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Processo n.º 670/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B., Lda., pedindo a condenação desta no pagamento de honorários no montante de 3.400.000$00, acrescido de juros de mora contados desde 29 de Fevereiro de 2000 até integral pagamento, requerendo ainda que seja relegada “para liquidação em execução de sentença a fixação dos honorários relativamente ao processo pendente no Supremo Tribunal Administrativo”, identificado na petição inicial.
Por sentença de 5 de Setembro de 2006 a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo a Ré sido condenada a pagar ao Autor a quantia de €16.959,13, acrescida de IVA e de juros de mora (civis) e da que vier a liquidar-se em relação ao referido processo pendente.
Apelaram Autor e Ré e, por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12 de Julho de 2007, a sentença foi confirmada.
Esta decisão foi anulada pelo acórdão do Supremo Tribunal da Justiça, de 18 de Dezembro de 2008.
Por novo acórdão da Relação de Guimarães, de 26 de Outubro de 2010, foi negado provimento ao agravo e às apelações de ambas as partes.
A Ré, B., Lda., recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 24 de Junho de 2010, negou provimento ao recurso.
Consta de tal acórdão, na parte que ora releva, o seguinte:
“5. A recorrente alega que o acórdão recorrido deveria ter julgado que a sentença era nula, por falta de especificação dos fundamentos de facto (al. b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil).
No entanto, resulta da leitura da mesma sentença a indicação dos factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, que foram considerados para a decisão de direito, em obediência ao disposto no nº 2 do artigo 659º do Código de Processo Civil.
Não têm de constar da sentença as razões que levaram a essa prova, que figuram nos locais próprios (a lista de factos assentes e o julgamento da matéria de facto). Nem pode invocar-se a este propósito o nº 3 do mesmo artigo 659º, quando refere o “exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”: a sentença não procedeu à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tinham sido oportunamente apreciadas; nem tinha que apreciar, por não haver outros factos a julgar.
Nem o recorrente aponta meios de prova de que cumpra conhecer na sentença que nela tenham sido apreciados sem fundamentação.
Foram assim respeitadas as regras constitucionais e legais que obrigam à fundamentação das decisões judiciais; o recorrente confunde, manifestamente, a fundamentação da sentença, referida no nº 2 do artigo 659º do Código de Processo Civil, e a fundamentação do julgamento da matéria de facto, quando afirma que devem constar da sentença “os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constitui o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos em audiência de julgamento” , prevista no nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil.
Não merece assim qualquer censura o acórdão da Relação, quanto a este ponto; nem interpretou de forma inconstitucional os nºs 1, 2 e 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil, como sustenta a recorrente.”
A Ré recorreu então para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“B., LDA., recorrente no processo supra identificado, não se conformando com o acórdão que lhe foi notificado em 01/07/2010, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 07 de Setembro;
pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma dos nºs 1, 2 e 3, do artigo 659º, do Código de Processo Civil, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida;
a interpretação da referida norma no sentido de entender que na sentença basta indicar os factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, viola os princípios constitucionais do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respectivamente nos artigos 2º, 203º e 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa;
a questão da inconstitucionalidade foi expressamente suscitada nas alegações e nas conclusões do recurso de revista;
o presente recurso deve subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Nestes termos, requer a V. Exa que se digne admitir o presente recurso e mandar o mesmo subir, com o efeito próprio, seguindo-se os demais termos legais.”
Foi proferida decisão sumária que determinou:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante dos n.º 1, 2 e 3, do artigo 659.º, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual na sentença basta indicar os factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, quando a sentença não tenha procedido à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tenham sido oportunamente apreciadas e cuja fundamentação conste dos locais próprios;
b) Consequentemente, julgar improcedente o recurso interposto por B., Lda, para o Tribunal Constitucional, do acórdão proferido nestes autos pelo Supremo Tribunal de Justiça em 24 de Junho de 2010.
Este julgamento sumário foi apresentado com a seguinte fundamentação:
“1. Do objecto do recurso
Nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que “apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
A recorrente pretende ver sindicada a constitucionalidade, por violação dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respectivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da C.R.P., das normas constantes dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 659.º do Código de Processo Civil (C.P.C.), na interpretação segundo a qual na sentença basta indicar os factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória.
