|
Processo n.º 676/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., Recorrido nos presentes autos, inconformado com a decisão sumária proferida em 27 de Outubro de 2010, vem dela reclamar dizendo o seguinte:
“1. Reafirma-se as inconstitucionalidades alegadas dos arts. 5 7.°, N.° 1, 64°, n.° 2, al. i), do R.A.U., e 678°, n.° 3, al. a), do Cód. Proc. Civil.
a) DAS NORMAS CUJA INCONSTITUCIONALIDADE HAJA SIDO SUSCITADA DURANTE O PROCESSO (arts. 280.º, n.° 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, e 70°, n.° 1, al. b), da L.C.T.):
2. Ao contrário do que se defende na douta decisão sumária reclamada, as normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo não são apenas aquelas que sejam suscitadas até ser proferida decisão final do tribunal ‘a quo’, momento, esse, em que não se esgota, em regra, o respectivo poder jurisdicional.
3. O entendimento de que a suscitação das normas inconstitucionais só podem ser suscitadas durante o processo e, por isso, só até que seja proferida a decisão final do tribunal ‘a quo’, constitui uma interpretação restritiva, incompreensível e não aceitável.
4.Entendendo-se que a questão da inconstitucionalidade pode ser suscitada após a decisão da 1.ª instância, desde que esta não transite em julgado, não se admitindo que a inconstitucionalidade da norma seja apenas levantada até à decisão da 1.ª instância por uma questão de mera cautela ou por mera razões académicas.
Logo,
5. A inconstitucionalidade das normas foi suscitada durante o processo, o que se reafirma.
b) A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 64°, N.° 2, AL 1), DO R.A.U.:
6.A norma do art. 64.º, n.° 2, al. i), do R.A.U., é inconstitucional desde que não seja averiguado onde o arrendatário habita, o que foi o caso, e que na matéria de facto não conste onde este habita.
Com efeito,
7. O arrendatário tem, necessariamente, que habitar nalgum local.
8. Daí que essa inconstitucionalidade seja normativa e o desvalor é atribuído ao preceito e/ou à sua interpretação e não a um facto que não se averiguou ou não se apurou, na matéria de facto.
c) A INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 57°, N.° 1, DO R.A.U. E 678°, N.° 3, AL. A), DO CÓD. PROC. CIVIL:
9. A norma do art. 678°, n.° 3, al. a), do Cód. Proc. Civil, é inconstitucional por não se admitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, independentemente do valor da causa e da sucumbência, quando o recurso é admissível para o Tribunal da Relação, independentemente deste valor.
Ora,
10. Não se compreende e não se pode admitir que o valor da causa não limite o recurso para um tribunal superior, a Relação, e limite para outro tribunal superior, o Supremo Tribunal de Justiça.
Logo,
11. Trata-se, pois, de uma inconstitucionalidade normativa e o desvalor é atribuído ao preceito e/ou á sua interpretação.
Assim,
12. Entende-se que a privação do arrendamento, resultante de sentença judicial já controlada por um tribunal de recurso, a Relação, sem ser limitada pelo valor da acção, representa uma privação arbitrária e inconstitucional, desde que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça seja impedido com fundamento no valor da causa ou que a norma que permite esse recurso tenha por base o valor da causa, o que não acontece no recurso para a Relação.
Em consequência,
13.Não se compreende, e não se pode aceitar, que se atenda ao valor da causa para se recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, não se atendendo a esse valor da causa no recurso para a Relação.
Ou melhor,
14. O valor da causa não terá que ser diferente, em relação ao valor do recurso interposto para o Tribunal da Relação, no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
15. Tudo o que viola pelo menos os arts. 20.º, n.° 1, 1 a parte, e 65°, n.° 1, da Const. da República Portuguesa.
16. Existem, como tal, as inconstitucionalidades das normas indicadas.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“4. Profere-se decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC pelo facto de não se reunirem todos os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso. Como resulta dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, o recurso tentado interpor cabe das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
4.1. Assim, e no que se refere aos artigos 57.º do RAU e 678.º, n.º 3, alínea a), do CPC, constata-se que as decisões impugnadas não aplicaram sequer tais normas, o que torna óbvia a impossibilidade de conhecimento do recurso nesta parte.
