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Processo n.º 842/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I ? Relatório
1. A. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional (LTC), o presente recurso do despacho do Presidente do
Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em reclamação deduzida ao abrigo do
artigo 405.º do Código de Processo Penal, que confirmou o despacho de não
admissão do recurso que o recorrente interpôs da decisão instrutória que o
pronunciou pela prática, na forma continuada, de um crime de falsificação de
documento e de um crime de falsificação de notação técnica, na parte em que
aquela decisão indeferiu nulidades arguidas pelo recorrente.
O recorrente apresentou alegações que concluem do seguinte modo:
I ? A decisão recorrida indeferiu a reclamação com fundamento na alegada falta
de interesse em agir do reclamante.
II ? Sucede, porém, que o recorrente apenas impugnou a parte da decisão
instrutória que lhe foi totalmente desfavorável, por mor do total indeferimento
das nulidades que havia arguido.
III ? Por isso, é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais
das garantias de defesa ínsitos no artigo 32º nº 1 da C.R.P., na dimensão do
direito ao recurso, a interpretação normativa do artigo 401º nº 2 do Código de
Processo Penal no sentido de não ser admissível o recurso, por falta de
interesse em agir, interposto da parte da decisão instrutória que apreciou e
indeferiu nulidades arguidas pelo arguido, quando a decisão instrutória não
pronuncia o arguido por todos os factos e crimes constantes da acusação do
Ministério Público.
2. O Ministério Público contra-alegou sustentando as seguintes conclusões:
?1. O Tribunal Constitucional, numa jurisprudência uniforme, tem entendido que a
norma do n.º 1 do artigo 310.º do CPP, enquanto determina a irrecorribilidade de
decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação
do Ministério Público, não viola o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Assim sendo, e por maioria de razão, a irrecorribilidade daquela decisão nos
casos em que a pronúncia é por menos factos e menos crimes do que os constantes
da acusação do Ministério Público, também não é inconstitucional.
3. Neste contexto, sendo a questão da irrecorribilidade a fundamental e decisiva,
a norma do da norma do nº 2 do artigo 401º do CPP interpretada no sentido de não
ser admissível o recurso, por falta de interesse em agir, interposto da decisão
instrutória que não pronuncie o arguido por todos os factos e crimes constantes
de acusação do Ministério Público, não é inconstitucional, uma vez que não viola
o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
4. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.?
II. Fundamentos
3. Para melhor compreensão da questão de constitucionalidade colocada, convém
ter presente a seguinte sequência de actos processuais:
a) O recorrente foi acusado pelo Ministério Púbico pela prática:
- Em co-autoria com outro arguido, de 15 crimes de falsificação de documentos,
previstos e punidos no artigo 256.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, com
referência ao artigo 255.º, alínea a) do mesmo Código;
- Em co-autoria com outros arguidos, de 13 crimes de falsificação de documentos,
previstos e punidos no artigo 256.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, com
referência ao artigo 255.º, alínea a) do mesmo Código;
- Em co-autoria com outro arguido, de 13 crimes de falsificação de notações
técnicas previstos e punidos no artigo 258.º, n.º 1, alínea c) com referência ao
artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal.
b) Requereu a abertura da instrução, tendo suscitado além do mais, questão da a
nulidade de buscas e apreensões realizadas e tendo concluído no sentido de que
deveria ser proferido despacho de não pronúncia.
c) Realizada a instrução, foi proferida decisão instrutória em que se julgou
improcedente a arguição de nulidades e o ora recorrente foi pronunciado pela
prática, na forma continuada, de um crime de falsificação de documento, previsto
e punido pelos artigos 256.º, n.º 1, alínea b) com referência ao artigo 255.º,
alínea a) e um crime de falsificação de notação técnica previsto e punido pelo
artigo 258.º, n.º 1, alínea c), com referência ao artigo 255.º, alínea b), todos
do Código Penal;
d) O recorrente interpôs recurso da decisão instrutória, recurso que não foi
admitido por despacho do seguinte teor:
?No âmbito dos presentes autos, e na sequência de decisão instrutória que
pronunciou os arguidos pela prática dos factos constantes da acusação e que
indeferiu a arguição de nulidades pelos arguidos, veio o arguido A. apresentar
recurso judicial da decisão instrutória na parte em que apreciou as arguidas
nulidades, nos termos constantes a fls. 5685 e segs..
Desde logo se refira que, à face do actual dispositivo legal plasmado no artigo
310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, tendo a decisão instrutória proferida
nos autos pronunciado o arguido recorrente, e os demais arguidos, pelos factos
constantes da acusação, a mesma é irrecorrível.
