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Processo n.º 459/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., a Relatora proferiu o seguinte despacho:
«1. O requerimento de interposição de recurso (fls. 518 a 519) fixa como objecto do presente recurso quatro interpretações normativas distintas, sendo que a susceptibilidade de conhecimento das mesmas varia em função da tramitação processual vertida nos autos.
Quanto à primeira interpretação normativa, segundo a qual se poderia extrair da decisão recorrida uma interpretação “do disposto nos nºs 1, 2 e 8 do artº 271º e 374º nº 2 do Código de Processo Penal no sentido de que ouvido o ofendido menor no inquérito, a sua inquirição em julgamento é desnecessária, sendo dispensável proferir despacho fundamentado quanto a essa desnecessidade por banda do juiz de julgamento e podendo o mesmo fundamentar a sentença/acórdão no seu depoimento em inquérito” (fls. 518-verso), conclui-se que a mesma não foi efectivamente aplicada, pelo que o Tribunal Constitucional não pode dela conhecer, por força do artigo 79º-C da LTC.
Com efeito, a decisão recorrida é inequívoca ao rejeitar ter aplicado tal interpretação. Pelo contrário, a decisão recorrida considera que a tomada em consideração daquele depoimento não constitui “acto de inquérito”, mas antes uma “medida de antecipação da prova” e, como tal, um acto tipicamente integrado no conceito processual de “julgamento”. Para além disso, a decisão recorrida demonstra bem não ter aplicado aquela concreta interpretação normativa:
“[47] Assim, e na prossecução desse desiderato de toda a união europeia, o legislador processual penal português contempla as declarações para memória futura como incidente de produção de prova pessoal de antecipação da audiência (…).
[48] Ora, impondo o legislador a gravação da prova pessoal colhida para memória futura e configurando esse acto como constituição de prova em julgamento, assim antecipado, e não como acto de inquérito ou de instrução (…) então também a reprodução da gravação em audiência é permitida, como era a leitura do auto de declarações para memória futura (…).” (fls. 409 e 410)
E ainda:
“Em primeiro lugar, não decorre da norma do n°8 do art° 271° do CPP ou de qualquer outra, nem assim entendemos, que a repetição da inquirição seja sempre desnecessária. Até o pode ser na maior parte das vezes mas só caso a caso pode ser aferida a presença de razões ponderosas que o justifiquem. Podem, por exemplo, as declarações prestadas ser omissas relativa a parte do objecto do processo ou surjam em julgamento elementos novos que a tanto aconselhem.
Por outro lado, não vemos que aquele normativo, assim interpretado, afecte os direitos de defesa e muito menos postergue o núcleo essencial do princípio do contraditório e, inerentemente, as garantias de defesa consignada no art° 32°, n°1 da CRP. O defensor do arguido esteve presente no acto de tomada de declarações para memória futura, pôde controlar a regularidade da inquirição e foi admitido a contribuir dialecticamente para o conteúdo das declarações pois formulou questões directamente à criança. Saliente-se aqui que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já se pronunciou diversas vezes no sentido da conformidade com o art° 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de procedimentos em que o arguido não tenha possibilidade de confrontar directamente a vítima em audiência, desde que o seu defensor possa inquirir a testemunha nas fases prévias ao julgamento, mormente em incidente de produção de prova antecipada, como aconteceu nos presentes autos.
Quanto à não fundamentação da «dispensa», importa dizer que não existiu verdadeiramente uma dispensa mas sim, e como já se disse, a ausência de juízo positivo quanto à necessidade ou indispensabilidade do acto. A regra constitucional do art° 205°, n°1 da CRP impõe a obrigação de fundamentação para as decisões dos tribunais quando, mesmo na argumentação do recorrente, o que houve foi uma «não decisão».
O terceiro, e último, plano de infracção constitucional colocado pelo recorrente vem dirigido ao acórdão, por refracção das questões anteriores. Se bem entendemos o raciocínio formulado, considera que os obstáculos que indica inquinam de forma indelével as declarações para memória futura e, então, a respectiva valoração no acórdão condenatório seria igualmente — por consequência - passível de censura. Pela nossa parte, não vemos em que medida essa ponderação violou as garantias de defesa, mormente o contraditório. Como se escreveu supra, todas as normas legais e princípios estruturantes do processo, incluindo o contraditório, foram integralmente respeitados, não se vislumbrando ainda qual a interpretação normativa do art° 374º, n°2 do CPP, que colida com os preceitos constitucionais evocados. Este preceito rege o conteúdo do dever de fundamentação do acórdão ou sentença, mormente quanto à indicação e exame crítico da prova, enquanto a divergência do recorrente coloca-se no plano da substância dessa apreciação crítica, ou seja, quanto ao mérito da fundamentação, o que escapa ao preceito.