Uma vez que a interpretação normativa objecto de fiscalização por este Tribunal tem que coincidir com aquela que foi sustentada na decisão recorrida, para que o recurso constitucional possa ter um efeito útil, importa precisar o que foi enunciado na decisão recorrida quanto à interpretação em questão.
Aí escreveu-se que «resulta da leitura da (…) sentença a indicação dos factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, que foram considerados para a decisão de direito, em obediência ao disposto no nº 2 do artigo 659º do Código de Processo Civil», acrescentando-se ainda que «Não têm de constar da sentença as razões que levaram a essa prova, que figuram nos locais próprios (a lista de factos assentes e o julgamento da matéria de facto). Nem pode invocar-se a este propósito o nº 3 do mesmo artigo 659º, quando refere o “exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”: a sentença não procedeu à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tinham sido oportunamente apreciadas; nem tinha que apreciar, por não haver outros factos a julgar. Nem o recorrente aponta meios de prova de que cumpra conhecer na sentença que nela tenham sido apreciados sem fundamentação.»
Ou seja, na interpretação sustentada na decisão recorrida entendeu-se que na sentença basta indicar os factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória quando a sentença não tenha procedido à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tenham sido oportunamente apreciadas e cuja fundamentação conste dos locais próprios.
A precisão desta última circunstância é importante para delimitar a interpretação sustentada pela decisão recorrida e que deve ser objecto do presente recurso.
Nestes termos, deve este Tribunal apreciar a constitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 1, 2 e 3, do artigo 659.º, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, na sentença basta indicar os factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, quando não se tenha procedido à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tenham sido oportunamente apreciadas e cuja fundamentação conste dos locais próprios.
2. Do mérito do recurso
Os n.º 1, 2 e 3, do artigo 659.º, do C.P.C., na redacção que resulta do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, tem o seguinte teor:
“Artigo 659.º
Sentença
1 – A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
2 – Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
3 – Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
(…)”
No entender da Recorrente, estas normas, na interpretação que lhes foi dada pela decisão recorrida, seriam inconstitucionais, por violação “dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respectivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no artigo 205.º, n.º 1, da C.R.P., o qual determina que 'As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'.
A respeito deste dever de fundamentação das decisões judiciais pode ler-se no Acórdão n.º 151/99 (em ATC, 42.º vol., pág. 697):
“A exigência de fundamentação das decisões judiciais corresponde sem dúvida a um imperativo constitucional e constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito democrático.
Segundo o preceito constitucional invocado, a fundamentação das decisões judiciais está dependente da lei. O legislador ordinário goza de liberdade de conformação na definição do âmbito do dever de fundamentação, podendo garanti-lo com maior ou menor latitude.
Como este Tribunal sublinhou no acórdão nº 56/97 (publicado no Diário da República, II Série, nº 65, de 18 de Março de 1997, p. 3272 ss), a exigência constitucional nesta matéria limita-se a devolver ao legislador ordinário o encargo de definir o âmbito e a extensão do dever de fundamentar, conferindo-lhe ampla margem de liberdade constitutiva.
Tal não pode significar, evidentemente, discricionariedade legislativa susceptível de afastar o dever de fundamentar as decisões. Sobretudo quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução do objecto do litígio, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que justificam a decisão.”
Como se escreveu também no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/85 (ATC, 5.º Volume, págs. 467-468), citando Michele Taruffo (in “Notte sulla garanzia costituzionale della motivazione”, estudo publicado no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV, 1979, págs. 29 a 38) a fundamentação dos actos jurisdicionais “cumpre duas funções:
a) Uma, de ordem endoprocessual, afirmada em leis adjectivas, e que visa essencialmente:
— Impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão;
— Permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação;
— Colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente;
b) E outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com a referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de tudo tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão”.
Apesar da Constituição não determinar ela própria o alcance do dever de fundamentar as decisões judiciais, remetendo para o legislador ordinário a definição do respectivo âmbito, conforme escreveram Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa anotada”, 2º vol., págs. 798-799, 3.ª Edição, Coimbra Editora), “a discricionariedade legislativa nesta matéria não é total, visto que há-de entender-se que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (cfr. art. 2.º), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que justificam a decisão”.
Assim, não são, naturalmente, uniformes as exigências constitucionais de fundamentação, relativamente a todo o tipo de decisões judiciais.
