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Processo n. 152/DPR
Plenário
ACTA
Aos quatro dias do mês de Janeiro de dois mil e onze, achando-se presentes o Excelentíssimo Conselheiro Presidente Rui Manuel Gens de Moura Ramos e os Exmos. Conselheiros Carlos José Belo Pamplona de Oliveira, Catarina Teresa Rola Sarmento e Castro, Ana Maria Guerra Martins, José Manuel Cardoso Borges Soeiro, Vítor Manuel Gonçalves Gomes, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Gil Manuel Gonçalves Gomes Galvão, Maria Lúcia Amaral, João Eduardo Cura Mariano Esteves, Maria João da Silva Baila Madeira Antunes e Joaquim José Coelho de Sousa Ribeiro, foram trazidos à conferência os presentes autos, para apreciação.
Após debate e votação, foi ditado pelo Excelentíssimo Conselheiro Presidente o seguinte:
I. Relatório.
1. Na qualidade de administrador do Banco de Portugal, o requerente A. vem solicitar ao Tribunal Constitucional o esclarecimento das seguintes dúvidas relativas à aplicação do regime jurídico de controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos, aprovado pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com as modificações introduzidas pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, e pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro:
i) Com que periodicidade deve ser cumprida a obrigação de actualização da declaração de património e rendimentos, prevista no n.º 3 do art. 2º da Lei n.º 4/83, isto é, qual o intervalo temporal relativamente ao qual deve ser verificada a ocorrência do acréscimo patrimonial efectivo em montante superior a 50 salários mínimos nacionais, em particular nos casos em que, como sucede com as acções representativas do capital cotado em bolsa, os elementos patrimoniais a declarar são potencialmente muito voláteis.
ii) Considerado o segmento normativo representado pela expressão “referente a alguma das alíneas do artigo anterior”, constante do n.º 3 do art. 2º da Lei n.º 4/83, qual o agregado relativamente ao qual deve ser verificada a ocorrência do acréscimo patrimonial efectivo em montante superior a 50 salários mínimos mensais.
iii) Como e com que periodicidade poderá ser verificada, relativamente à alínea a) do art. 1º da Lei n.º 4/83 – que respeita a um fluxo de rendimentos auferidos durante o período de um ano - a eventual ocorrência de um acréscimo patrimonial efectivo de montante superior a 50 salários mínimos nacionais.
iv) Qual o prazo para cumprimento, junto do Tribunal Constitucional, da obrigação declarativa.
2. Afigurando-se pertinentes as dúvidas suscitadas, importa resolvê-las ao abrigo do disposto no art. 109º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
II. Fundamentação
3. A Lei n.º 30/2010, de 2 de Setembro, procedeu à alteração do regime jurídico do controle público da riqueza dos titulares dos cargos políticos, aprovado pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, e revisto já pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, tendo tido na sua origem os Projectos de Lei n.º 219/XI e 226/XI.
Enquanto o Projecto de Lei n.º219/XI se destinou, através da alteração do art. 4º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, ao alargamento do “elenco dos titulares de cargos sujeitos a obrigação declarativa, passando a abranger os membros de órgãos de gestão de institutos públicos e de entidades reguladoras independentes e os gestores de empresas concessionárias de serviço público”, o Projecto de Lei n.º 226/XI teve por finalidade o aperfeiçoamento do regime do controlo público do património e rendimentos de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos “de modo a tornar mais efectivo o escrutínio público de acréscimos patrimoniais que se verifiquem durante o exercício de funções e cuja origem não seja perceptível com base no actual regime de declarações, e mesmo após a cessação de funções”.
Tendo por objecto a norma do artigo 2º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, o Projecto de Lei n.º 226/XI visou a substituição “do regime de apresentação anual de declarações por parte dos titulares de órgãos executivos” pela sujeição de todos os titulares obrigados ao dever de entrega de uma declaração de actualização, “sempre que se verifique um acréscimo patrimonial significativo”, de modo a assegurar-se que “o controlo público do património dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos estará sempre actualizado, passando a cumprir de uma forma mais efectiva os objectivos que levaram à sua consagração na lei”.
