.º, n.º 2, da CRP), a garantia dos direitos de audiência e de defesa do arguido (artigo 30.º, n.º 10, da CRP), e, através da citação de uma posição doutrinal, o princípio da necessidade de qualquer restrição a direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
7. A questão da invocada violação da proibição contida no artigo 30.º, n.º 3, da CRP só ganha corpo se dermos previamente por assente que o artigo 7.º-A do RJIFNA estabelece um mecanismo de transmissibilidade de responsabilidade de natureza contra-ordenacional. Se assim não for, a solução legal coloca-se, à partida, fora do âmbito de previsão e de protecção do preceito constitucional, sem qualquer possibilidade de afectação do bem por ele tutelado.
Esta é uma autêntica questão prévia, que, como tal, deve ser enfrentada e decidida com anterioridade em relação a todas as demais que a questão de constitucionalidade posta suscita.
8. Diga-se, desde já, que se reveste de um elevado grau de problematicidade uma reconstrução dogmática da norma impugnada coerente com a qualificação constante da epígrafe, de “responsabilidade civil subsidiária”.
Esta qualificação foi tida como traduzindo apropriadamente o alcance do enunciado normativo do n.º 1 do artigo 7.º-A do RJIFNA no Acórdão n.º 150/2009, reiterando uma posição já expendida no Acórdão n.º 129/2009, a propósito de questão semelhante, suscitada pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias).
Lê-se naquele primeiro Acórdão:
«Efectivamente, não é aqui menos evidente do que era na norma apreciada nesse outro acórdão a natureza civilística da responsabilidade em causa, ou seja, que se trata de efectivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa colectiva. O chamamento do terceiro a responder pela quantia que não foi possível obter mediante execução do património do primitivo devedor resulta de ser imputada a uma sua conduta culposa a não satisfação das “relações de crédito emergente da aplicação de multas ou coimas” às pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados a que a sanção foi aplicada. Não é a sanção aplicada pelo ilícito contra-ordenacional que se transmite, mas a responsabilidade culposa pela frustração da satisfação do crédito correspondente que se efectiva contra o gerente ou administrador que, incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o pagamento da coima em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva».
A atribuição de natureza civilística à responsabilidade dos administradores abre as portas e justifica uma leitura do preceito no sentido de que não se tem em vista uma responsabilidade pelo cometimento, em si mesmo, da infracção tributária, mas antes uma responsabilidade pela causação culposa de uma situação de insuficiência do património das pessoas colectivas obrigadas ao pagamento da multa ou coima, situação a que é imputável a não satisfação do crédito emergente da aplicação dessas medidas punitivas. Os administradores e equiparados são responsabilizados por facto próprio (como não pode deixar de ser, tratando-se de uma responsabilidade subjectiva), não coincidente com o facto gerador da sanção pecuniária, com esta conexionada apenas porque impossibilitante do pagamento da prestação a que, pela infracção cometida, a pessoa colectiva ficara vinculada.
Estaríamos em face de duas relações, de fonte e natureza distintas: uma, tendo por sujeito passivo a pessoa colectiva e por objecto o dever de prestar a importância correspondente à coima, dever constituído em decorrência da violação de uma obrigação tributária; uma outra, consistente num vínculo de responsabilidade, activado em caso de incumprimento daquele dever, por força da insuficiência do património do devedor, culposamente causada pelo administrador responsável. À dualidade de sujeitos corresponderia uma dualidade de relações obrigacionais, sendo que uma se constitui como eventual sucedâneo da outra, pois o seu nascimento está condicionado à verificação, em processo executivo, da impossibilidade, imputável a uma conduta faltosa do administrador, de realização coerciva do débito que recai sobre a pessoa colectiva acoimada.
A interposição do conceito de dano marca a linha de diferenciação entre as duas relações. A ele se chega por um percurso de causalidade em cadeia: o não pagamento da coima é devido a insuficiência do património e este é causado por actuação culposa do administrador. Sobre este recai então o dever de indemnizar as consequências danosas desta conduta, traduzidas na não percepção, pela Administração, da importância monetária devida a título de coima. A efectivação da responsabilidade dos administradores remove esse dano, na medida em que faz entrar nos cofres do Tesouro o que este auferiria com o cumprimento do dever de pagar a coima.
Nesta visão dual, de diferenciação dos factos constitutivos e de títulos de chamamento à responsabilidade dos dois sujeitos sucessivamente obrigados, não há lugar para a aceitação da ocorrência de um fenómeno de transmissão, já que este pressupõe, no rigor dos termos, uma modificação subjectiva, uma sucessão na titularidade de um direito ou de uma obrigação, no âmbito de uma relação que não perde, por isso, a sua identidade.
9. A qualificação da responsabilidade dos administradores como civil permite, pois, resolver facilmente, em sentido negativo, a questão da ocorrência de um fenómeno de transmissão, na medida em que acentua e estabelece com nitidez máxima a diferenciação das situações debitórias da pessoa colectiva que cometeu a infracção e a dos administradores que podem ser chamados a responder: enquanto que a responsabilidade da pessoa colectiva é de cariz sancionatório, a dos administradores configura-se como puramente civilística, com função e natureza ressarcitórias.
Mas esta construção interpretativa da solução estatuída no artigo 7.º-A da RJIFNA, à luz da qualificação constante da epígrafe, não é incontroversa, podendo legitimamente questionar-se a adequação dessa qualificação à substância real do mecanismo de substituição debitória consagrado no corpo do preceito.