Do exposto resulta que a decisão instrutória proferida nos autos, tendo
pronunciado o arguido nos precisos termos constantes da acusação não é passível
de recurso, mesmo na parte em que tenha apreciado nulidades e determina a
remessa imediata dos autos ao tribunal competente para julgamento.
Assim, o despacho de pronúncia em causa é irrecorrível (neste sentido, se
pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 13.02.2008, disponível
no sítio da lnternet www.dgsi.pt).
Relativamente à suscitada inconstitucionalidade da norma do citado artigo 310.º
n.º 1 do Código de Processo Penal, por violação do estatuído no artigo 32.º n.º
1 da Constituição da República Portuguesa, esta não é de atender, por se
considerar que o citado preceito legal não é violador da constituição, tal como
entendeu recentemente o Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 21.01.2009
(disponível no sítio da lnternet www.dgsi.pt), ao referir que ?Não fere a
constituição da República Portuguesa, designadamente a garantia de recurso
consagrada no respectivo artigo 32.º, a nova redacção do artigo 310.º, n.º 1, do
C.P.P., que exclui a recorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o
arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, «mesmo na
parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais».
Refere-se ainda no Acórdão vindo de citar que ?A recorribilidade ou não de uma
decisão afere-se pela lei vigente à data da sua prolação (em 1ª instância), pelo
que, tendo uma decisão sido proferida já na plena vigência das alterações
introduzidas no disposto no artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., pela Lei n.º 48/2007,
tal decisão é irrecorrível mesmo na parte em que apreciou as nulidades arguidas
pelo ora recorrente?
Por todo o exposto, e atento o disposto nos artigos 309º, 310º e 414º n.º 2,
todos do Código de Processo Penal, não se admite o recurso interposto pelo
arguido A. em virtude de a decisão em causa ser irrecorrível.?
e) O recorrente deduziu reclamação deste despacho, ao abrigo do artigo 405.º do
Código de Processo Penal;
f) Sobre essa reclamação recaiu o despacho do Presidente da Relação de Coimbra,
de 14 de Setembro de 2009, que a indeferiu com a seguinte fundamentação:
?Cumpre apreciar:
O direito de recurso é um elemento integrador das garantias de defesa do arguido.
A CRP não impõe que tenha sempre que haver recurso de todos os actos do juiz.
Na verdade sendo o recurso um meio processual destinado a reapreciar uma decisão
por forma a corrigir imperfeições que belisquem os direitos e garantias dos
intervenientes processuais, certo é que só se justifica este expediente quando
existe uma efectiva violação dos referidos direitos e garantias, quando é
atingido o núcleo essencial do direito de defesa.
Ora vendo o ora reclamante desagravada a sua situação processual (não foi
pronunciado nem por todos os factos nem por todos os crimes de que vinha acusado),
sem que tal tenha implicações negativas na possibilidade de defesa pelos
restantes crimes por que foi pronunciado é evidente que não tem interesse em
agir.
Inserido nos princípios gerais dos recursos penais, estatui o art. 401.º do CPP:
«1. Têm legitimidade para recorrer:
b) O arguido ? de decisões contra ele proferidas.
(?)
2. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir».
Assim, como flui expressamente da lei, dois dos requisitos de que depende a
admissão dos recursos são a legitimidade? e o interesse em agir.
A legitimidade afere-se pela posição de um sujeito processual face a determinada
decisão proferida no processo, justificativa da possibilidade de a impugnar
através dos recursos tipo consagrados na lei. Tem um cariz marcadamente
subjectivo e, por isso, é verificável a priori.
Diferentemente, o interesse em agir, processual ou necessidade de tutela
jurídica, verifica-se quando existe interesse em interpor recurso para acautelar
um direito ou interesse ameaçado que necessita de tutela e só por essa via é
possível obtê-la. Trata-se, deste modo, de uma posição objectiva perante o
processo, que é ajuizada a posteriori.
«Enquanto a legitimidade subjectiva é, por exigências dialécticas, valorada a
priori, a apreciação da legitimidade objectiva é confiada ao intérprete que terá
de verificar a medida em que o acto ou procedimento são impugnados em sentido
favorável à função que o recorrente desempenha no processo».
A necessidade do requisito ?interesse em agir? é imposta por duas ordens de
razões:
«O tempo e a actividade dos tribunais só devem ser tomados quando os direitos
careçam efectivamente de tutela, para defesa da própria utilidade dessa mesma
actividade.