Para encerrar o leque de razões indicadas como recorrente em suporte de nulidade, por excesso de pronúncia, cabe referir o argumentário constante da 56ª conclusão, relativo às «considerações aí expendidas quanto ao arrependimento do arguido». Ora, o tribunal recorrido limita-se a afirmar que não se pode ter em conta esse facto psicológico positivo, mormente para efeito de prognose favorável quanto à capacidade do arguido de ressocialização em liberdade, como adiante melhor se explicará. Em todo o caso, encontramo-nos novamente no campo dos argumentos relativos à determinação da sanção, questão obrigatoriamente conhecida na sentença condenatória, como decorre dos art°s 368° e 369° do CPP, pelo que nunca poderíamos afirmar verificada nulidade da decisão, por excesso de pronúncia.” (fls. 315 e 316)
2. Quanto à segunda interpretação normativa, que pressuporia a aplicação, pela decisão recorrida de interpretação do “disposto no artº 70º do Código Penal e dos artº 374º nº 2 e 375º nº1 do Código de Processo Penal no sentido de que o Tribunal pode não ponderar na sentença todas as hipóteses de, perante a factualidade provada provada e a matéria de direito, aplicar pena de prisão não efectiva, designadamente a suspensão da execução da pena sujeita ao cumprimento de deveres ou regras de conduta ou ainda com regime de prova, fazendo a estas expressa menção” (fls. 518-verso), torna-se ainda mais evidente que a decisão recorrida não a aplicou. Sendo certo que o recorrente suscitou tal inconstitucionalidade normativa, relativamente à decisão do tribunal de primeira instância (cfr. fls. 242-verso e 243 e § 12. das conclusões da motivação de recurso, a fls. 262), certo é que o Tribunal da Relação de Guimarães não a aplicou.
Ao invés, a decisão recorrida ponderou, criteriosamente, a possibilidade de suspensão da pena efectiva de prisão, mas, de modo fundamentado, conclui que o ora recorrente não preenchia os requisitos legais para beneficiar de tal regime. Senão, veja-se:
“[121] Neste ponto, as questões que se colocam passam por aquilatar se existem condições para confiar que o arguido será capaz de se ressocializar em liberdade, sem voltar a práticas similares às aqui censuradas, e, mesmo que esse risco fundado possa ser afirmado, se a pena de substituição não coloca em causa o «limite mínimo de prevenção geral constituído pela defesa irrenunciável do ordenamento jurídico». A estas duas questões deu o tribunal a quo resposta negativa e não vemos razões para censurar essa decisão.
[122] O recorrente evidencia a sua situação familiar, social e económica bem como a inserção e reputação social mas, em boa verdade, essas condições já existiam no momento da prática dos factos, não constituindo a sua manutenção contramotivação suficiente para o afastar da conduta antijurídica ou garantia de ultrapassagem de carência de socialização no domínio dos comportamentos antijurídicos do tipo aqui censurado. E, como se disse supra, os crimes de abuso sexual contra crianças acontecem na maior parte das vezes sob recato e a coberto da proximidade familiar, sem possibilidade de controlo social.
[123] Persiste a primariedade penal, num indivíduo hoje com 69 anos, mas essa simples circunstância, desacompanhada de arrependimento, não permite fundar, com o mínimo de segurança, a prognose positiva exigida para a escolha da pena de substituição.
[124] Por outro lado, e como se refere na decisão recorrida, o conflito social — na sociedade portuguesa, e não apenas na área onde residem - desencadeado pela conduta antijurídica mormente face às importantes consequências no desenvolvimento da criança — nos termos provados, instabilidade emocional, vergonha, insegurança, ansiedade, medo de estar sozinha mesmo durante o dia, pesadelos e sobressaltos ao longo da noite, défice significativo nos relacionamentos sociais e escolares — é claramente idóneo a por em crise a confiança dos cidadãos na eficácia do sistema judicial para a aplicar, dimensão essencial da prevenção geral positiva. Pensamos, assim, que a aplicação da pena de substituição, com ou sem condições, ou acompanhada de regime de prova, sempre será de afastar, pois assim o exige o «limite mínimo de prevenção geral constituído pela defesa irrenunciável do ordenamento jurídico».” (fls. 436 e 437)
Como tal, não tendo sido efectivamente aplicada a interpretação normativa reputada de inconstitucional também não pode conhecer-se desta questão, em estrita aplicação do artigo 79º-C da LTC.