Na verdade, a dissociação total entre responsabilidade pela violação do dever tributário e responsabilidade pelo não pagamento do montante sancionatório correspondente parece algo artificial e de sentido precário, desmembrando uma posição subjectiva que forma uma unidade conceptual e vital — Nuno Brandão, pronunciando-se sobre o lugar paralelo do artigo 11.º, n.º 9, do Código Penal (responsabilidade subsidiária dos administradores pelo pagamento de multas e indemnizações em que a pessoa colectiva for condenada), não poupa palavras críticas, considerando que «esta distinção não é aceitável e constitui uma autêntica burla de etiquetas, ao travestir de responsabilidade pelo cumprimento da sanção aquilo que na realidade é uma autêntica transmissão da responsabilidade penal, ainda que operada por via legal» (“O regime sancionatório das pessoas colectivas na revisão do Código Penal”, Direito penal económico e europeu: textos doutrinários, III, Coimbra, 2009, 461 s., 469).
Na realidade dos efeitos prático-jurídicos, o Estado vai conseguir, por via indirecta, através do património de sujeitos não vinculados pela obrigação que, em termos sancionatórios, a coima consubstancia, a cobrança do débito correspondente. Chamando à colação o incumprimento de deveres funcionais perante um outro credor (a pessoa colectiva), a Administração Tributária, apoiando-se numa justificação de causalidade indirecta ou consequencial, para imputação de responsabilidade a um sujeito alheio à relação que dera origem à coima, vai obter o mesmo que obteria no caso de a prestação desta ser cumprida pela pessoa colectiva vinculada ao seu pagamento ou coercitivamente obtida à custa do seu património. “Forçando” a relatividade estrutural das relações de crédito, a Administração credora vai buscar ao modo como se desenrolou uma outra relação de que não é parte a justificação causal para a satisfação do seu crédito por um terceiro, parte passiva nessa outra relação.
Dever de prestar e dever de indemnizar confundem-se aqui, tanto mais que estamos perante uma obrigação pecuniária, susceptível, por natureza, de execução específica. Através do chamamento à responsabilidade dos administradores, o Estado faz valer a coercibilidade do direito insatisfeito à prestação da coima, removendo, desse modo, o facto antijurídico que o seu incumprimento representa e realizando, em pleno e em espécie, o seu interesse creditório.
10. Em face deste resultado, está naturalmente criada uma forte aparência de um fenómeno de transmissibilidade da responsabilidade pelo pagamento da coima. Por detrás do “biombo” da responsabilidade dos administradores pela insuficiência do património da pessoa colectiva, estaria a assunção, por aqueles, da posição de responsabilidade que a esta cabia, na relação com a Administração.
E convém frisar que a formulação do enunciado da norma em análise não rejeita, antes permite sustentar esta construção. Na verdade, o que nele se diz é que os administradores e equiparados “são subsidiariamente responsáveis […] nas relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas […]”. Isto é, em caso de insuficiência do património das pessoas colectivas, por eles culposamente causada, os administradores passam a figurar como sujeitos passivos nas relações de crédito que têm as multas e coimas por objecto, com a responsabilidade inerente.
O texto do artigo 8.º da RGIT, que sucedeu à norma em análise, sugere igualmente esta leitura do alcance da responsabilização que se faz recair sobre administradores e gerentes. Quer na epígrafe, quer em várias das suas normas, o que se estabelece é directamente a responsabilidade civil por multas ou coimas, sem a mediação de qualquer outro débito, de outra natureza e objecto.
E a colocação da obrigação no plano da responsabilidade não introduz qualquer quebra de nexo com o dever de pagar a coima, tendo por efeito a pretendida deslocação do regime para um terreno puramente civilístico de reparação de danos. Ela justifica-se apenas em atenção à fase de desenvolvimento da relação em que se situa o chamamento dos administradores. Já estamos num momento de exercício da acção creditória e de execução forçada, consequente à falta de cumprimento pelo devedor primitivo. Já se constatou que este não pagou, nem pode pagar, por insuficiência de meios. A posição debitória assumida pelos administradores configura-se então necessariamente como de responsabilidade - entenda-se, de responsabilidade patrimonial, a que cabe a qualquer devedor numa relação jurídica, traduzida na sujeitabilidade dos seus bens à execução.
Nesta construção, é no quadro unitário da relação que nasce com a imposição da coima que se inscreve a responsabilidade dos administradores. Com o não cumprimento do dever de a pagar não surge uma nova relação creditória (como aconteceria se estivéssemos perante uma responsabilidade extracontratual), tendo os administradores por sujeitos passivos. O vínculo de responsabilidade acompanha e garante, em estado de latência, a obrigação de pagar a coima, desde o seu início. O incumprimento dessa obrigação apenas activa essa responsabilidade, dando título à execução do património do devedor (pessoa colectiva). A insuficiência do património deste, quando imputável aos administradores, legitima, por sua vez, o seu chamamento à responsabilidade, dando-se continuidade ao processo, através do mecanismo da reversão.
E o regime processual correspondente a esta figura reforça a nota de que estamos perante uma efectivação da responsabilidade indissociavelmente ligada ao dever de pagar a coima. Não se exige a formação de novo título executivo, com base no vínculo que estrutura uma outra relação, autónoma em face da relação tributária de que emergiu aquele dever. É o mesmo título, aquele de que consta a obrigação (incumprida) de pagar a coima, que continua a ser processado, fundando a agressão do património dos administradores. A causação, a estes imputável, da insuficiência patrimonial da pessoa colectiva é apenas uma condição (no sentido preciso de facto sem o qual um determinado efeito se não produz) adicionalmente requerida para que tenha lugar a assunção, pelos administradores, da responsabilidade que não foi possível efectivar contra a pessoa colectiva.
11. Acresce que, a admitir-se que a mudança dos sujeitos responsáveis vem acompanhada por uma mudança da natureza da responsabilidade, então também é forçoso admitir que não são atingidos os fins que justificam a imposição da coima. De facto, e ainda que similares quanto à estrutura e objecto, os dois vínculos divergem, nesta óptica, quanto à função, não podendo, por falta de homologia funcional, a responsabilidade dos administradores substituir-se à da pessoa colectiva, “fazer as vezes” desta, como um mecanismo subrogatório da que se traduz, a título sancionatório, no pagamento da coima.