Depois, é injusto que, sem mais, alguém possa solicitar tutela judiciária, com a
consequente imposição à parte contrária dos correspondentes incómodos e ónus».
No caso concreto, recorde-se, o reclamante alicerça a sua argumentação tão só
numa situação que lhe é favorável.
Como assim, carece o recorrente de interesse em agir o que implica o
indeferimento da presente reclamação.?
4. Como por esta sequência se deixa ver, o ora recorrente decaiu na arguição de
nulidades susceptíveis de inquinar a prova colhida no inquérito e na pretensão
de não ser submetido a julgamento. Foi pronunciado, contra o que pedira, embora
não por todos os factos constantes da acusação e com diferente qualificação
jurídica (em vez da acumulação de crimes de falsificação e de falsificação de
notação técnica, considerou-se que os factos integravam esses crimes, mas na
forma continuada). E quis recorrer, para atacar a decisão sobre as pretensas
nulidades da fase de inquérito, por susceptíveis, no seu entender, de inquinarem
a validade da prova que conduziu à pronúncia.
O despacho do juiz de instrução e o despacho recorrido coincidem em não admitir
esse recurso. Mas por razões jurídicas ou causas típicas diferentes. Para o juiz
de instrução, essa decisão é irrecorrível mesmo no que respeita à decisão sobre
arguição de nulidades do inquérito, por força do texto expresso do n.º 1 do
artigo 310.º do Código de Processo Penal, na redacção emergente da Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, que considerou aplicável. O despacho recorrido foi por outro
caminho. Não se pronunciando sobre a recorribilidade da decisão instrutória,
entendeu que à admissibilidade do recorrente obstava a falta de interesse em
agir por parte do recorrente, nos termos do n.º 2 do artigo 401.º do Código de
Processo Penal.
Pode parecer afastado do sentido comum das coisas que o arguido, mandado
submeter a julgamento contra o que pedira, não tenha interesse em pugnar pela
revogação de uma tal decisão. Mas isso é questão que não compete ao Tribunal
apreciar, porque lhe está vedado censurar a interpretação do direito ordinário e
a estratégia decisória adoptada pelos tribunais da causa. Da sua competência é
apreciar a constitucionalidade da norma que constitua a ratio decidendi da
decisão recorrida e que lhe tenha sido submetida de modo processualmente válido
e essa é, no caso, o n.º 2 do artigo 401.º do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de que, por falta de interesse em agir, não é admissível
o recurso interposto pelo arguido da parte da decisão instrutória que indeferiu
nulidades por este suscitadas, quando essa decisão não pronuncia o arguido por
todos os factos e crimes constantes da acusação do Ministério Público. Norma
esta a que o recorrente imputa violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição,
por afectar o direito de defesa do arguido na dimensão do direito ao recurso.
5. Anteriormente à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a questão da
recorribilidade do despacho de pronúncia que confirme a acusação pública foi, no
plano do direito infra-constitucional, bastante controvertida no tocante à parte
dessa decisão que conhece de nulidades de actos do inquérito ou de questões
prévias e incidentais. Pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 6/2000,
o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que esse
despacho era recorrível na parte em que decide sobre nulidades e questões
prévias ou incidentais. E pelo acórdão n.º 7/2004 estabeleceu que subia
imediatamente o recurso da decisão instrutória que conhece de nulidades. A Lei n.º
48/2007 veio dar nova redacção ao artigo 310.º do Código de Processo Penal
estabelecendo, por um lado, a irrecorribilidade da decisão instrutória que
pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público,
mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias e incidentais.
Mas, por outro lado e assim garantindo a posição final do arguido, afastou o
caso julgado formal relativamente a decisões que apreciem a validade das provas
(n.º 2 do artigo 310.º).
Posto isto, entrando na apreciação da escassa argumentação do recorrente, é
central saber se, da afirmação constitucional de que ?o processo criminal
assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso? (artigo 32.º, n.º 1,
da CRP), deve extrair-se a exigência de que haja recurso da decisão instrutória
que pronuncie o arguido quando indefira nulidades de actos de inquérito por
aquele suscitadas.
Ora, o Tribunal dispõe, a propósito desta questão, apreciando a norma do n.º 1
do artigo 310.º do Código de Processo Penal, uma jurisprudência solidamente
estabelecida e constante (acórdãos n.ºs 265/94, 610/96, 266/98, 216/99, 387/99,
30/01, 463/02, 481/03, 79/05 e 460/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Embora com alguns votos discordantes, sempre o Tribunal entendeu que não viola
as garantias de defesa não haver recurso da decisão instrutória que pronuncie o
arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na
parte em que se apreciem e indefiram nulidades do inquérito.