Sobre o dever de fundamentação da sentença consagrado no Código de Processo Civil, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (em “Manual de Processo Civil”, pág. 653, da 2.ª Edição, da Coimbra Editora), a propósito do regime vigente antes da reforma de 95-96 (mas que, no que respeita à questão em causa nos autos, mantém actualidade), referem que:
“O tribunal colectivo tem de fundamentar a sua convicção quanto aos factos que considere provados (art. 653.º, 2).
Este dever de motivação não se confunde com o dever de fundamentação da sentença final, consagrado em todas as legislações processuais mais evoluídas. O primeiro refere-se apenas à matéria de facto e constitui uma das mais significativas inovações do Código de 1961, enquanto a fundamentação da sentença aponta apenas para a justificação da decisão final em face do direito substantivo aplicável.
A motivação das respostas positivas aos quesitos exige, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador (o depoimento do autor ou do réu, o laudo de um dos peritos, o depoimento de certa testemunha, o trecho de determinada carta, etc.), como se depreende do disposto no n.º 3 do art. 712.º, que admite o retorno do processo, da Relação ao tribunal de 1.ª instância, e a repetição de certas diligências instrutórias, a fim de se identificarem os meios concretos de prova decisivos para a convicção dos julgadores.”
Ainda segundo o entendimento destes autores (ob. cit., pág. 664):
“A sentença (final), traduzindo o resultado da aplicação do direito vigente aos factos tidos por provados, constitui o julgamento do aspecto jurídico da causa. Mas engloba, obviamente o julgamento da matéria de facto (efectuado no acórdão do colectivo, com as respostas ao questionário, e na especificação elaborada pelo juiz da causa).
Note-se, porém, que ao próprio juiz incumbido de proferir sentença pode caber o julgamento da matéria de facto.
Devendo considerar não escritas as respostas dadas pelo colectivo sobre factos que só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes reduzida a escrito, a ele incumbirá, obviamente, julgar a matéria de facto abrangida pelas respostas irrelevantes do colectivo.
É, por conseguinte, à matéria de facto constante da especificação, das respostas do colectivo ao questionário e da fixada efectivamente por ele próprio, que o juiz incumbido de proferir a sentença aplicará o direito substantivo correspondente.”
Neste mesmo sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (em Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, pág. 643, da Coimbra Editora) referem, em anotação ao artigo 659.º, do C.P.C., que “A aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta todos os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material. Na anterior decisão sobre a matéria de facto (do tribunal colectivo ou do tribunal singular que presidiu à audiência final), foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador (…). Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção dum meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante (…) independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase da condensação (…). Ao fazê-lo, o juiz examina criticamente as provas, mas de modo diferente de como fez o julgador da matéria de facto: não se trata já de fazer jogar a convicção formada pelo meio de prova, mas de verificar atentamente se existiram factos em que se baseia a presunção legal (lato sensu) e delimitá-los com exactidão para seguidamente aplicar a norma de direito probatório. Nomeadamente, o documento, o objecto da declaração confessória e o articulado de resposta no seu conjunto hão-de ser interpretados para se determinar o âmbito concreto dos factos abrangidos pela sua força probatória. Nos caso de presunção stricto sensu, o facto que lhe serve de base, quando não resulte provado por outro meio com força probatória legal (admissão, confissão ou documento), terá resultado do julgamento em audiência, o que pode explicar que a lei omita referir-se-lhe no art. 646-4 e n.º 3 do artigo ora anotado.”
No caso dos autos, perfilhando entendimento idêntico aos autores citados, a decisão recorrida entendeu que, resultando da sentença a indicação dos factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, não têm de constar da mesma as razões que levaram a essa prova, que figuram nos locais próprios (a lista de factos assentes e o julgamento da matéria de facto). Mais entendeu que não pode invocar-se a este propósito o n.º 3 do mesmo artigo 659.º, quando refere o “exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”, uma vez que a sentença não procedeu à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tinham sido oportunamente apreciadas; nem tinha que apreciar, por não haver outros factos a julgar.
Ora, é manifesto que este entendimento não ofende as normas constitucionais referidas pela Recorrente, não colocando em causa, designadamente, a exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais.
Com efeito, não tendo a sentença efectuado a apreciação de quaisquer provas (para além das que já tinham sido oportunamente apreciadas), esta basta-se com a discriminação dos factos julgados como provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, uma vez que figuram nos locais próprios (a lista dos factos assentes e o julgamento da matéria de facto) as razões que levaram a essa prova. Torna-se, assim, desnecessário repetir na sentença a motivação da decisão da matéria de facto, o que se traduziria na obrigatoriedade de reproduzir inutilmente a fundamentação anteriormente apresentada, procedimento que a Constituição não impõe, dado para tal não existir qualquer justificação ainda que na perspectiva do direito ao recurso.