Responsabilidade contra-ordenacional e responsabilidade civil não são sobreponíveis, preenchem distintos espaços de imputação de condutas lesivas de valores juridicamente tutelados, resultam de ilícitos de natureza distinta, pelo que a responsabilidade civil não pode ser actuada subsidiariamente, em consequência da frustração da responsabilidade contra-ordenacional, para satisfazer, por via indirecta, os fins próprios desta.
Na responsabilidade contra-ordenacional, a vinculação ao pagamento de uma importância monetária, a título de coima, tem carácter instrumental da realização de fins de outra natureza, de reafirmação da ordem de condutas desrespeitada, de sanção ao agente por se ter desviado dos deveres decorrentes do exercício de determinada actividade social e de dissuasão de práticas futuras contra-ordenacionais. A sua função é puramente sancionatória e preventiva.
Já a responsabilidade civil visa a reposição de um equilíbrio patrimonial afectado por um facto danoso. Através da efectivação do crédito indemnizatório, ingressa na esfera do lesado, à custa do lesante, um valor correspondente à perda ou frustração de ganho, assim se eliminando o dano sofrido. A transferência patrimonial, em si mesma, satisfaz a finalidade primária da responsabilidade civil: a reparação de um dano.
Dados os distintos fundamentos e fins dos dois sistemas de responsabilidade, é problemático ver no não pagamento da coima um prejuízo patrimonial configurável como um dano de natureza civil, indemnizável ao abrigo da correspondente responsabilidade. Se o fim da coima não era a obtenção de uma receita (mas a imposição de um sacrifício económico, com fins repressivos e preventivos), dificilmente se pode considerar que o não pagamento (ainda que associado a outros factores) gera um dano enquadrável, como um dos seus pressupostos, na responsabilidade civil.
Contra essa visão patrimonialista da responsabilidade contra-ordenacional se pronunciou João Matos Viana (“A inconstitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelas coima aplicadas à sociedade. Comentário ao Acórdão do STA, de 4 de Fevereiro (processo n.º 0829/08) e ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009, de 12 de Março”, Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano II (2009), 199 s., 206), em termos que, a nosso ver, não merecem contestação:
«Ainda que o produto da coima, actualmente, possa assumir uma importância relevante nos orçamentos das autoridades administrativas (o que é legítimo e tem cobertura legal), a “coima”, enquanto figura jurídico-sancionatória (enquanto figura repressiva), com finalidades de advertência social, legitimada pela censura de uma culpa funcional, deve estar desligada da lógica economicista da mera garantia de obtenção de receita».
Em suma: não pode haver responsabilidade civil onde não estejam presentes todos os pressupostos que lhe dão nascença, designadamente o dano, cuja reparação constitui a razão de ser e a finalidade primária da figura. Não satisfaz esse requisito, em nosso juízo, e não obstante a qualificação legal, o regime aqui presente.
12. O fenómeno da responsabilidade civil conexa à criminal, de verificação corrente, não infirma, antes confirma, o que acaba de ser dito.
Na verdade, essa situação distingue-se bem da aqui em análise.
A responsabilidade civil conexa à criminal configura-se como uma cumulação de responsabilidades, derivada da circunstância de o mesmo facto lesar um bem jurídico-criminalmente tutelado e um bem protegido pelas normas de imputação da responsabilidade civil. Sendo assim, só pela activação simultânea de ambas as responsabilidades se satisfazem os valores e os interesses que fundam cada uma delas.
Na responsabilidade, dita civil, que recai sobre os administradores e gerentes por lhes ser imputável uma situação de insuficiência patrimonial da pessoa colectiva, causadora do não pagamento de uma coima em que esta fora condenada, o mecanismo da responsabilidade surge, inicialmente, pela lesão de um único bem, que desencadeia a aplicação da coima, no quadro da responsabilidade contra-ordenacional. Em caso de pagamento da coima, nesta se esgota a reacção à infracção cometida, com satisfação plena das razões que a justificam. É em face do incumprimento daquele dever e da constatação da inviabilidade da sua execução forçada que a Administração, ainda que lançando mão de uma imputação distinta da que servira de base à responsabilização da pessoa colectiva, vincula os administradores a um débito de responsabilidade, tendo por objecto o valor patrimonial da coima não paga.
Isto é, a responsabilidade, ainda que qualificada como civil, não nasce autonomamente, à partida, pela verificação simultânea dos seus pressupostos conjuntamente como os da responsabilidade contra-ordenacional. Está umbilicalmente ligada a esta, só surgindo sequencialmente, a título subsidiário, em razão da impossibilidade de satisfação, pelo património do devedor originário, da coima em que a responsabilidade contra-ordenacional se traduz. Não é em consequência do mesmo facto primário de responsabilização, de projecção lesiva bifrontal, tanto no plano da responsabilidade contra-ordenacional, como no da responsabilidade civil, que esta nasce. É antes a impossibilidade de efectivação da responsabilidade que recai sobre a pessoa colectiva que leva a recorrer, para garantir a produção de um mesmo resultado patrimonial, à responsabilidade civil, posta a cargo de um outro sujeito, chamado a responder em função da sua actuação sobre o património do devedor da coima.
É justamente esta colocação da responsabilidade na dependência da falência do processo executivo do pagamento da coima (processo onde se constata a insuficiência do património das pessoas colectivas) que distancia o regime do artigo 7.º-A do RJIFNA do figurino da responsabilidade civil conexa com a criminal. Não estamos perante duas responsabilidades que correm em paralelo, conexionadas apenas pela identidade do facto responsabilizador e do sujeito responsável. Estamos perante a imputação de responsabilidade a uma certa categoria de sujeitos para suprir a inoperatividade prática da responsabilidade contra-ordenacional que recaía sobre a pessoa colectiva em falta.