Disse-se, por exemplo, no acórdão n.º 216/99, publicado no Diário da República,
II Série, de 6 de Agosto de 1999, onde esta última variante da questão foi
especialmente considerada:
?9. O problema da conformidade constitucional do artigo 310º, nº 1, da
Constituição da República Portuguesa, em face dos princípios do duplo grau de
jurisdição e da plenitude das garantias de defesa, foi já por diversas vezes
abordado pelo Tribunal Constitucional, no que respeita à recorribilidade do
despacho instrutório na parte em que pronuncia o arguido, tendo o Tribunal
concluído no sentido da não inconstitucionalidade.
Entende-se que as razões então aduzidas são transponíveis para a questão agora
em discussão.
9.1. Começando por confrontar o artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal
com o artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e com o direito,
que o recorrente invoca, a um duplo grau de jurisdição, remete-se para a
doutrina do acórdão nº 265/94 (in Diário da República, II, de 19 de Julho de
1994, p. 7239 ss):
?A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a
garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos
das diferentes espécies.
É cerro que a Constituição garante a todos o «acesso ao direito e aos tribunais,
para defesa dos seus direitos e interessas legítimos, não podendo a justiça ser
denegada por insuficiência de meios económicos» (artigo 20º, nº 1) e, em matéria
penal, afirma que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa»
(artigo 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do
Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de
jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal.
A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais
condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do
arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros
direitos fundamentais.
Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão
do direito de defesa (veja-se, nesse sentido, o Acórdão nº 8/87 do Tribunal
Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p. 235), a
verdade é que como se escreveu no Acórdão nº 31/87 do mesmo tribunal, «se há-de
admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas
fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não
existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma
faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido».'
9.2. A lei assegura, como lhe compete para dar cumprimento aos objectivos
constitucionais, que o arguido tenha possibilidade de recorrer de uma decisão
condenatória. Multiplicar as possibilidades de recurso ao longo do processo
seria comprometer outro imperativo constitucional: o da celeridade na resolução
dos processos-crime (artigo 32º, nº 2, in fine, da Constituição da República
Portuguesa). Ou seja, entre assegurar sempre o duplo grau de jurisdição,
arrastando interminavelmente o processo, e permitir apenas o recurso das
decisões condenatórias, permitindo uma melhor fluência do processo, o legislador
optou decididamente pela segunda via.
Esta opção foi aliás confirmada pela revisão constitucional de 1997, que aditou
ao nº 1 do artigo 32º o segmento 'incluindo o recurso'. Como se escreveu no
acórdão nº 101/98 (inédito) deste Tribunal, a intenção do legislador
constituinte não foi 'significar que haveria de ser consagrada, sob pena de
inconstitucionalidade, a recorribilidade de todas as decisões jurisdicionais
proferidas em processo criminal, mas sim que do elenco das garantias de defesa
que tal processo há-de assegurar se contará a possibilidade de impugnação das
decisões judiciais de conteúdo condenatório, na esteira do que já era entendido
pela jurisprudência deste órgão de fiscalização' (veja-se também, no mesmo
sentido, o acórdão nº 299/98, inédito). O arguido pode sempre, pois, recorrer da
decisão condenatória que lhe seja dirigida, e aí contestar todos os vícios que
derivem de uma má apreciação de qualquer questão interlocutória.
9.3. Quanto à compatibilidade entre a solução do artigo 310º, nº 1, do Código de
Processo Penal, com o princípio da plenitude das garantias de defesa, mais uma
vez em equação se colocam os princípios da celeridade e da protecção dos
direitos do arguido. Afirmou-se, a este propósito, no acórdão nº 610/96 do
Tribunal Constitucional (in Diário da República, II, de 6 de Julho de 1996, p.
9117 s):
'[...] o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que
é consagrado constitucionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas
decisões instrutórias: justamente os despachos de pronúncia que não alteram os
factos constantes da acusação do Ministério Público. E a resposta a esta questão
indica que a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo
coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores
últimos do processo penal ? a descoberta da verdade e a justa decisão da causa ?,
próprios de um Estado democrático de direito.
[...]
Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
Ora, este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência
de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo
Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o
Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura
autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição), sendo concebido, no processo
penal, como um sujeito isento e objectivo que pode, nomeadamente, determinar o
arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena, propugnar, findo o
julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória
em exclusivo benefício do arguido [...].'