3. Quanto ao mais, determina-se a notificação do recorrente para alegar, exclusivamente quanto à alegada inconstitucionalidade das terceira e quarta interpretações normativas extraídas dos artigos 411º, n.º 5 e 419º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal, devidamente suscitada na reclamação do despacho do Relator junto do Tribunal da Relação de Évora (cfr. fls. 363 e 363-verso), no prazo de 30 dias, legalmente fixado pelo n.º 2 do artigo 79º da LTC.» (fls. 531 a 534)
2. Parcialmente inconformado com o referido despacho, o recorrente veio apresentar a reclamação, cujos termos ora se sintetizam:
«Por decisão sumária proferida nos presentes autos foi decidido não conhecer do objecto do recurso quanto a duas das questões de constitucionalidade colocadas no respectivo requerimento de interposição de recurso.
Entende o recorrente, salvo o devido respeito, que em parte sem razão.
Trata-se da primeira questão colocada no requerimento de interposição do recurso e à qual se alude também em primeiro lugar na decisão sumária proferida que se encontra escrita no requerimento de interposição de recurso da forma seguinte:
A interpretação normativa que se extraiu no acórdão recorrido do disposto nos nºs 1, 2 e 8 do artº 271º e 374º nº2 do Código de Processo Penal no sentido de que ouvido o ofendido menor no inquérito, a sua inquirição em julgamento é desnecessária, sendo dispensável proferir despacho fundamentado quanto a essa desnecessidade por banda do juiz de julgamento e podendo o mesmo fundamentar a sentença/acórdão no seu depoimento em inquérito, por se entender que tal interpretação é inconstitucional por violação do princípio das garantias de defesa, do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais (cfr. artºs 32º nº1 e 5 e 205º nº1 da Constituição)
Quanto a esta questão diz-se na decisão sumária que se conclui que tal interpretação normativa não foi efectivamente aplicada pelo acórdão recorrido.
Diz-se, ainda, na douta decisão sumária proferida que “a decisão recorrida é inequívoca ao rejeitar ter aplicado tal interpretação. Pelo contrário, a decisão recorrida considera que a tomada em consideração daquele depoimento não constitui “acto de inquérito”, mas antes uma medida de antecipação da prova” e, como tal, um acto tipicamente integrado no conceito processual de “julgamento”.
(…)
Ora, salvo o devido respeito, na conclusão em que o reclamante colocou a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa do artº 271º nº1, 2 e 8 e 374º nº2 do Código de Processo Penal, encontram-se ínsitas duas questões de constitucionalidade.
Uma primeira na qual se questiona se é constitucional a interpretação das citadas normas no sentido de que ouvido o ofendido menor no inquérito, a sua inquirição em julgamento é desnecessária.
Uma segunda na qual se questiona se é constitucional a interpretação das citadas normas no sentido de que ouvido o ofendido no inquérito, ainda que em declarações para memória futura, é dispensável proferir despacho fundamentado quanto a essa desnecessidade por banda do juiz de julgamento, podendo o mesmo fundamentar a sentença/acórdão no seu depoimento em inquérito.
Não se trata aqui de discutir se as declarações para memória futura são ou não “acto de inquérito” ou “medida de antecipação da prova”, alega-se apenas que a inquirição do ofendido foi realizada “em inquérito”, ou, melhor dito, no decurso do inquérito.
Ora, se quanto à primeira questão assiste razão ao Tribunal recorrido e à decisão reclamada, já quanto à segunda questão é entendimento do reclamante que esta foi colocada correctamente, que tal interpretação normativa foi efectivamente aplicada pelo Tribunal recorrido e, como tal, o Tribunal Constitucional pode dela conhecer.
