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Processo n.º 757/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
*Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional*
*I. Relatório*
A. interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela acção
administrativa especial visando a anulação contenciosa do despacho da
Directora do Centro Distrital de Segurança Social de Bragança, de 15 de
Junho de 2007, que indeferiu a atribuição do subsídio de desemprego por
não ter sido requerido, pela interessada, no prazo de 90 dias
consecutivos a contar da data do desemprego, nos termos do n° 1 do
artigo 72° do Decreto-Lei n.° 220/2006, de 3 de Novembro.
Por sentença de 26 de Junho de 2008, o Tribunal Administrativo e Fiscal
de Mirandela, baseando-se no entendimento sufragado pelo Tribunal
Constitucional sobre questão similar, julgou materialmente
inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 72?º do Decreto-Lei n.°
220/2006, de 3 de Novembro, interpretada no sentido de que o
incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do
desemprego para o interessado requerer à segurança social a atribuição
do subsídio de desemprego determina a irremediável preclusão do direito
global a todas as prestações a que teria direito durante o período de
desemprego involuntário; e, em consequência, recusou a sua aplicação e
julgou procedente a acção.
Desta decisão, o magistrado do Ministério Público interpôs recurso
obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no
artigo 70º, n° 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional e, no
prosseguimento do processo, apresentou alegações, em que formulou as
seguintes conclusões:
Nessa medida, julga-se que o presente recurso, interposto pelo digno
magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal Administrativo e
Fiscal de Mirandela, deverá ser julgado procedente, e, consequentemente,
decidir este Tribunal Constitucional:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da
proporcionalidade conjugado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da
Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 72.º, n.º 1, do
Decreto?Lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, interpretado no sentido de
que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos, a contar da data
do desemprego, para o interessado requerer, à Segurança Social, a
atribuição do subsídio de desemprego, determina a irremediável
preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito
durante todo o período de desemprego involuntário; e, consequentemente,
b) Confirmar o Acórdão recorrido, de 26 de Junho de 2008, do Tribunal
Administrativo e Fiscal de Mirandela.
Não houve contra-alegações.
Cabe apreciar e decidir.
*II Fundamentação*
A decisão recorrida julgou inconstitucional, por violação do princípio
da proporcionalidade, a norma do artigo 72.º, n.º 1, do Decreto?Lei n.º
220/2006, de 3 de Novembro, quando interpretada no sentido de que o
incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos, a contar da data do
desemprego, para o interessado requerer, à segurança social, a
atribuição do subsídio de desemprego, determina a irremediável
preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito
durante todo o período de desemprego involuntário.
O referido diploma estabelece, no âmbito do subsistema previdencial, o
quadro legal da reparação da eventualidade de desemprego dos
trabalhadores por conta de outrem, prevendo a atribuição aos
beneficiários de prestações de desemprego (artigos 1º e 5º).
A gestão das prestações de desemprego compete, em geral, ao Instituto da
Segurança Social, I.P., através dos centros distritais de segurança
social (artigo 68º), determinando o artigo 72º, n.º 1, em matéria de
organização de processos, o seguinte:
1- A atribuição das prestações de desemprego deve ver requerido no prazo
de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego e ser precedida
de inscrição para emprego no centro de emprego.
Através do acórdão n.º 275/2007, o Tribunal Constitucional pronunciou-se
já sobre a norma correspondente a esta, constante do artigo 61º, n.º 1,
do Decreto-Lei n.º 119/99, de 14 de Abril, diploma que anteriormente
regulava a mesma matéria, vindo a concluir pela sua
inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade
conjugado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea /e)/, da Constituição da
República, quando interpretada no sentido de que o incumprimento do
prazo de 90 dias aí mencionado implicava a irremediável preclusão do
direito global a todas as prestações a que o interessado teria direito
durante todo o período de desemprego involuntário.
É a seguinte a sua fundamentação.
2.1. Em termos constitucionais, a situação de desemprego não é apenas
uma daquelas ?/situações de falta ou diminuição de meios de
subsistência/? em que incumbe ao ?/sistema de segurança social/? a
protecção dos ?/cidadãos/? (artigo 63.º, n.º 3, da CRP, inserido no
capítulo dedicado aos /Direitos e deveres sociais/). Especificamente
quanto aos /trabalhadores/ que ?/involuntariamente se encontrem em
situação de desemprego/?, o artigo 59.º, n.º 1, alínea /e)/, da CRP
(inserido no capítulo dedicado aos /Direitos e deveres económicos/)
confere expressa e directamente a esses trabalhadores o direito a
?/assistência material/?.
O direito a assistência material nas situações de desemprego
involuntário constitui, assim, um direito fundamental dos
trabalhadores, com amplo âmbito de aplicação (abrangendo os
trabalhadores da Administração Pública, como se decidiu no Acórdão n.º
474/2002, e os trabalhadores independentes), embora a sua plena
concretização dependa das disponibilidades financeiras e materiais do
Estado (Jorge Miranda e Rui Medeiros, /Constituição Portuguesa
Anotada/, tomo I, Coimbra, 2005, pp. 609?610). Para J. J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira (/Constituição da República Portuguesa
Anotada/, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007, p. 774), o direito ao
subsídio de desemprego consiste numa espécie de compensação ou
indemnização por não satisfação do direito ao trabalho (proclamado no
artigo 58.º, n.º 1), pelo que, nesta perspectiva, ele deveria satisfazer
os seguintes requisitos: /(a)/ ser universal, abrangendo todos os
desempregados, independentemente de já terem tido um emprego ou não;
/(b)/ manter?se enquanto persistir a situação de desemprego, não
podendo, portanto, ter um limite temporal definido; /(c)/ permitir ao
desempregado uma existência condigna, não podendo portanto ficar muito
aquém do salário mínimo garantido. Reconhecendo embora que a realização
deste direito prestacional, de natureza positiva, depende do legislador
e da sua implementação administrativa e financeira, entendem os
referidos autores que o regime legal actual (Decreto?Lei n.º 119/99) não
dá resposta aos apontados requisitos.