4. As modificações introduzidas pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, no regime jurídico do controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos consistiram, assim, na reconfiguração do universo dos sujeitos obrigados à apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais e, a par da ampliação do âmbito objectivo de tal declaração, na alteração dos pressupostos objectivos e subjectivos do dever de renovação da declaração previamente apresentada fora dos casos de recondução ou reeleição do titular vinculado.
As dúvidas suscitadas pelo requerente prendem-se com este último aspecto do regime.
5. De acordo com o disposto no n.º 3 do art. 2º da Lei n.º4/83, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, “sempre que no decurso do exercício de funções se verifique um acréscimo patrimonial efectivo que altere o valor declarado referente a alguma das alíneas do artigo anterior em montante superior a 50 salários mínimos mensais, deve o titular actualizar a respectiva declaração”.
Da confrontação do regime resultante da Lei n.º 30/2010, de 2 de Setembro, com aquele que constava do art. 2º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, revisto já pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, decorrem as seguintes modificações essenciais: fora dos casos de recondução ou reeleição do obrigado, o dever de renovação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais deixa de recair apenas sobre os titulares com funções executivas, passando a onerar todos os sujeitos vinculados pelo regime; a existência de tal dever passa a depender da verificação, no decurso do exercício de funções, de um acréscimo patrimonial efectivo que altere em montante superior a 50 salários mínimos mensais o valor declarado referente aos elementos incluídos no conteúdo da declaração de acordo com o art. 1.º; o cumprimento do dever de renovação deixa de sujeitar-se a qualquer periodicidade independente daquela verificação.
6. A primeira das dúvidas suscitadas pelo requerente diz respeito à periodicidade com que deverá ser cumprida a obrigação de actualização da declaração de património, rendimentos e cargos sociais, consistindo em saber qual o intervalo temporal durante o qual deverá subsistir o acréscimo patrimonial efectivo de montante superior a 50 salários mínimos nacionais, designadamente quando produzido por efeito da variação do valor de mercado das acções representativas do capital societário cotado em bolsa, uma vez tratar-se aqui de elementos patrimoniais potencialmente voláteis.
Embora a lei não coloque expressamente como pressuposto do dever de actualização da declaração em consequência da verificação de um acréscimo patrimonial efectivo de montante superior a 50 salários mínimos nacionais o de que este se consolide e subsista no património do obrigado durante um período temporal mínimo preciso, tem-se por certo que não foi dispensado um padrão de estabilidade incompatível com a possibilidade de entre os factos geradores do aumento patrimonial que fundamenta a obrigação de renovação abrangidos pela previsão normativa do n.º 3 do art. 2º se incluir também a hipótese em que aquele se produz por mero efeito, reflexo e contingencial, de circunstâncias alheias ao obrigado e pelo mesmo não desencadeadas.
Assim, sempre que o acréscimo patrimonial relacionado com a titularidade de acções representativas de capital societário cotado em bolsa se produzir apenas em consequência da flutuação do respectivo valor de mercado, falhará uma condição necessária a que sobrevenha o dever de actualização da declaração precedentemente apresentada e que consiste em o facto gerador do aumento patrimonial ocorrido se haver produzido mediante a intervenção do obrigado. Quanto à titularidade de acções representativas de capital societário cotado em bolsa, será este o caso de uma transacção de títulos geradora de um valor diferencial positivo superior a 50 salários mínimos mensais.
7. A segunda dúvida suscitada prende-se ainda com o disposto no n.º 3 do art. 2º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção agora resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, dizendo agora respeito à concatenação de tal previsão normativa com as alíneas que integram o art. 1º do mesmo diploma legal.