13. Essa ligação genética comprova, em nosso juízo, que, com a imputação de responsabilidade aos administradores, não há qualquer desvio dos fins da relação que funda a execução: a relação de crédito emergente da aplicação de multas ou coimas pela prática de uma infracção contra-ordenacional. O que resulta da norma desaplicada, em correspondência com o seu teor literal, é a imposição aos administradores de uma posição de responsabilidade nas relações de crédito nascidas pela prática de uma infracção contra-ordenacional e tendo por objecto as multas ou coimas respectivas, não o surgimento de uma outra relação, dotada de natureza, objecto e fins próprios. com aqueles sujeitos por sujeitos passivos. É a satisfação das finalidades repressivas e preventivas dessas sanções que continua a estar na mira do legislador — “carácter marcadamente sancionatório” atribui Saldanha Sanches à responsabilidade tributária subsidiária, prevista no lugar paralelo do artigo 24.º da LGT (Manual de direito fiscal, 3.ª ed., Coimbra, 2007, 270). A responsabilização dos administradores e gerentes funciona ainda na órbita funcional da relação contra-ordenacional, como garantia suplementar de cumprimento dos deveres que, nesta, impendiam sobre a pessoa colectiva, perante a Administração.
A alteridade de sujeitos não obsta a este entendimento, dada a relação de representação orgânica que une as pessoas físicas responsabilizadas e a pessoa colectiva vinculada àqueles deveres. Em face desta, os administradores e equiparados não são quaisquer terceiros, mas sujeitos que integram os seus órgãos cimeiros. Como constructum jurídico, a pessoa colectiva, sem deixar de ser um centro de imputação jurídica autónomo, age necessariamente através da actividade dos indivíduos que compõem os seus órgãos. Dada essa relação interna, estes não podem ser vistos simplesmente como um “outro”, como sujeitos alheios à estrutura orgânica e operativa da pessoa colectiva. É da sua conduta, da forma como cumprem as funções de direcção e de execução que lhes cabem, que vai depender a actuação deste ente, designadamente quanto ao cumprimento de deveres perante a Administração Pública.
Por isso mesmo, a responsabilização dos administradores pode ser considerada um instrumento auxiliar de consecução dos objectivos repressivos e preventivos associados às multas e coimas. A possibilidade legal de verem o seu património afectado, em caso de não cumprimento, pela pessoa colectiva, dos débitos emergentes dessas sanções, é uma instigação suplementar para que os administradores actuem, no âmbito da sua função gestionária, de forma a que a pessoa colectiva mantenha uma situação patrimonial solvente, propiciadora da satisfação voluntária dessas obrigações, ou, pelo menos, da sua realização coactiva, por via da execução.
E é justamente atendendo à relação muito particular entre a pessoa colectiva e a pessoa física que nela exerce funções de administração que os fins que justificam a coima podem ser ainda alcançados com a imposição do seu pagamento a este último sujeito, apesar de ele não ser o autor da infracção que subjaz a essa sanção. Por isso, a adequação e a necessidade da medida não podem ser postas em causa.
14. Mas, se assim é, se a responsabilidade dos administradores se pode justificar como uma garantia adicional de satisfação dos fins das medidas sancionatórias em causa, mostrando-se funcionalmente adequadas a atingi-los, cumpre indagar se tal não tem como consequência inevitável o admitir-se que estamos perante uma transmissão da responsabilidade contra-ordenacional.
A responsabilidade dos administradores é também qualificada, pela norma em causa, como responsabilidade subsidiária. A designação pode admitir-se, como conotação da forma como se articulam entre si as duas responsabilidades, a que vincula a pessoa colectiva e a que vincula os administradores. O nascimento da segunda está dependente da não satisfação do direito do credor no seio da primeira, pelo que esta situação funciona como uma espécie de pressuposto negativo da constituição da responsabilidade que passa a recair (ou a recair também) sobre os administradores, já que estes são chamados a responder na decorrência da constatada impossibilidade de realização coactiva, à custa do património do devedor originário, da obrigação de pagar a multa ou coima.
Mas há que atentar nos termos precisos em que se processa essa responsabilidade. Ela não se activa apenas por força daquela vicissitude, ocorrida na esfera jurídica do devedor em falta. De facto, não basta a insuficiência patrimonial do devedor originário para que o devedor subsidiário seja chamado à responsabilidade, como é timbre de um regime de subsidiariedade autêntica. A isso tem que acrescer, como pressuposto necessário, um facto da autoria do devedor subsidiário e a ele imputável: a causação culposa da situação obstativa da satisfação do crédito emergente da multa ou coima. É esse dado que justifica que os administradores, ainda que não vinculados ao dever de pagar a coima, sejam responsabilizados pela não realização do crédito correspondente, em sede da execução movida, a título primário, contra o devedor.
Como acentua o Acórdão n.º 129/2009 — e independentemente da qualificação da responsabilidade por que opta —, é, pois, absolutamente certo que os administradores e gerentes respondem apenas quando verificado um facto próprio, autónomo em relação à infracção contra-ordenacional, com base “num comportamento pessoal”. Ainda que como condição primeira da situação de responsabilidade esteja a impossibilidade de efectivar as consequências sancionatórias dessa infracção, contra a pessoa colectiva que a cometeu, na génese última dessa situação releva, como factor adicional sine qua non, uma conduta própria, determinante daquela impossibilidade.
Não há, assim, a automática transposição, sem mais, para a esfera de um sujeito, da responsabilidade inicialmente gerada na esfera de um outro, por força de factores exclusivamente atinentes à esfera jurídica deste último. A norma não põe a cargo dos administradores uma responsabilidade por factos alheios à sua esfera de domínio e de actuação voluntária. Antes os vincula ao pagamento de um débito para cuja insatisfação foi causalmente determinante uma conduta pessoal culposa.
