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Processo n.º 986/08
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorridos B., S.A. e C., S.G.P.S., S.A., foi proferida decisão sumária, em 18 de Junho de 2009, nos termos da qual se decidiu não conhecer do objecto do presente recurso.
2. Precedendo tal decisão sumária, foi proferido despacho pela Relatora, em 15 de Janeiro de 2009, nos termos do qual se convidou o recorrente a indicar quais as interpretações normativas pretendia que fossem apreciadas e qual a peça processual na qual foi suscitada aquelas inconstitucionalidade.
Sucede que, por requerimento apresentado em 29 de Janeiro de 2009, o recorrente veio invocar que a falta de decisão sobre uma questão prévia colocada no requerimento de interposição de recurso – a saber, a prática de um crime de denegação de justiça por parte dos titulares do tribunal recorrido, que (segundo o recorrente) caberia à Relatora neste Tribunal denunciar –, configuraria uma omissão de acto imposto por lei, nos termos do artigo 201º, n.ºs 1 e 2 do CPC, pelo que a posterior decisão sumária sempre estaria ferida de nulidade.
3. Notificado da decisão sumária, o recorrente apresentou novo requerimento, em 02 de Julho de 2009, através do qual se limitou a afirmar que o anterior requerimento, apresentado em 29 de Janeiro de 2009, não teria sido ainda alvo de pronúncia por parte da Relatora, pelo que reiterava o respectivo teor.
4. Em 28 de Julho de 2009, a Relatora apôs “Visto”.
5. Por acórdão proferido por esta conferência, em 11 de Novembro de 2009, procedeu-se a uma convolação do requerimento apresentado em 29 de Janeiro de 2009 – pois, com efeito, de uma verdadeira reclamação se tratava –, indeferindo-se a referida reclamação, nos seguintes termos:
«(…)
4. Apesar de dirigir expressamente o requerimento de fls. 99 à Relatora dos presentes autos, afigura-se evidente que o recorrente apenas pretende colocar em crise a própria decisão sumária proferida, invocando uma pretensa nulidade da mesma (a saber: a alegada omissão de denúncia da prática de um alegado crime, por força do artigo 245º do CPP e do artigo 201º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Justifica-se, portanto que se proceda à convolação deste requerimento em reclamação para a conferência., como tem sido, aliás, o entendimento unânime do Tribunal Constitucional que, para além, de proceder, invariavelmente, à apreciação de alegadas nulidades, em sede de reclamação (a título de exemplo, vejam-se os Acórdãos n.º 431/2000, n.º 135/2003, n.º 26/2004, n.º 67/2004, n.º 367/2004, n.º 65/2006, complementado pelo Acórdão n.º 282/2006, e n.º 283/2006, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), já teve mesmo oportunidade de frisar que a sede própria para discussão de alegadas nulidades de decisões sumárias proferidas é precisamente a reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do artigo 78º-A da LTC (assim, ver Acórdãos n.º 541/06 e n.º 709/07, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Assim sendo, restaria saber, face ao uso indevido de um meio processual que não se encontra previsto na lei que rege a tramitação dos recursos perante o Tribunal Constitucional, se a Relatora deveria rejeitar liminarmente tal requerimento – por manifesta ausência de previsão legal – ou se, pelo contrário, tal acto processual poderia ser aproveitado, mediante convolação em reclamação para a conferência prevista no n.º 3 do artigo 78º-A da LTC.
A este propósito, o Acórdão n.º 541/06 já afirmou a seguinte linha de raciocínio que ora se retoma:
“No caso dos presentes autos, optou-se, em vez do não conhecimento do “falso pedido de aclaração” com o consequente trânsito em julgado da decisão sumária, pela qualificação do pretenso “pedido de esclarecimento” como “reclamação para a conferência” da mesma decisão, o que ao Tribunal era lícito fazer, já que não está condicionado pela qualificação jurídica feita dessa peça processual pela parte apresentante, em manifesta desconformidade com a sua substância. Trata-se, no fundo, do cumprimento da regra, emergente do princípio da tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrado, que manda privilegiar as decisões de mérito em detrimento das decisões de mera forma, e que corresponde ao dever de os tribunais providenciarem oficiosamente pelo andamento regular e célere do processo (artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – CPC), determinando a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo (artigo 265.º-A do CPC), o que inclui a faculdade de convolação dos meios processuais incorrectamente utilizados (cf., a título de exemplo, o disposto no artigo 688.º, n.º 5, do CPC).