Aliás, as conclusões nº 9, 10 e 11 do recurso interposto já afloravam a questão, sendo que a redacção que consta no requerimento de interposição de recurso é a mesma que consta da conclusão 12ª do recurso apresentado na Relação de Guimarães:
9. A ofendida deveria ter sido ouvida em audiência de julgamento, sendo que a tal entendimento não se opõe o disposto no nº 2 do artº 271º do Código de Processo Penal, porquanto não afasta a possibilidade de o ofendido ser ouvido em audiência de julgamento, “se necessário” (cfr. o nº1 e 8 da mesma norma).
10. De facto, remetendo o nº8 para os números anteriores do artº 271º do Código de Processo Penal, este não afasta a inquirição do ofendido em audiência de julgamento, porquanto se assim fosse estaria expressamente afastada tal possibilidade na lei e ubi lex non distinguit nec nos distinguire debemus.
11. Por outro lado, se o ofendido é ouvido em declarações para memória futura para que “o depoimento possa ser tomado em conta em audiência se necessário”, tal necessidade tem de ser judicialmente aferida, pelo que o Tribunal tem de se pronunciar sobre a matéria afirmando a necessidade ou desnecessidade de o ofendido ser ouvido em julgamento e fundamentando tal entendimento, tendo em conta ainda que a mesma estava arrolada na acusação.
Assim, a questão de constitucionalidade a conhecer por este Tribunal, amputada da parte em que a interpretação normativa suscitada não foi aplicada pelo Tribunal recorrido, seria a de que é inconstitucional a interpretação que se extraiu no acórdão recorrido do disposto nos nºs 1, 2 e 8 do artº 271º e 374º nº2 do Código de Processo Penal no sentido de que ouvido o ofendido menor no decurso do inquérito é dispensável proferir despacho fundamentado quanto a essa desnecessidade por banda do juiz de julgamento, podendo o mesmo fundamentar a sentença/acórdão no seu depoimento recolhido no decurso do inquérito, por violação do princípio das garantias de defesa, do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais (cfr. artºs 32º nº1 e 5 e 205º nº1 da Constituição).
Com efeito, o acórdão recorrido debruça-se sobre esta questão nos nºs 59º a 64º e 66º do acórdão proferido no seguinte sentido:
59- O problema seguinte encontra expressão nas conclusões 9ª a 12ª e decorre da consideração do recorrente de que a criança deveria ter sido ouvida em audiência, atendendo ao que dispõe o nº 8 do artº. 271º do CPP e que, tendo sido arrolada, sempre teria o Tribunal Colectivo de se pronunciar sobre tal matéria.
60- Compulsando as provas indicadas pelos sujeitos processuais, constata-se que apenas o Ministério Público indicou no seu rol a testemunha D.. Porém, e como se verifica claramente de fIs. 120, essa menção tem em atenção a prova já adquirida e não exprime vontade de ver repetida a inquirição em audiência. Esse é o sentido inequívoco da frase «já inquirida nos termos do disposto no art° 271º nº2 do CPP, estando junto aos autos o suporte áudio respectivo». Por outro lado, nada foi requerido em audiência relativamente a essa inquirição, mormente pelo arguido, nem se encontra despacho que aluda a tal necessidade ou desnecessidade.
61- Decorre efectivamente do nº 8 do art° 271 ° do CPP que «A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar». E, por seu turno, o nº1 do mesmo preceito refere na sua parte final que o depoimento antecipado pode, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. Porém, a conjugação desses segmentos normativos significa que o legislador procurou sublinhar o que sempre decorreria do princípio da investigação ou da verdade material, consagrado no artº. 340º do CPP, ou seja, que o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade ou à boa decisão da causa. Também na limitação dessa reinquirição aos casos em que for possível nada se acrescenta ao que se dispõe na al. b) do nº4 do art° 340°, pois, e até pela natureza das coisas, a produção de prova de «obtenção impossível» sempre estará vedado ao fracasso.
62-A inovação encontra-se, então, na condição negativa relacionada com o meio de prova pessoal antecipado, na medida em que o legislador de 2007 passou a vedar a reinquirição sempre que não for possível assegurar a preservação da saúde física ou psíquica do depoente. A sua justificação material encontra-se estreitamente conexionada com a obrigatoriedade de recolha de declarações das vítimas menores de crimes sexuais, em relação às quais existe uma presunção de especial vulnerabilidade e de carência de protecção dessa categoria de pessoa '.