Este requisito, se não permite, em nosso entender, a “conversão” do valor patrimonial da coima em “dano” (como frustração da aquisição de um valor patrimonial pelo credor), com a consequente qualificação da responsabilidade como “responsabilidade civil”, autonomiza-a suficientemente, evidenciando que estamos perante uma responsabilidade com um fundamento não inteiramente coincidente com o da originária.
O chamamento do gerente ou administrador à responsabilidade não se dá por força dos mesmos factores de imputação que conduziram à responsabilidade da pessoa colectiva, meramente redireccionados, por um mecanismo de transmissão, para a esfera debitória daquele sujeito. Dá-se porque esse sujeito «incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o pagamento da coima em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva» (Acórdão n.º 150/2009).
Daí que esteja assegurada a conexão da sanção com a prática de actos ou omissões por aqueles que a sofrem, mesmo que se admita, na esteira do que acima defendemos, uma comunhão de natureza das duas responsabilidades, o que implica atribuir natureza sancionatória também à que recai sobre os administradores. As consequências sancionatórias a que os administradores ficam sujeitos poderiam ter sido por eles evitadas, mediante práticas de gestão não culposas.
Ora, quando carregado com o sentido valorativo adveniente do princípio da pessoalidade das penas que o informa, o conceito de transmissão não abrange situações deste tipo. Não dispensando a solução em juízo, como elemento da matriz de imputação da responsabilidade, um pressuposto ligado à conformação, por vontade própria, da actuação do sujeito subsidiariamente responsável, ela satisfaz suficientemente, quanto aos pressupostos da responsabilidade, o princípio da pessoalidade, não comprometendo os valores que lhe subjazem.
15. Mas, se assim é quanto ao fundamento da responsabilidade, o mesmo não se pode dizer quanto ao seu objecto.
De facto, se a culpa imputável ao responsável é condição do nascimento da situação de responsabilidade, ela é inteiramente desconsiderada na determinação da sanção aplicável. Na concretização da medida da coima, é completamente ignorado aquele factor atinente à pessoa do responsável, sendo-lhe aplicado o montante sancionatório que resultara da valoração da conduta de um outro sujeito, devedor originário. A responsabilidade do revertido não é graduável em função das circunstâncias que lhe dizem pessoalmente respeito, como a modalidade de culpa, a sua gravidade, a sua situação económica.
O regime processual da reversão associado a esta imputação de responsabilidade não faz mais do que confirmar, com evidência reforçada, o que, no respeitante ao objecto da responsabilidade, já resulta do enunciado normativo do artigo 7.º-A do RJIFNA. A responsabilidade dos administradores pressupõe que, em momento anterior, tenha sido estabelecida a responsabilidade contra-ordenacional da pessoa colectiva, com aplicação de uma coima ou multa. Esta decisão punitiva da Administração Tributária faz nascer uma relação de crédito, tendo por sujeito passivo a pessoa colectiva em falta e por objecto a prestação pecuniária em que se traduz qualquer daquelas sanções. O montante em dívida é, naturalmente, fixado por factores exclusivamente atinentes à esfera do autor da infracção. A responsabilidade dos administradores constitui-se posteriormente, quando se constata, no decurso da execução movida contra o devedor originário, a “insuficiência do património” deste, culposamente causada pelos administradores. É para esta situação que o artigo 7.º-A estatui a responsabilidade subsidiária destes sujeitos “nas relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas àquelas entidades” [as pessoas colectivas]. Ao enunciar, nestes termos, a responsabilidade dos administradores, a norma está a prescrever que o quantitativo que lhes vai ser exigido (seja qual for o modo processualmente operativo dessa imposição) é o da multa ou coima a que estava sujeita a pessoa colectiva. Ter responsabilidade patrimonial numa relação de crédito não pode, na verdade, significar outra coisa que não seja ficar obrigado à satisfação desse crédito. E o crédito em causa é o que tem por objecto as coimas ou multas aplicadas à pessoa colectiva.
Deste ponto de vista, do ponto de vista do objecto da responsabilidade dos administradores, é indiscutível que eles respondem por uma dívida alheia, uma dívida de responsabilidade cujo montante é fixado com total independência do pressuposto subjectivo que levou à identificação da pessoa do responsável subsidiário.
Evidencia-se aqui, em pleno, a função garantística que a responsabilidade dos administradores primacialmente desempenha. Ainda que a responsabilidade não dispense o estabelecimento de uma conexão causal com um comportamento censurável dos responsáveis, uma vez satisfeito este requisito, estes vão responder como responderia o devedor da coima, e não em função da sua própria conduta. Posto que dependente, no seu surgimento, de um facto próprio, a responsabilidade dos administradores acaba, assim, por se configurar como uma responsabilidade por uma dívida de outrem: o que a Administração Tributária podia exigir da pessoa colectiva, por uma infracção a ela imputável, passa a poder exigi-lo dos administradores.
Estes sujeitos só não intervêm como puros garantes justamente porque a responsabilidade destes últimos constitui-se à margem de qualquer avaliação do seu contributo pessoal para a insatisfação do crédito. Sendo contrário à situação assegurada, esse resultado basta para que seja accionada a responsabilidade do garante.
Não é esse, como desenvolvidamente vimos, o figurino da solução aqui em juízo. A exigência de culpa própria, como condição da responsabilidade, permite sustentar que esta visa também finalidades repressivas e preventivas, conjugando-se a função de garantia com a função sancionatória – no sentido da combinação de ambas as funções, quanto à solução paralela constante do artigo 24.º, n.º 3, da LGT, cfr. Jónatas Machado/Vera Raposo, “A responsabilidade subsidiária dos TOC’S (Algumas considerações constitucionais a propósito do art. 24.º/3 da LGT”, Fiscalidade, 2007, 5 s.).