Nesta mesma linha jurisprudencial se inserem, por último, o Acórdão n.º 379/2006, que decidiu tratar como reclamação para a conferência um “requerimento de aclaração” de decisão sumária no qual não se apontava nenhum problema de interpretação desta, mas apenas se revelava discordância quanto à afirmação, nela contida, de que não fora definida pelo recorrente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, e o Acórdão n.º 427/2006, que desatendeu arguição de nulidade do Acórdão n.º 362/2006, arguição fundada em este Acórdão ter decidido como reclamação para a conferência um requerimento designado por “arguição de nulidade” de decisão sumária, referindo o Tribunal que, não obstante tal requerimento não ter sido formalmente designado pelo requerente como “reclamação para a conferência”, a verdade é que, atento o seu conteúdo, era esse o meio processual a que correspondia, sendo, por outro lado, inquestionável, desde logo por força dos princípios da economia e da adequação processuais, que o tribunal que proferiu certa decisão tem o poder-dever de corrigir a incorrecta qualificação jurídico-processual de certa pretensão do recorrente, tratando-a nos quadros da reclamação para a conferência quando, em termos substanciais, apesar de invocadas pretensas ou ficcionadas nulidades, o que se pretende é a pura e simples impugnação da decisão sumária proferida.”
Na linha da jurisprudência supra citada, reforça-se que a convolação do requerimento apresentado em reclamação para a conferência insere-se precisamente no pleno exercício dos poderes-deveres constitucionais que foram conferidos a este Tribunal e, em especial, do dever de respeito e de implementação do direito de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva, necessariamente célere (artigo 20º, n.ºs 1 e 4, da CRP) e que se traduz, no plano infra-constitucional, nos artigos 2º, n.º 1, 265º, n.º 1 e 266º, n.º 1, todos do CPC, aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC. Deste modo, impõe-se que este Tribunal conheça da questão colocada, mesmo que não tenha sido deduzida – de forma expressa – reclamação para a conferência.
E nem se diga que tal norma padece de qualquer inconstitucionalidade, pois é manifesto que assim não é, conforme já decidido pelo Acórdão n.º 402/09 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
5. Nos presentes autos, o recorrente invoca um requerimento apresentado, em 29 de Janeiro de 2009 (fls. 78 a 82), através do qual alegou que a alegada preterição de um dever de denúncia de alegado crime, por parte da Relatora, configuraria uma omissão de acto imposto por lei, pelo que o despacho que convidou o recorrente a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso padeceria de nulidade e, como tal, inquinaria subsequentemente qualquer decisão a proferir – incluindo a decisão proferida posteriormente proferida nos autos.
Diga-se, desde já, que não lhe assiste qualquer razão. Tendo o recorrente incluído uma “QUESTÃO INCIDENTAL” (fls. 66) no requerimento de interposição de recurso, através da qual pretendia que a Relatora procedesse à denúncia de um alegado crime de denegação de justiça, tal questão só seria susceptível de apreciação em sede de decisão sumária. Ora, o despacho de convite ao aperfeiçoamento (fls. 76) não constituía o momento processual adequado ao eventual conhecimento de tal questão. Assim, afigura-se evidente que aquele despacho não padece de qualquer nulidade.
Após notificado da decisão sumária que rejeitou conhecer do objecto do recurso, o recorrente vem afirmar que “o dito requerimento não foi apreciado” (fls. 99), invocando – ainda que indirectamente a nulidade da própria decisão sumária, em função da alegada nulidade do despacho de convite ao aperfeiçoamento. Mais uma vez, o recorrente não tem qualquer razão. Conforme já supra demonstrado, o despacho de convite ao aperfeiçoamento não padece de qualquer nulidade, pelo que, consequentemente, também a decisão sumária ora reclamada não padece de qualquer nulidade.
Aliás, ao não conhecer do objecto do presente recurso, a decisão sumária rejeita, implicitamente, qualquer dever de denúncia do alegado crime. Conforme bem conhecido pelo recorrido – na medida em que assim tem sido, inabalável e reiteradamente decidido por este Tribunal, em inúmeros outros autos em que o mesmo recorrente, por vezes até na condição de mandatário forense, colocou questão idêntica – cfr, a mero título de exemplo, despacho de 08 de Junho de 2009, no âmbito do Proc. n.º 902/08. Assim reitera-se que:
“(…) o dever de denúncia previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 242º, do Código Penal, apenas recai sobre os “funcionários” nela identificados quando estes se deparem com “crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa destas”. Ora, a Relatora não tomou conhecimento de qualquer “crime” no exercício das suas funções. As considerações tecidas pelo recorrente quanto à alegada falsificação de um documento devem ser por si provadas perante um tribunal criminal, não dispondo o Tribunal Constitucional de poderes, atribuídos pela Constituição ou pela lei, para aferir da responsabilidade penal de indivíduos ou de pessoas colectivas. A mera afirmação pelo recorrente de que foi praticado um crime não é geradora de qualquer dever de denúncia de factos alegadamente constitutivos de um determinado tipo de crime. Bom seria que o recorrente levasse esse seu temerário entendimento até às últimas consequências e apresentasse ele próprio a respectiva queixa pela prática dos factos que (apenas) ele reputa de criminosos.