63- Ora, nada tendo sido requerido, e não impondo o legislador a repetição das declarações para memória futura, apenas na situação em que decidisse proceder oficiosamente a esse acto recaía sobre o Tribunal o dever de exarar em acta a decisão e respectiva fundamentação. Só os actos decisórios carecem de ser fundamentados (artº. 97º, nº 4 do CPP), não sendo de exigir ao Tribunal que se pronuncie negativamente relativamente a todos os meios de prova que considera desnecessários.
64-Mas, mesmo que se considerasse que o legislador impunha que o Tribunal tomasse posição expressa sobre essa questão, ainda assim estaríamos perante a omissão de acto que não vem previsto nos art°s 118° a 122°, ou em qualquer outra norma, como nulidade, ou seja, face à taxatividade como são previstos esses vícios, como mera irregularidade. Irregularidade essa que se deve ter como sanada, porque não arguida no momento do encerramento da produção de prova e para cuja arguição apenas tinha legitimidade o sujeito processual que indicou o meio de prova (art° 123°, nº1 do CPP).
Ora, é entendimento do reclamante que, tendo em conta o disposto nos nºs 1, 2 e 8 do artº 271º do Código de Processo Penal, o juiz de julgamento se deve pronunciar oficiosamente sobre a prestação de depoimento do ofendido em audiência de julgamento, naturalmente através de despacho, no qual aprecie a necessidade ou desnecessidade da sua inquirição ou reinquirição, isto sob pena de violar o princípio das garantias de defesa, do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais (cfr. artºs 32º nº1 e 5 e 205º nº1 da Constituição).
Assim, deve este Tribunal conhecer da questão de constitucionalidade supra alegada, tendo em conta que estão preenchidos os pressupostos processuais para que assim aconteça.» (fls. 536 a 540)
3. O Ministério Público apresentou a seguinte resposta, que ora se sintetiza:
« (…)
9º
Na motivação da sua reclamação (cfr. fls. 536 a 540 dos autos), o arguido apenas contesta o despacho reclamado quanto à primeira interpretação normativa, mas já não quanto à segunda, que aceitou.
Assim, quanto à primeira interpretação normativa – arts. 271º, nºs 1, 2 e 8 e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal – considera que nela se encontram ínsitas duas questões de constitucionalidade (cfr. fls. 537 verso e 538 dos autos), referindo, a este propósito:
(…)
10º
Não parece, porém, que o arguido tenha qualquer razão na sua argumentação.
Desde logo, é a motivação do recurso que define o objecto do mesmo recurso, como este Tribunal tem reiteradamente sustentado em sucessivos acórdãos (cfr. por exemplo, Acórdãos 20/97, 507/97, 122/98, 608/99. 286/00).
Sendo assim, não pode o recorrente alterar, a seu bel-prazer, a mesma motivação, considerando que comporta, de acordo com as suas conveniências, outras possíveis interpretações e pedindo - já depois do tribunal recorrido se ter pronunciado, sem conhecer tais interpretações -, agora, a este Tribunal Constitucional para as apreciar (cfr. por exemplo fls. 538 verso dos autos).
Importa não esquecer, com efeito, que o recurso de constitucionalidade pressupõe que o tribunal recorrido tenha tido oportunidade de apreciar as questões de constitucionalidade invocadas pelo recorrente e que tal formulação deve ser, naturalmente, idêntica àquela que for, posteriormente, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
11º
Aliás, mesmo que assim não fosse, nem sequer a nova argumentação, produzida pelo arguido, põe minimamente em causa os fundamentos do despacho reclamado, da Ilustre Conselheira Relatora, quanto a este ponto.
E, muito menos, a argumentação, transcrita no mesmo despacho, dos Acórdãos recorridos. Atente-se, por exemplo, nos seguintes passos dos mesmos Acórdãos:
“Em primeiro lugar, não decorre da norma do nº 8 do art. 271º do CPP ou de qualquer outra, nem assim entendemos, que a repetição da inquirição seja sempre desnecessária. Até o pode ser na maior das vezes mas só caso a caso pode ser aferida a presença de razões ponderosas que o justifiquem. Podem, por exemplo, as declarações prestadas ser omissas relativa a parte do objecto do processo ou surjam em julgamento elementos novos que a tanto aconselhem.”