Sob a epígrafe “prazo e conteúdo”, o art. 1º dispõe que “os titulares de cargos políticos e equiparados e os titulares de altos cargos públicos apresentam no Tribunal Constitucional […] declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais, da qual constem:
a) A indicação total dos rendimentos brutos constantes da última declaração apresentada para efeitos da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ou que da mesma, quando dispensada, devessem constar;
b) A descrição dos elementos do seu activo patrimonial, existentes no País ou no estrangeiro, ordenados por grandes rubricas, designadamente do património imobiliário, de quotas, acções ou outras partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, bem como de carteiras de títulos, contas bancárias a prazo, aplicações financeiras equivalentes e desde que superior a 50 salários mínimos, contas bancárias à ordem e direitos de crédito;
c) A descrição do seu passivo, designadamente em relação ao Estado, a instituições de crédito e a quaisquer empresas, públicas ou privadas, no País ou no estrangeiro;
d) A menção de cargos sociais que exerçam ou tenham exercido nos dois anos que precederam a declaração, no País ou no estrangeiro, em empresas, fundações ou associações de direito público e, sendo os mesmos remunerados, em fundações ou associações de direito privado.
Uma vez que a alínea d) se refere a elementos insusceptíveis de exprimirem variações de ordem patrimonial, a problemática suscitada pelos termos a seguir pela conjugação do art. 1º com o n.º 3 do art. 2º, ambos da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, cinge-se às alíneas a) a c) daquele preceito.
Dispondo o n.º 3 do art. 2º que, “sempre que no decurso do exercício de funções se verifique um acréscimo patrimonial efectivo que altere o valor declarado referente a alguma das alíneas do artigo anterior em montante superior a 50 salários mínimos mensais, deve o titular actualizar a respectiva declaração”, pretende-se ver esclarecido se a medida do acréscimo patrimonial efectivo que fundamenta a obrigação de renovação se reporta globalmente ao conjunto dos elementos descritos nas alíneas a) a c) do art.1º – hipótese em que tal dever sobrevirá sempre que o valor dos elementos patrimoniais a declarar beneficie globalmente de um aumento em medida superior a 50 salários mínimos ainda que por efeito da soma do acréscimo valorativo parcelarmente obtido por elementos previstos em distintas daquelas alíneas – ou se tal obrigação suporá que o acréscimo valorativo em medida superior a 50 salários mínimos mensais se reporte a elementos patrimoniais incluídos na previsão da mesma alínea.
A formulação legal empregue aponta para esta última hipótese interpretativa.
Consistindo o pressuposto objectivo do dever de actualização na verificação de um acréscimo patrimonial efectivo que altere o valor declarado referente a alguma das alíneas do artigo 1º em montante superior a 50 salários mínimos mensais, o legislador parece ter pretendido indexar a medida do acréscimo patrimonial que fundamenta o dever de renovação ao agregado constituído pelo conjunto dos elementos previstos no interior de cada uma das referidas alíneas em termos de tal acréscimo ter de resultar da variação valorativa singularmente obtida por um dos elementos patrimoniais a declarar ou da soma do incremento de valor obtido por certos deles, contando, neste caso, que se trate de elementos incluídos na previsão da mesma alínea.
Tal interpretação, além de ser a que melhor se acomoda à semântica textual do preceito inserto no n.º 3 do art. 2º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, encontra ampla correspondência na estrutura teleológica da norma constante do art. 1º do mesmo diploma legal no sentido em que os agregados correspondentes à previsão de cada uma das respectivas alíneas a) a c) são, por um lado, em si mesmos suficientemente coesos e, por outro, de natureza entre si tão díspar que dificultam, designadamente para efeitos do estabelecimento da medida do seu incremento valorativo, uma consideração associada.
8. Relacionando-se ainda com a leitura conjugada das normas correspondentes aos artigos 1º e 2º, n.º 3, da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, a terceira das dúvidas suscitadas diz especificamente respeito à previsão da alínea a) daquele preceito legal.