Isto porque, ainda que as partes não reclamem do julgamento da matéria de facto (cfr. art. 653.º, n.º 4, do CPC), conforme referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (ob. cit., pág. 632), “(…) não se sana o vício da decisão: havendo contradição com a “especificação”, o juiz, na sentença, deve dela conhecer (art. 659-3); sendo a decisão deficiente, obscura ou contraditória, a Relação, em recurso, oficiosamente ou a requerimento da parte, conhece o vício, anulando a decisão (art. 712-4); havendo falta de fundamentação, a Relação, a requerimento da parte, determina que o tribunal que julgou a causa fundamente a decisão (art. 712-5). O recurso que venha a ser interposto da sentença abrange a decisão sobre a matéria de facto (art. 712-1) que, haja ou não reclamação, não pode ser objecto de recurso autónomo. Não há assim também recurso autónomo da decisão que decide as reclamações.”
Ou seja, constando dos locais próprios as razões que levaram à prova dos factos discriminados na sentença (assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória), não é pelo facto de tais razões constarem novamente da sentença que se reforçam as garantias de controlo da legalidade da decisão ou que se convence os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, ou que possibilita ao tribunal de recurso reapreciar a decisão da matéria de facto.
É manifesto, pois, que a interpretação normativa sindicada não ofende qualquer parâmetro constitucional, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC, negando-se provimento ao recurso.”
A recorrente reclamou desta decisão, invocando as seguintes razões:
A decisão sob reclamação sufragou o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que, resultando da sentença a indicação dos factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, não têm de constar da mesma as razões que levaram a essa prova, que figuram nos locais próprios (a lista de factos assentes e o julgamento da matéria de facto). Que por outro lado, não pode invocar-se a esse propósito o nº 3 do mesmo artigo 659º, do C. P. Civil, quando refere o “exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”, uma vez que a sentença não procedeu à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tinham sido oportunamente apreciadas; nem tinha que apreciar, por não haver outros factos a julgar.
Concluindo que tal entendimento não ofende as normas constitucionais referidas pela recorrente não colocando em causa, designadamente, a exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais.
Salvo o devido respeito e que é muito, a decisão reclamada carece de razão, porque está em contradição com os acórdãos deste Venerando Tribunal, designadamente o nº 56/97 e o nº 55/85, para além de não estar em conformidade com o âmbito e a extensão do dever de fundamentar na sentença, exigido pelo nº 2 do artigo 659º, do C. P. Civil.
Com efeito, conforme consta no acórdão nº 56/97, proferido por este Venerando Tribunal, a exigência constitucional de fundamentação limita-se a devolver ao legislador ordinário o encargo de definir o âmbito e a extensão do dever de fundamentar, conferindo-lhe ampla margem de liberdade constitutiva.
Tal não pode significar, evidentemente, discricionariedade legislativa susceptível de afastar o dever de fundamentar as decisões. Sobretudo quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução do objecto do litígio, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que justificam a decisão.
Assim, decorre da fundamentação explanado no referido acórdão que, às decisões judiciais que tenham por objecto a solução do objecto do litígio, como é o caso, sem margens para quaisquer dúvidas da sentença, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica através da exposição conciso e completo dos motivos de facto.
O que aliás é confirmado com toda a segurança, pelo disposto no nº 2 do artigo 659º, do C. P. Civil, o qual além dos seus restantes números, determina e impõe o conteúdo da sentença, em que refere “Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discrimar os factos que considera provados e …….”
Resulta, pois, da redacção do referido preceito que, na sentença têm de constar os fundamentos de facto e a discriminação dos factos considerados provados, por do texto do mesmo resultar claramente uma enumeração cumulativa.
Desse modo, quer o acórdão nº 56/97 proferido por esse Venerando Tribunal, quer o nº 2 do artigo 659º, do C. P. Civil, impõe que na sentença conste a fundamentação de facto, através da exposição concisa e completa dos motivos de facto.
Isto porque, o dever de fundamentação é uma garantia do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição, o qual no caso vertente, é definido e assegurado designadamente, pelo disposto no nº 2 do artigo 659º, do C. P. Civil, o qual impõe com toda a segurança que na sentença conste a fundamentação de facto.