“Quanto à não fundamentação da «dispensa», importa dizer que não existiu verdadeiramente uma dispensa mas sim, como já disse, a ausência de juízo positivo quanto à necessidade ou indispensabilidade do acto. A regra constitucional do art. 205º, nº 1 da CRP impõe a obrigação de fundamentação para as decisões dos tribunais quando, mesmo na argumentação do recorrente, o que houve foi uma «não decisão»”.
Assim, mesmo na nova interpretação normativa agora apresentada pelo reclamante, não se vê como sairiam beliscados os princípios das garantias de defesa, do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais.
Como, aliás, se encontra devidamente explanado nos Acórdãos recorridos.
12º
Assim, não se crê que o ora reclamante tenha qualquer razão na argumentação que aduz na sua motivação.
No fundo, o interessado limita-se a tentar, embora com manifesta infelicidade, dar novo fôlego a anterior argumentação, já devidamente e exaustivamente analisada, quer pela instância recorrida, quer pela Ilustre Conselheira Relatora, no seu despacho de 12 de Julho de 2010.
13º
Julga-se, pelos motivos invocados, que o ora reclamante nada aduz que possa abalar o bem fundado do despacho que quis impugnar.
Nessa medida, a sua reclamação não poderá deixar de ser indeferida, por se mostrar totalmente improcedente.» (fls. 583 a 589)
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Antes de mais, importa notar que, pelo presente acórdão, apenas se conhecerá da única questão alvo de reclamação, ou seja, da decisão sumária (ou melhor, do despacho) de não conhecimento do objecto do recurso quanto à norma extraída dos n.ºs 1, 2 e 8 do artigo 271º e do n.º 2 do artigo 374º, ambos do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido que será “dispensável proferir despacho fundamentado quanto a essa desnecessidade [de nova inquirição de ofendido menor já ouvido na fase de inquérito] por banda do juiz de julgamento e podendo o mesmo fundamentar a sentença/acórdão no seu depoimento em inquérito”.
Tendo a primeira dimensão normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente sido fixada, em bloco, ou seja, como um todo coerente entre si, seria duvidoso que pudesse agora vir o recorrente cindir aquela interpretação normativa em duas interpretações normativas independentes entre si.
De qualquer modo, mesmo que tal cisão se admitisse – e se concluísse que a decisão recorrida havia aplicado, de modo efectivo, aquela interpretação normativa –, a decisão de recusa de conhecimento daquela parte do recurso sempre seria de manter. Com efeito, a decisão recorrida adoptou um fundamento alternativo, pelo que, mesmo que o Tribunal viesse a concluir pela inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, aquela decisão do tribunal “a quo” sempre subsistiria, de modo desfavorável à pretensão do recorrente. Senão, veja-se o seguinte excerto da decisão recorrida:
“[64] Mas, mesmo que se considerasse que o legislador impunha que o Tribunal tomasse posição expressa sobre essa questão, ainda assim estaríamos perante a omissão de acto que não vem previsto nos artºs 118º a 122º, ou em qualquer outra norma, como nulidade, ou seja, face à taxatividade como são previstos esses vícios, como mera irregularidade. Irregularidade essa que se deve ter por sanada, porque não arguida no momento do encerramento da produção de prova e para cuja arguição apenas tinha legitimidade o sujeito processual que indicou o meio de prova (artº 123º, nº 1 do CPP).” (fls. 414)
Daqui decorre que, mesmo que viesse a julgar-se inconstitucional uma interpretação segundo a qual seria “dispensável proferir despacho fundamentado quanto a essa desnecessidade [de nova inquirição de ofendido menor já ouvido na fase de inquérito] por banda do juiz de julgamento e podendo o mesmo fundamentar a sentença/acórdão no seu depoimento em inquérito”, a decisão recorrida persistiria a ser desfavorável ao ora recorrente, já que o tribunal “a quo” já julgou como sanado o vício de irregularidade decorrente da (pretendida) falta de fundamentação.
Como tal, o conhecimento, por parte do Tribunal Constitucional, acerca da primeira questão de interpretação normativa – mesmo se restrita à questão identificada pelo recorrente na presente reclamação – sempre se revelaria processualmente inútil, na medida em que não revelaria aptidão para afectar o sentido desfavorável da decisão sob recurso. Por isso, mais não resta do que confirmar o despacho reclamado e indeferir a presente reclamação.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2010.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.
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