10. Conclui-se, assim, que não existe na interpretação dada pelo Tribunal da
Relação de Lisboa aos artigos 310º, nº 1, e 308º, nº 3, do Código de Processo
Penal qualquer violação do princípio da plenitude das garantias de defesa
constitucionalmente consagrado.
A irrecorribilidade da parte do despacho de pronúncia que decide questões
prévias ou incidentais não é portanto contrária à Constituição da República
Portuguesa?.
Mantém-se inteiramente válidas estas considerações. E acresce dizer que o
sistema está equilibrado no que respeita a assegurar a celeridade do processo
penal e o interesse público na realização eficiente da justiça penal sem que as
garantias de defesa do arguido fiquem definitivamente comprometidas porque, como
se reconheceu no acórdão n.º 95/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
?[?] o artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal aponta, de facto, no
sentido de a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos
constantes da acusação do Ministério Público não constituir decisão final,
também na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou
incidentais. Neste preceito sobre o saneamento do processo na fase de julgamento
permite-se, sem qualquer limitação, que o presidente do tribunal se pronuncie
sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à
apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Já no artigo
338º, nº 1, em audiência de julgamento, o tribunal só pode conhecer e decidir
das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis
de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda
havido decisão e que possa desde logo apreciar; e no artigo 368º, nº 1, no
momento de elaborar a da sentença, o tribunal só pode começar por decidir
separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver
recaído decisão. Numa palavra: os poderes de cognição do tribunal de julgamento
em matéria de questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito
da causa estão limitados apenas quando a lei o determine expressamente?.
Não há pois razão para considerar que fere o núcleo essencial do direito de
defesa a norma de que resulte não haver recurso da decisão instrutória que
pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação pública. Sem que se lhe
negue lesividade, tratou-se de uma decisão judicial que assenta num juízo
indiciário, de efeitos provisórios e processualmente revisível na fase de
julgamento.
6. Apesar de a norma em apreciação ser outra e de a causa de inadmissibilidade
do recurso ser de diversa natureza, estas razões são transponíveis para a
hipótese presente. Seja por uma causa (irrecorribilidade objectiva da decisão)
ou por outra (falta de interesse em agir) o que está em análise não é senão a
extensão da garantia do duplo grau de apreciação em matéria penal perante o
despacho de pronúncia. A tónica deve ser posta nas consequências da
irrecorribilidade, no que ela significa de limitação dos direitos de defesa, e
não na configuração jurídica adoptada, no fundamento concretamente operante,
para vedar o segundo grau de jurisdição.
Com efeito, ao menos como o recorrente a apresenta ? e, apesar de o Tribunal não
estar limitado pelos termos da alegação (artigo 79.º- C da LTC) não se vêem
razões para alargar a indagação a outros hipotéticos fundamentos de
inconstitucionalidade de que não há rasto argumentativo ou indícios de
plausibilidade ?, a questão de constitucionalidade é só uma e sempre a mesma:
saber se Constituição exige que haja recurso da decisão instrutória que
pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação pública, na parte em que
essa decisão aprecie nulidades da fase de inquérito susceptíveis de afectar a
validade das provas. E, de acordo com a referida jurisprudência, não exige, pelo
que a consideração de que o arguido não tem nestas circunstâncias interesse em
agir, independentemente do sufrágio que tal conceito de interesse em agir mereça,
não é idónea para violar a garantia do ?direito ao recurso? porque esse direito
não existe relativamente ao tipo de decisão em causa. Materialmente, não pode
dizer-se violada uma garantia constitucional que não existe ou que não tem a
extensão alegadamente sacrificada.
Por outro lado, a circunstância de a decisão instrutória não ter pronunciado o
arguido recorrente por todos os factos constantes da acusação e de ter dado aos
factos que subsistiram uma qualificação menos gravosa (a multidão de infracções
ficou reduzida a dois crimes na forma continuada) não afecta aquelas razões. Se
o recorrente não tem constitucionalmente direito a fazer rever a decisão
instrutória que confirma integralmente a acusação pública, por maioria de razão
não lhe assistirá esse direito quando a pronúncia ficar aquém dessa acusação
porque essa situação lhe é, em comparação com aquela, mais favorável (cfr.
acórdãos n.ºs 32/2006 e 451/2003. a propósito de uma situação paralela).
Em conclusão: não viola o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição a norma do n.º 2
do artigo 401.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, por
falta de interesse em agir, não é admissível recurso por parte do arguido da
decisão instrutória que o não pronuncie por todos os factos constantes da
acusação, mesmo que o recurso verse sobre a parte dessa decisão que indefira a
arguição de nulidades da fase de inquérito.
7. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lx., 3/2/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
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