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Processo n.º 682/2010
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social – Delegação de Coimbra, o relator proferiu a decisão sumária (n.º 454/2010) de não conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. Independentemente de se saber se a interpretação do artigo 230.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), que o recorrente enuncia como objecto do recurso, tem carácter normativo, o certo é que não estão reunidos os pressupostos necessários ao seu conhecimento, por falta de suscitação da questão de constitucionalidade junto do tribunal recorrido.
De facto, no recurso que interpôs do despacho de fls. 622/623 (que indeferiu a expedição de uma carta rogatória para inquirição de uma testemunha residente no Brasil) para o Tribunal da Relação de Coimbra, o recorrente limita-se a acusar o próprio despacho recorrido de violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. conclusão H) da motivação do referido recurso, a fls. 733 dos autos). Mas em momento algum o recorrente enunciou uma norma, adoptada pelo tribunal recorrido como ratio decidendi do despacho, para depois a pôr em confronto com a Constituição.
Como é sabido, o recurso de constitucionalidade tem carácter estritamente normativo, não podendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a decisão recorrida em si mesma.
3. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificado da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, invocando o seguinte:
«A decisão de não conhecer do objecto do recurso assenta na consideração de o recorrente não ter suscitado a questão de constitucionalidade durante o processo, apenas o tendo feito pela primeira vez no requerimento de interposição do recurso.
Carece, porém, de razão a decisão assim tomada.
Na verdade, a interpretação dada à norma na decisão recorrida, do n.° 2 do artigo 230.° do CPP, na acepção e juízo adoptados pelo Tribunal da Relação de Coimbra que entendeu que porque o recorrente não indicou na Contestação, sede própria para o fazer, qual ou quais os factos sobre que pretendia a inquirição, para se poder aquilatar da passagem da carta, o Tribunal não tinha que a expedir nem notificar o arguido para vir aos autos justificar a inquirição da testemunha residente no estrangeiro, foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o reclamante contar com a sua aplicação.
Assim, tendo a decisão interpretado de modo tão particular tal norma, não era exigível ao reclamante prever que essa interpretação viria a ser possível e viesse a ser adoptada na decisão.
O uso insólito de tal interpretação levou a que o reclamante não tivesse podido, em momento anterior ao da decisão, representar a possibilidade de aplicação da norma com tal interpretação.
Assim sendo, não se mostrava adequado exigir-lhe, no caso concreto, um qualquer juízo de prognose relativo a essa aplicação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando logo a questão da inconstitucionalidade.
Só perante a decisão proferida se viu o reclamante na possibilidade de arguir a inconstitucionalidade em causa, tendo-o feito logo no primeiro momento que se lhe impunha fazê-lo, ou seja, no requerimento interposição do recurso.
Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência deve conhecer-se do objecto do recurso.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou resposta nos termos seguintes:
«(…) 1º
Pela Decisão Sumária nº 454/2010, não se conheceu do objecto do recurso porque se entendeu que o recorrente não tinha suscitado, previamente, questão de constitucionalidade que agora pretendia ver apreciada.
2º
O recorrente, na reclamação agora apresentada, vem dizer que foi surpreendido pela interpretação levada a cabo na decisão recorrida.
3.º
A decisão de primeira instância, após afirmar que o disposto no artigo 230º do CPP se aplicava na fase de julgamento, indeferiu o pedido de inquirição da testemunha, por carta rogatória, porque das diversas comunicações do arguido não se via qualquer adução do fundamento para a ouvir, desde os factos sobre que versaria o seu depoimento até a essencialidade da sua inquirição para a defesa, não dispondo, assim, o tribunal de elementos que permitissem ajuizar se o carácter excepcional de expedição da carta estava justificado (fls. 622 e 623).
4º
Interposto recurso desta decisão, a Relação entendeu que o recorrente não indicara, na contestação, sede própria para o fazer, qual ou quais os factos sobre que pretendia a inquirição, para se poder aquilatar da necessidade de passagem da carta (fls. 1169 a 1171).
5º
Ora, cotejando a decisão da primeira instância já referida (5º) com a decisão da Relação – a decisão recorrida -, facilmente se constata que esta nada tem de inovatório ou surpreendente.