Simplesmente, nesse mix legal, é a primeira que acaba por prevalecer, tendo em conta que a culpa do responsável releva apenas para o se da responsabilidade, mas não para o quantum do seu objecto. Ao não fazer decorrer quaisquer consequências, no plano da fixação da coima ou multa aplicável, do juízo concreto quanto à censurabilidade da conduta do responsável, designadamente quanto ao seu grau de culpa, a solução afasta-se, na verdade, da que resultaria de um puro critério sancionatório, para atender apenas à intenção de satisfazer o montante integral do crédito correspondente à coima. Poderá, porventura, dizer-se, neste sentido, que a função repressiva é instrumentalizada (e subordinada) a fins de garantia.
16. Em face do exposto, a questão de constitucionalidade que nos ocupa pode ser formulada, em último termo, como sendo a de decidir da admissibilidade constitucional de um regime sancionatório em que a medida da coima não depende da avaliação, em concreto, do grau de culpa do responsável e das circunstâncias específicas que rodearam a sua actuação.
Assim posta, a questão apresenta fortes atinências, quanto à valoração que suscita, com a da admissibilidade de sanções fixas, uma vez que, tal como nestas, deparamos com a insusceptibilidade de individualização, pelo julgador, da sanção a aplicar ao revertido.
O tema tem sido objecto de numerosas pronúncias deste Tribunal, justificando-se dedicar alguma atenção reflexiva à linha de orientação que tem prevalecido.
Em matéria criminal, tem sido constante e reiterado um juízo de proibição constitucional de penas fixas, em resultado da aplicação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade (cfr. os Acórdãos n.ºs 202/2000, 203/2000, 95/2001, 70/2002, 485/2002 e 124/2004).
Pode ler-se, por exemplo, neste último aresto:
«(…) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
(…) Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e. obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
Ora isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes.
(…) A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcionada à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da proporcionalidade».
Mas o Tribunal também tem vincado, com clareza, que as razões contrárias à admissibilidade da cominação de penas fixas para ilícitos de natureza criminal «não são transponíveis, sem mais, para a apreciação da conformidade constitucional das penas pecuniárias fixas estabelecidas nos restantes espaços sancionatórios» (Acórdão n.º 344/2007).
Desenvolvendo essa ideia, escreveu-se neste aresto, a propósito de uma multa fixa, em caso de utilização de transporte colectivo de passageiros sem título válido:
«Deste modo, não pondo em dúvida que os princípios da proporcionalidade e da igualdade e mesmo o princípio da culpa também vinculem o legislador na configuração dos ilícitos contravencionais (como nos de contra-ordenação) e respectivas sanções (…) é diferente o limite que deles decorre para a discricionariedade legislativa na definição do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da situação.
Designadamente, não ocorre aqui colisão com nenhum dos preceitos constitucionais em que se funda a violação do princípio da culpa, que é o nuclear na fundamentação da referida jurisprudência do Tribunal a propósito da ilegitimidade constitucional de penas criminais fixas. Na verdade, não está em causa minimamente o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1) porque a multa contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão sucedânea. E só de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma sanção estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na “Constituição criminal”.
(…) Assim entendido, o princípio da culpa pode ser pressuposto da imposição da sanção (fundamento), mas não é um factor constitucionalmente necessário da sua medida concreta (limite individual), não significando a cominação de uma multa contravencional fixa, por si só, a violação dos artigos 1.º e 27.º, n.º 1, da Constituição».
Este juízo, firmado a propósito de uma contravenção punida com multa, foi expressamente estendido às contra-ordenações punidas com coima, “porque estas sanções significam exactamente o mesmo na esfera jurídica do respectivo destinatário: apenas e só sacrifício patrimonial”.
Pode concluir-se deste juízo, tomado em Plenário, que o Tribunal, não rejeitando a vigência, no domínio contra-ordenacional, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, admitiu uma diferente gradação da sua força impositiva, nessa área sancionatória.
No caso concreto, o Tribunal pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da cominação da multa fixa em apreciação. Mas, nessa decisão, pesaram decisivamente três factores especificamente caracterizadores da medida sancionatória em causa.
Foi entendido, por um lado, que ela aparecia «como razoavelmente proporcionada relativamente à gama de comportamentos susceptíveis de recondução ao concreto tipo de ilícito» o que, só por si, garantia um respeito adequado pelos princípios em presença.
Salientou-se também estarmos em face da prestação de um serviço em massa «em que a eventual diversidade das motivações individuais é pouco significativa no que revela de atitude perante a ordenação do comportamento social que se quer assegurar e é indiferente no plano das consequências desse comportamento para o regular funcionamento do sistema de transportes colectivos de passageiros».
Considerou-se, por último, que, sendo a multa não graduável «determinada por um método de cálculo que ainda reflecte a gravidade concreta da infracção», ela «não parece afastar-se de montantes razoavelmente suportáveis pelo comum das pessoas». Tratando-se, como no caso, de quantias de montante pouco elevado «haverá um claro desfasamento entre o investimento na recolha séria de elementos para essa tarefa diferenciadora e a sua expressão prática, o que também é lícito ao legislador levar em conta, numa afectação racional de meios».
Sendo estes fundamentos de decisão especificamente atinentes à norma em juízo, deixou-se em aberto a posição a tomar quanto a configurações normativas de multas ou coimas não individualizáveis que não obedeçam ao mesmo figurino.
Ora, nenhum desses fundamentos pode valer, quanto à norma sub judicio.
Há que ponderar, antes de mais, que, neste caso, a total insensibilidade a factores pessoais, na determinação da medida da sanção, não resulta apenas da irrelevância de elementos de responsabilização reportados à culpa, em concreto, do responsável. É a própria moldura sancionatória aplicada que é fixada em função de um tipo de agente que não corresponde ao do sujeito que, a título subsidiário, vem a ser responsabilizado. Na verdade, pessoas colectivas e pessoas físicas são entes morfologicamente bem distintos, com estrutura e grandeza de património tipicamente diferenciáveis. Em resultado, a incidência patrimonial subjectiva, o “grau de sacrifício” que uma mesma multa ou coima comporta, não são idênticos, quando aplicadas a uma pessoa colectiva ou a um sujeito individual. O que o legislador, de forma praticamente constante e por um imperativo de justa medida, leva em conta, fixando valores mais elevados para os limites mínimo e máximo das sanções a aplicar a entes colectivos.