4.2. No que toca ao artigo 64.º, n.º 2, alínea i), do RAU verifica-se que, nesta parte, a inconstitucionalidade suscitada pelo Recorrente, e reproduzida na interposição do recurso de constitucionalidade, não se apresenta como uma questão normativa, sendo a desconformidade imputada à decisão [dado que na matéria de facto da base instrutória não consta onde o arrendatário habita] e não ao preceito ou ao juízo normativo a ele assacado. Com efeito, como sustentou o Recorrente no pedido de aclaração formulado (momento em que, como reconhece, foi suscitado este problema de inconstitucionalidade), “o art. 64.º, n.º 2, alínea i), do RAU é inconstitucional, dado que na matéria de facto não consta onde o arrendatário habita” (itálico adicionado). Assim apresentada a questão, facilmente se percebe que o desvalor não é atribuído ao preceito ou à sua interpretação e sim ao facto de, no entender do Recorrente, se ter dado como provado o fundamento de resolução previsto no artigo 64.º, n.º 1, alínea i), do RAU, sem que o tribunal tivesse apurado, na matéria de facto, qual seria, então, o local de habitação do Recorrente. Ora, o recurso de constitucionalidade, em qualquer uma das suas modalidades, apresenta-se como normativo, tendo por objecto normas ou dimensões normativas, e não as decisões judiciais ou a actividade judicial propriamente dita. Mesmo que assim não fosse, a decisão de não conhecimento haveria de prevalecer uma vez que esta questão apenas foi suscitada no pedido de aclaração quando o Recorrente deveria – e poderia – tê-la arguido em sede das alegações formuladas no âmbito da apelação. Deste modo, é igualmente inobservado o pressuposto respeitante à suscitação da questão durante o processo, isto é, até que seja proferida a decisão final do tribunal a quo, momento em que se esgota, em regra, o respectivo poder jurisdicional. Pelo que, também nesta parte, é manifesta a impossibilidade de conhecimento do recurso.”
3. O Recorrido Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Adiante-se já que a reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento.
4.1. A Reclamante começa por manifestar o seu dissídio na parte em que a decisão reclamada dispôs que apenas podem ser conhecidas as inconstitucionalidades suscitadas até que seja proferida a decisão final do tribunal a quo, não constituindo, por conseguinte, o pedido de aclaração, em regra, momento adequado para se dar cumprimento a tal requisito. Este entendimento resulta do enunciado dos preceitos que enquadram o tipo de recurso que a Reclamante pretendeu interpor, e encontra-se devidamente firmado em jurisprudência consolidada e unânime do Tribunal Constitucional. Como se lê nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, o recurso cabe das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Esta expressão tem sido entendida como correspondendo à possibilidade de exercício do poder jurisdicional por parte do tribunal recorrido, o qual se esgota, em regra, com a prolação da sentença, nos termos do artigo 666.º, n.º 1 do CPC. A título meramente exemplificativo confiram-se, a este propósito, os acórdãos n.ºs 15/95 e 126/95, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
Não se verificando qualquer motivo que pudesse dispensar o Recorrente do cumprimento atempado deste ónus, a suscitação da questão de inconstitucionalidade a propósito do artigo 64.º, n.º 2, alínea i), do RAU apenas no pedido de aclaração surge como manifestamente extemporânea.
4.2. Tal questão encontrar-se-ia sempre, ademais, como se explicou na decisão recorrida, condenada ao não conhecimento uma vez que não foi configurada como questão normativa e sim, como um mero dissídio face à pronúncia judicial recorrida. Com efeito, o que o Recorrente contestou foi que na matéria de facto não constava o local onde o arrendatário habita, donde derivaria a inconstitucionalidade do preceito. É ostensiva a omissão total de qualquer inconstitucionalidade imputada a uma norma ou dimensão normativa. O que o Recorrente contestou foi o facto de se ter dado como provado o fundamento de resolução previsto no artigo 64.º, n.º 1, alínea i), do RAU, sem que o tribunal tivesse logrado apurar qual seria, na realidade, o seu local de habitação. Na reclamação deduzida, o mesmo limita-se a manifestar discordância quanto ao assim decidido sem intentar, no entanto, de qualquer modo, demonstrar os fundamentos de tal entendimento. Pelo que, também nesta parte, a reclamação carece de qualquer fundamento.
4.3. Por último, o Reclamante persiste na invocação da inconstitucionalidade dos artigos 57.º, n.º 1 do RAU e 678.º, n.º 3, alínea a), do CPC olvida, no entanto, que, como se estabeleceu na decisão reclamada, tais normas não foram sequer aplicadas na decisão de que pretendeu interpor recurso de constitucionalidade, pelo que se torna óbvia a impossibilidade do seu conhecimento.
III – Decisão
5. Face ao exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, acordam, em conferência, indeferir a reclamação deduzida e confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) uc.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2010.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.
|