6º
Na verdade, não havendo qualquer dúvida que a inquirição foi requerida na contestação, o que naquela decisão se disse coincide integralmente com a interpretação acolhida pela Relação.
7º
Numa e noutra foi a ausência de factos e não demonstração da essencialidade da inquirição, na contestação, que levou ao indeferimento do pedido.
8º
Tendo-se decidido na primeira instância indeferir o pedido porque se entendeu que o arguido devia indicar, na contestação, os factos e outros elementos que justificassem o envio de carta rogatória, se ele entendia que devia ser previamente notificado para suprir tais “deficiências”, podia perfeitamente ter suscitado a questão de inconstitucionalidade referente a essa omissão de notificação, o que também não fez.
9º
Como o recorrente na motivação do recurso para a Relação não suscita a questão de inconstitucionalidade desta interpretação (nas duas dimensões referidas) - o que, aliás, é confirmado pelo próprio na reclamação da decisão Sumária – podendo tê-lo feito, não estava dispensado do ónus da suscitação prévia.
10º
Diremos ainda que a questão de inconstitucionalidade relacionada com a omissão da notificação apreciada no Acórdão da Relação tem a ver com o primeiro indeferimento resultante de se ter considerado que a expedição da carta iria atrasar intoleravelmente o processo (fls. 445) e não com o a ausência de elementos na contestação.
11º
Na verdade, foi essa a questão colocada pelo arguido na motivação do recurso para a Relação (fls. 732), sendo de registar que tendo esse primeiro pedido de envio da carta, partido da própria testemunha e não do arguido (fls. 340), essa circunstância é realçada no Acórdão da Relação para fundamentar não violação dos direitos de defesa do arguido.
12º
Ora, mesmo que se aceitasse que a questão atrás referida tinha carácter normativo, o recorrente quando interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, não se lhe refere.
13º
Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão reclamada pronunciou-se no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, em suma, por falta de suscitação da questão de constitucionalidade junto do tribunal recorrido.
O reclamante admite que não suscitou qualquer questão de constitucionalidade relativa à norma do artigo 230.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), junto do Tribunal da Relação de Coimbra, mas alega que foi “surpreendido” com a interpretação que este adoptou daquela norma, pelo que não lhe era exigível antecipar que essa interpretação viria a ser a acolhida na decisão.
Sem razão, porém.
Como bem salienta o Ministério Público, o simples cotejo entre a decisão proferida em primeira instância e o acórdão da Relação agora recorrido, demonstra que a interpretação feita pelo tribunal de recurso coincide, na parte relevante, com a adoptada em primeira instância, pelo que nada tem de surpreendente. De facto, ambos decidiram indeferir a passagem de carta rogatória para inquirição de uma testemunha residente no Brasil e, em ambos os casos, pela razão de, além do mais, o arguido não ter indicado os factos e outros elementos que justificassem o envio dessa carta rogatória.
Nesse sentido, conclui-se na decisão proferida em primeira instância que o tribunal não dispõe de elementos «que lhe permitam ajuizar se o carácter excepcional da expedição de carta rogatória está aqui justificado» e reitera-se na Relação de Coimbra que o «recorrente não indicou na contestação, sede própria para o fazer, qual ou quais os factos sobre que pretendia a inquirição, para se poder aquilatar da necessidade da passagem da carta».
Assim, o reclamante dispunha de todas as condições para, logo nas alegações do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Coimbra, suscitar a pretensa questão de constitucionalidade que identifica na reclamação como sendo a «interpretação dada à norma na decisão recorrida, do n.° 2 do artigo 230.° do CPP, na acepção e juízo adoptados pelo Tribunal da Relação de Coimbra que entendeu que porque o recorrente não indicou na Contestação, sede própria para o fazer, qual ou quais os factos sobre que pretendia a inquirição, para se poder aquilatar da passagem da carta, o Tribunal não tinha que a expedir nem notificar o arguido para vir aos autos justificar a inquirição da testemunha residente no estrangeiro, foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o reclamante contar com a sua aplicação.»
Não o tendo feito, incumpriu o disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Dezembro de 2010.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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