Tal como vem fixada no artigo 7.º-A do RJIFNA, a responsabilidade subsidiária subverte esse critério diferenciador, ao pôr a cargo do administrador o pagamento de uma multa ou coima fixadas dentro de uma moldura estabelecida por reporte a uma categoria de sujeitos de natureza distinta — a pessoa colectiva responsável pela infracção tributária que deu motivo à sanção. Porque determinadas dentro de uma moldura ajustada à natureza própria da personalidade colectiva do devedor primário, a multa ou coima, quando passam a incidir, em igual medida, sobre a pessoa individual chamada, a título subsidiário, à responsabilidade, revelam-se, à partida, desproporcionadamente agravadas. E, ao parificar, quanto ao objecto, situações de responsabilidade que, pelo menos do ponto de vista da natureza do sujeito responsável, são estruturalmente desiguais, a solução gera desconformidades com o que o princípio da igualdade exigiria.
Para além desta inadequação que contamina, in radice, todo o processo sancionatório da conduta culposa dos administradores, não pode ignorar-se que esta, pela heterogeneidade de comportamentos potencialmente englobados, não é susceptível de recondução a um tipo de ilícito e a um grau de culpa tendencialmente uniformes. Não pode dizer-se, assim, que a sanção apareça aqui “razoavelmente proporcionada à gama de comportamentos susceptíveis de recondução ao concreto tipo de ilícito”.
A necessidade, quanto à responsabilidade dos administradores, de diferenciações casuísticas minimamente conectadas com a valoração, em concreto, da sua conduta, afigura-se aqui incontroversa, para que não se perca toda a ligação, ao nível da determinação da sanção, com o princípio da culpa. Dada a diversidade de situações possíveis e o montante elevado que a multa ou coima podem atingir, essas diferenciações são susceptíveis de assumir uma expressão prática significativa. E essa graduação da responsabilidade do revertido, não obstante o carácter expedito da reversão, não encontra dificuldades insuperáveis, tendo até em conta que ela é precedida da sua audição e deve ser fundamentada — como hoje expressamente se comina no artigo 23.º, n.º 4, da LGT, mas já resultava de princípios gerais.
17. O não atendimento mínimo de limites sancionatórios decorrentes do princípio da culpa abre a porta a que os princípios da igualdade e da proporcionalidade resultem também insatisfeitos, e de forma agravada, dado o desajustamento da própria moldura aplicável, prevista para infracções cometidas por pessoas colectivas. Uma negligência ligeira na condução da gestão pode ser sancionada com coimas de elevado montante, desproporcionado em relação à gravidade do ilícito e da culpa e gerador de situações de tratamento infundadamente inigualitário.
Não se contesta que o princípio da culpa não tem, em matéria contra-ordenacional, o mesmo significado e valência axiológica que lhe cabem, em sede jurídico-penal, desde logo porque a censura não encerra, naquele âmbito, um juízo de desvalor ético-jurídico dirigido à personalidade do agente. Nem, por outro lado, à sanção estão associados quaisquer efeitos estigmatizantes. Mas esse diferencial de força impositiva não pode levar a admitir sanções estabelecidas por factores inteiramente alheios à conduta culposa do agente, numa objectivação rigidamente fixa de montantes sancionatórios, sem qualquer correlação (ainda que apenas em termos limitativos) com o seu pressuposto subjectivamente fundante. Em si mesma, mas, sobretudo, pela sua potencial projecção na ofensa a valores constitucionais de vigência incontroversamente geral, como os da igualdade e da proporcionalidade, uma tal denegação de qualquer eficácia delimitativa à culpa do agente do facto responsabilizador apresenta-se como constitucionalmente desconforme.
Conclui-se, pois, pela inconstitucionalidade do artigo 7.º-A do RJIFNA, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
7. Por confronto com a decidida no Acórdão n.º 481/2010, a questão de constitucionalidade que está em juízo nos presentes autos distingue-se, para além da diferente enunciação da norma que a suscita, pelo facto de o seu objecto expressamente abranger o mecanismo de reversão da execução fiscal, como meio de efectivar a responsabilidade subsidiária dos administradores.
Mas, quanto à primeira nota distintiva, o teor da norma do artigo 8.º do RGIT em nada se opõe à valência, em relação a ela, da fundamentação desenvolvida em face da norma do artigo 7.º do RJIFNA; quanto à segunda, ela só a reforça, por transparentemente revelar, no plano da tramitação processual, a impossibilidade de adequação do montante da coima à valoração dos factores próprios de responsabilização dos administradores.
Na verdade, a norma do artigo 8.º do RGIT, ao determinar que os administradores são “subsidiariamente responsáveis pelas multas ou coimas” aplicadas às pessoas colectivas, de igual modo deixa claro que o objecto da responsabilidade está predeterminado, de forma rígida, pela responsabilidade que cabia a outro sujeito, de diferente natureza, como sanção pela infracção por este cometida. Na fixação do objecto da responsabilidade dos administradores ou gerentes, não se abre espaço à mediação da ponderação valorativa da sua conduta, pelo que, preenchida a condição subjectiva da imputação, a sua responsabilidade é decalcada, de forma “cega” e mecanicista, da que impendia sobre o sujeito contra-ordenacionalmente punido.