Pretende-se saber, pois, em que momento deverá considerar-se produzido o acréscimo patrimonial efectivo, em medida superior a 50 salários mínimos mensais, do valor total dos rendimentos brutos constantes da última declaração apresentada para efeitos da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ou que da mesma, quando dispensada, devessem constar.
A apresentação da declaração para efeitos da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares constitui uma obrigação acessória dos sujeitos passivos de IRS e dispõe de um regime temporal próprio que se encontra fixado no art. 113º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 292/2009, de 13 de Outubro.
De acordo com a previsão do respectivo n.º 1, “os sujeitos passivos de IRS devem entregar anualmente uma declaração de informação contabilística e fiscal, de modelo oficial, relativa ao ano anterior, quando possuam ou sejam obrigados a possuir contabilidade organizada ou quando estejam obrigados à apresentação de qualquer dos anexos que dela fazem parte integrante”.
Segundo dispõe o n.º 2 do referido art. 113º, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 292/2009, de 13 de Outubro – em vigor, de acordo com o respectivo art. 2º, desde 1 de Janeiro de 2010 – tal declaração deverá ser enviada por transmissão electrónica de dados, até 15 de Julho, independentemente de esse dia ser útil ou não.
Resulta assim, quanto à alínea a) do art. 1º, que o dever de actualização da declaração de património, rendimentos e cargos sociais prescrito no n.º 2 do art. 3º se encontra indexado ao valor que resulta do cumprimento de um outro dever, de distinta natureza, este por sua vez reportado, de acordo com o regime jurídico respectivo, aos rendimentos do trabalho dependente, empresariais e profissionais, de capitais, prediais, incrementos patrimoniais e pensões (art. 1º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção conferida pelo art. 1º da Lei n.º 30-
G/2000, de 29 de Dezembro) obtidos no ano fiscal anterior, que coincide com o ano civil (art. 143º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares).
Assim, por força de tal indexação, a medida do acréscimo patrimonial deverá quantificar-se em função da evolução registada no parâmetro de que se parte, o que, considerado o carácter anual deste, pressuporá, por seu turno, o estabelecimento de uma ordem de grandeza homóloga mediante a sobrevinda do termo final do ciclo anual subsequente.
Deverá concluir-se, assim, que, no que diz respeito à alínea a) do art. 1º, existirá um dever de actualização da declaração de património, rendimentos e cargos sociais sempre que o valor total dos rendimentos brutos constantes da declaração apresentada para efeitos da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (ou que da mesma, quando dispensada, devessem constar) exceder em medida superior a 50 salários mínimos nacionais o valor total dos rendimentos brutos constantes da declaração que imediatamente antes daquela houver sido apresentada para os mesmos efeitos.
9. A quarta e última das dúvidas suscitadas prende-se com o prazo para cumprimento, junto do Tribunal Constitucional, da obrigação de apresentação da declaração actualizada.
Na ausência de previsão especial, tal prazo só pode ser o prazo geral de 60 dias previsto no art. 8º, n.º 2, da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, computado a partir do momento em que se verifica o facto gerador do acréscimo patrimonial que, de acordo com o disposto no n.º 3 do art. 2º daquela lei, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, fundamenta o dever de renovação. Quando referido a acréscimos que se reportem à al. a do art.º 1º o prazo conta-se a partir da data limite para a entrega da respectiva declaração de IRS.
III. Decisão.
O Tribunal Constitucional decide esclarecer, nos termos que precedem, as dúvidas suscitadas pelo requerente A. quanto à aplicação do regime jurídico de controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos, aprovado pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com as modificações introduzidas pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, e pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro.
Catarina Sarmento e Castro
Ana Maria Guerra Martins
José Borges Soeiro
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
Maria Lúcia Amaral
João Cura Mariano
Maria João Antunes
Joaquim de Sousa Ribeiro
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido apenas quanto à 4ª e última questão; em meu entender, aplicar-se-ia, no caso concreto, a norma transitória do artigo 2.º da Lei n.º 38/2010, pelo que o prazo seria de 90 dias.
Rui Manuel Moura Ramos
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