Mais uma vez, constata-se não haver fundamento legal para a nulidade arguida. A invocação do artigo 201º do CPC é, aliás, absurda, na medida em que aquele preceito legal apenas se refere a omissões de actos processuais e não a deveres externos ao processo. Como é evidente para qualquer destinatário diligente, o dever de denúncia consagrado no artigo 242º do CPP configura um dever de carácter pessoal que recai sobre o indivíduo que é momentaneamente titular do título de “funcionário”, não sendo configurável como acto inserido em determinado processo judicial, muito menos em sede de recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, ainda que o artigo 201º do CPC seja aplicável “ex vi” artigo 69º da LTC, é manifesto que nem a lei comina de nula a omissão daquele dever de denúncia – que como já demonstrado não recai sobre a Relatora –, nem tão pouco tal omissão pode influir sobre o exame do recurso de constitucionalidade interposto nos presentes.
Deste modo, não foi cometida qualquer nulidade processual, pelo que não se verifica qualquer omissão a suprir.»
Posto isto, torna-se evidente que a decisão sumária proferida nos autos rejeitou, ainda que implicitamente, o pedido do recorrente para que a Relatora procedesse à denúncia de um alegado crime de denegação de justiça. Tanto assim é que o próprio recorrente vem agora reclamar – ainda que de modo não confessado – daquela mesma decisão sumária, afirmando que da alegada nulidade do despacho de convite ao aperfeiçoamento “resulta a anulação dos termos subsequentes ao cometimento da nulidade processual arguida” (fls. 99).
Tudo visto, conclui-se, assim, que nem o despacho de aperfeiçoamento proferido, em 15 de Janeiro de 2009 (fls. 76), nem a decisão sumária ora reclamada padecem de qualquer nulidade, pelo que mais não resta do que indeferir a presente reclamação, devidamente convolada.»
6. Ainda assim, persistindo em não se conformar com aquela decisão definitiva, veio agora o recorrente reiterar a tese de que os Juízes do Tribunal Constitucional estariam sujeitos a um dever de denúncia da prática de um crime de denegação de justiça que, tendo sido omitido, geraria uma nulidade processual.
Mais alega o recorrente, neste último requerimento, que a convolação do requerimento de 29 de Janeiro de 2009 em reclamação para a conferência seria constitucionalmente inadmissível, por ofensa dos artigos 1º, 2º, 3º, n.º 3,18º, n.º 1, 20º, n.ºs 1 e 4 e 25º, n.º 1, todos da Constituição, pelo que aquele acórdão seria eivado de “invalidade” e de “falsidade” (sic, a fls. 131), vícios estes que seriam de conhecimento oficioso.
Posto isto, importar extrair as devidas consequências da actuação processual do recorrente nos presentes autos.
II – Fundamentação
7. Importa notar que o trânsito em julgado da decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento implica necessariamente o trânsito da decisão recorrida, conforme resulta do n.º 4 do artigo 80º da LTC. Da sequência de requerimentos atrás descrita, resulta evidente que o recorrente tem vindo a fazer uso indevido do presente processo, visando apenas protelar a remessa dos presentes autos ao tribunal recorrido e obstar à consequente produção de efeitos jurídicos por parte da decisão recorrida.
No próprio requerimento que deu causa ao presente acórdão, apresentado em 27 de Novembro de 2009, persiste em reiterar a tese da alegada nulidade, por preterição de um (inexistente) dever de denúncia por parte dos Juízes deste Tribunal e em invocar a alegada inconstitucionalidade da própria decisão de convolação do requerimento de 29 de Janeiro de 2009 em reclamação.
Trata-se de questões que já foram amplamente decididas ao longo dos autos recorridos.
Assim sendo, impõe-se que, ao abrigo do disposto no artigo 84º, n.º 8, da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o disposto no artigo 720º do Código de Processo Civil, estes novos incidentes sejam processados em separado, sendo o processo contado e, de imediato, remetido ao tribunal recorrido, para, nos termos do n.º 2 deste último artigo, aí prosseguir os seus termos. Além disso, de acordo com o disposto no n.º 8 do artigo 84º da LTC, só se proferirá decisão no traslado depois de pagas as custas em que o requerente já foi condenado neste processo no Tribunal Constitucional, pelo que os autos e seus eventuais apensos só serão conclusos depois da verificação de tal facto.
III – Decisão
Nestes termos, ao abrigo do disposto n.º 8 do artigo 84º da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se ordenar que:
a) Seja extraído traslado de fls. 66 a 73, 76, 78 a 82, 85 a 95, 99, 102, 108 e 109, 110 a 125, 130, 131 e 134 do presente processo, bem como do presente acórdão;
b) Após contados os autos e extraído o traslado, se remetam os mesmos, de imediato, ao tribunal recorrido, para prosseguirem os seus termos, conforme estatuído no n.º 2 do artigo 720º do Código de Processo Civil;
c) Uma vez pagas as custas, se abra conclusão, a fim de, então, se decidir o agora requerido quanto à pretendida nulidade do Acórdão n.º 573/2009.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2010.-Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Rui Manuel Moura Ramos.
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