E o congénito modo operativo do mecanismo da reversão da execução fiscal, previsto, no artigo 23.º da LGT, para efectivação da responsabilidade subsidiária, não permite outra solução que não seja esta. A obrigação que está a ser executada é a que recai sobre a pessoa colectiva – a única que consta do título executivo. O objecto da responsabilidade deste sujeito é uma coima resultante de uma infracção tributária por ele cometida. A responsabilidade dos administradores constitui-se posteriormente, quando se constata, no decurso da execução, a inviabilidade da cobrança do montante da coima à custa do património do devedor originário. Mas a mudança subjectiva da instância, ainda que condicionada por factores da esfera pessoal do novo responsável, deixa intocado o objecto da citação para pagamento e da (eventual) execução, que permanece o mesmo que consta do título, ou seja, o quantitativo monetário correspondente à coima a que estava sujeita a pessoa colectiva.
A fixação do objecto da responsabilidade dos administradores mostra-se, assim, absolutamente insensível às circunstâncias subjectivas da esfera destes sujeitos, muito em particular ao grau de censura que mereça a prática gestionária que conduziu à não satisfação, pela pessoa colectiva, do débito da coima.
Ora, o atendimento desse factor é condição da observância dos princípios da proporcionalidade (como imperativo de justa medida) e da igualdade.
Justifica-se, pois, quanto à presente questão de constitucionalidade, o mesmo juízo de inconstitucionalidade emitido no Acórdão n.º 481/2010 – e com fundamento reforçado, tendo em conta a nova dimensão nela incorporada, respeitante ao modo de efectivação, pelo mecanismo da reversão, da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, com as alterações posteriores), na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal, efectivada através do mecanismo da reversão da execução fiscal.
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos. Voto a decisão, nos termos da fundamentação anexa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Em causa no presente processo está a norma do artigo 8º do RGIT “quando interpretado no sentido de que aí se consagra uma responsabilidade subsidiária pelas coimas que se efectiva através do mecanismo da reversão fiscal contra os gerentes e administradores da sociedade devedora”.
No acórdão nº 481/2010, desta secção, dissentimos do juízo de inconstitucionalidade formulado em relação à norma (idêntica à actualmente em apreciação) contida no artigo 7º do RJIFNA, uma vez que não perfilhávamos a construção, acolhida nesse acórdão, de que a responsabilidade prevista nessa disposição não podia revestir-se de natureza civil. Entendemos com efeito que não está vedado ao legislador responsabilizar civilmente os gerentes e administradores de uma sociedade por um comportamento próprio traduzido na causação culposa da situação criadora da impossibilidade de satisfação do crédito emergente de uma coima imposta à sociedade em que tenham exercido responsabilidades de administração ou gestão. Mas antecipáramos já que poderiam não estar isentos de censura constitucional os termos de efectivação dessa responsabilidade (maxime através do mecanismo da reversão). Só que tínhamos para nós que a desconformidade constitucional não estaria na previsão daquele tipo de responsabilidade (resultante do artigo 7º do RJIFNA como do artigo 8º do RGIT), mas em algumas modalidades da sua efectivação, que àqueles preceitos não podiam ser directamente reconduzidas mas que implicavam a mobilização de outros locais do sistema.
2. A norma ora sub judice constitui precisamente uma exemplificação da hipótese que na altura configurámos. Na verdade, está agora em causa a dimensão normativa que prevê a efectivação da responsabilidade subsidiária, prevista naquelas disposições, dos gerentes e administradores da sociedade devedora, através do mecanismo da reversão, pelas coimas em que aquela haja sido condenada.
Assentando em que não é inconstitucional a responsabilização de gerentes e administradores pelo comportamento pessoal que, ao provocar a situação de incumprimento da sociedade, frustrou a cobrança coerciva do valor correspondente à coima, cumpre agora indagar se a efectivação daquela responsabilidade, pelo mecanismo da reversão, ao abrigo do artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, será desconforme com os princípios constitucionais.
Parece-nos que a resposta afirmativa se impõe. Na verdade, o chamamento daqueles sujeitos à execução faz-se por reversão desta, baseada no título executivo que serviu para a instauração da execução contra a sociedade. Não comportando tal título a responsabilização dos administradores e gerentes pelo comportamento pessoal que terá conduzido à diminuição patrimonial da sociedade que a impossibilitou de pagar as coimas, o prosseguimento da execução, nele baseada, contra aquelas entidades envolve uma execução sem título, que, ao implicar a mobilização do poder coercitivo do Estado contra sujeitos de direito cuja responsabilidade se não acha estabelecida, configura uma violação do princípio do processo equitativo previsto no artigo 20º, nº 1, da Constituição e, em particular, das dimensões de audiência e defesa que lhe são naturalmente inerentes.
3. Note-se que o que acima fica dito não implica a desconformidade constitucional do mecanismo da reversão da execução previsto no artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, mas apenas a da sua utilização fora do âmbito das execuções fiscais. Aqui, com efeito, os responsáveis subsidiários são chamados a responder pela dívida dos devedores originários, uma vez que, ao serem igualmente sujeitos tributários, por opção legal, estão também adstritos ao cumprimento daquela obrigação.
Enquanto redirecciona a cobrança da dívida tributária no interior do círculo dos obrigados ao seu cumprimento, o mecanismo da reversão limita-se a constituir uma opção ditada pelas exigências da economia processual, por isso dentro da margem de disponibilidade do legislador. Diversamente, quando utilizada para promover a execução para além do título que lhe serve originariamente de base, a reversão não pode deixar de conduzir a uma execução sem título, configurando uma manifesta violação do princípio do processo equitativo e em particular do direito de audiência e defesa incluídos no respectivo núcleo essencial.
4. Nestes termos, implicando a dimensão normativa em apreciação uma execução correspondente à efectivação de uma alegada responsabilidade, não titulada, e em qualquer caso de natureza distinta da dívida que é objecto do título revertido, entendi que ela implica uma violação do princípio do processo equitativo e do direito de audiência e defesa, o que me levou a acompanhar, com esta distinta fundamentação, a decisão a que o Tribunal chegou no presente processo.- Rui Manuel Moura Ramos.
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