Em virtude desta, ser necessariamente um antecendente da discriminação dos factos considerados provados e a matéria de direito estar enumerada imediatamente antes da decisão final.
Pelo que, a expressão contida no início do nº 2 do artigo 659º do C. P. Civil, “Seguem-se os fundamentos,...”, têm de dizer respeito à fundamentação de facto na sentença.
Por outro lado, como decorre designadamente, do acórdão do Tribunal Constitucional nº 55/85, a fundamentação dos actos jurisdicionais destina-se a cumprir duas funções:
a) Uma, de ordem endoprocessual e que visa essencialmente:
- Impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão;
– Permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação;
- Colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente.
b) E outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com a referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de tudo tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.
Ora, como é por demais evidente, uma sentença em que não conste nenhuma fundamentação de facto, não se mostra apta a cumprir com a função endoprocessual nem com a função extraprocessual.
Desde logo, a função endoprocessual não é cumprida porque não constando na sentença, nenhuns dos fundamentos de facto, as partes deixam de poder ter perfeito conhecimento da situação e ficam impedidas de poderem arguir a sua nulidade ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 668º, do C. P. Civil, em virtude de nela não constarem os fundamentos.
Porquanto, não constando os fundamentos na sentença, jamais as partes terão sequer a possibilidade de verificar se os inexistentes fundamentos estão em oposição com a decisão, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 668º, do C. P. Civil.
Acresce que, a não especificação dos fundamentos de facto na sentença, é causa do sua nulidade nos termos da alínea b) do nº 1, do artigo 668º, do C. P. Civil.
Na sentença que não conste qualquer fundamentação de facto, também é de todo impossível cumprir-se com a função extroprocessual da fundamentação, porque impede a possibilidade de um controlo externo e geral, em virtude de nela não constar nenhuma fundamentação factual.
Assim, com base na fundamentação exposta designadamente, nos acórdãos nºs 55/85 e 56/97, proferidos pelo Tribunal Constitucional, bem como no disposto no nº 2 do artigo 659º, do C. P. Civil, que é confirmado pela alínea b) do nº 1 do artigo 668º, do mesmo diploma legal, a sentença que não conste quaisquer fundamentos de facto ofende os princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respectiva mente, nos artigos 2º, 203º e 205, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos mais de direito, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser revogada a decisão sumária proferida pelo Exmo Juiz Conselheiro Relator deste Tribunal, declarando inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 659º, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual na sentença basta indicar os factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, quando a sentença não tenha procedido à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tenham sido oportunamente apreciadas e cuja fundamentação conste dos locais próprios, por a mesma não estar em conformidade com o consagrado nas normas dos artigos 2º, 203º e 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa e em virtude de não se mostrar apta a cumprir com as funções endoprocessual e extraprocessual subjacente à fundamentação.
Fundamentação
A decisão reclamada entendeu que a interpretação segundo a qual, em processo civil, na sentença basta indicar os factos provados, assentes na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória, quando não se tenha procedido à apreciação de quaisquer provas, para além daquelas que já tenham sido oportunamente apreciadas e cuja fundamentação conste dos locais próprios, não viola a imposição constitucional do dever de fundamentação das decisões judiciais.
O Reclamante insiste em que, mesmo nesses casos, esse dever exige que conste da sentença a fundamentação da decisão da matéria de facto.
Numa sentença que não aprecie quaisquer provas, limitando-se a reproduzir, na parte em que enuncia a matéria de facto apurada, o resultado das decisões tomadas nessa matéria em anteriores momentos processuais (na fase do saneamento e condensação ou em julgamento da matéria de facto, em resposta à base instrutória), uma vez que figuram nos locais próprios (a lista dos factos assentes e o julgamento da matéria de facto) as razões que levaram à prova desses factos, torna-se desnecessário repetir na sentença a motivação da decisão da matéria de facto, já que estaríamos perante uma reprodução inútil da fundamentação anteriormente apresentada.
Este tipo de sentenças, na realidade, não integra qualquer decisão sobre os factos apurados no processo, pelo não se lhes aplica o dever constitucional de motivação da decisão sobre matéria de facto, que este Tribunal tem imposto noutras situações, concordando-se com o juízo de não inconstitucionalidade efectuado pela decisão reclamada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por B., Lda.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de Dezembro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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