No citado Acórdão n.º 474/2002, em que se deu por verificado o não
cumprimento da Constituição, por omissão das medidas legislativas
necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea /e)/ do
n.º 1 do seu artigo 59.º, relativamente a trabalhadores da Administração
Pública, o Tribunal Constitucional entendeu não ser relevante, para a
tarefa então em causa (apuramento de uma situação de
inconstitucionalidade por omissão), a adopção de uma posição expressa
quanto à qualificação ? sustentada pelo requerente (Provedor de Justiça)
? do direito à assistência material em situação involuntária de
desemprego como um direito de natureza análoga à dos denominados
direitos, liberdades e garantias, pois para a ocorrência de uma situação
de inconstitucionalidade por omissão basta que o legislador não tenha
executado, ou tenha executado apenas parcialmente, uma imposição
constitucional concreta, mesmo que o direito em causa seja um direito
social e não deva ser tido como análogo aos direitos, liberdades e
garantias.
Seja como for, a inegável /fundamentalidade/ do direito dos
trabalhadores à assistência material em situação de desemprego
involuntário implica ? obviamente sem questionar a liberdade de
conformação do legislador na concretização material desse direito ? que
a regulação do correspondente procedimento administrativo fique
subordinada ao /princípio da proporcionalidade/, no sentido de que as
exigências procedimentais devem ser necessárias e adequadas e de que as
consequências do seu incumprimento devem ser razoáveis.
2.2. O Decreto?Lei n.º 119/99, editado em desenvolvimento do regime
jurídico estabelecido na Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, após regular
substantivamente as medidas de reparação do desemprego, designadamente
de natureza prestacional e respectivas condições de atribuição,
montantes e duração, insere, no plano procedimental ou adjectivo, regras
relativas ao processamento e gestão de tais prestações, resultando do
artigo 61.º, n.º 1, na interpretação desaplicada pela decisão
recorrida, a fixação de um prazo de caducidade da /totalidade das
prestações/ que integram o subsídio de desemprego se o interessado não
requerer a sua atribuição nos ?/90 dias consecutivos a contar da data do
desemprego/?.
O subsequente artigo 63.º prevê diversas situações de suspensão deste
prazo, entre elas a de incapacidade por doença (alínea /a)/ do n.º 1),
mas, quanto a esta causa de suspensão, o n.º 3 do preceito exige que,
quando a incapacidade se prolongue por mais de 30 dias, seguidos ou
interpolados, só determina a suspensão ?/se confirmada pelo sistema de
verificação de incapacidades, após comunicação do facto pelo
interessado/?. No presente caso, embora a requerente tenha invocado uma
situação de doença, susceptível de funcionar como ?justo impedimento? da
tempestiva formulação do requerimento, apresentando atestado médico (cf.
fls. 14 do processo administrativo anexo), não cumpriu o ónus de
provocar a ?/confirmação/? de tal incapacidade pelo ?/sistema de
verificação/? instituído e, por isso, não foi considerada qualquer
suspensão do aludido prazo de 90 dias.
Como resulta da decisão recorrida, não se questiona a
constitucionalidade da exigência de formulação pelo próprio interessado
de pedido de concessão de subsídio de desemprego, nem sequer do
estabelecimento de um prazo para tal formulação.
O que está em causa ? como se salienta nas alegações do Ministério
Público, convocando o /princípio da proporcionalidade/ ? não é, porém, o
estabelecimento de tal prazo, ou mesmo a sua normal suficiência para a
dedução do pedido pelo trabalhador em situação de desemprego
involuntário, mas antes a razoabilidade das consequências associadas ao
incumprimento desse prazo. É que importa distinguir o /direito global
ou complexo/ às prestações emergentes da verificação de uma situação de
desemprego relevante, podendo o período de concessão do subsídio de
desemprego alcançar, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, do Decreto?Lei
n.º 119/99, 30 meses (ainda susceptíveis dos acréscimos previstos no
subsequente n.º 3) para os beneficiários com idade igual ou superior a
45 anos de idade (como era o caso da requerente, nascida em 14 de
Setembro de 1948 ? cf. fls. 1 do processo administrativo anexo); e o
/direito a cada uma das prestações/ parcelares que sucessivamente se vão
vencendo, a partir da data do requerimento.
Nem a decisão recorrida nem o recorrente questionam que o retardamento
injustificado na apresentação do requerimento pelo interessado ?
iniciando ou impulsionando o procedimento de verificação pela Segurança
Social dos pressupostos ou condições da atribuição das prestações ?
possa fazer caducar ou precludir as /prestações parcelares/ que
entretanto se poderiam ter vencido. O que se reputa inconstitucional,
por desproporcionado, é o entendimento segundo o qual qualquer atraso no
cumprimento do referido prazo peremptório de 90 dias dita a irremediável
caducidade do /direito global/ a todas as prestações.
Como refere o recorrente, não se vê que as razões de segurança jurídica,
subjacentes ao estabelecimento de prazos de caducidade, sejam
suficientes para ? com base em qualquer ?mora? do trabalhador
desempregado ? o privar, /na totalidade/, da percepção de todas as
prestações pecuniárias substitutivas das remunerações salariais perdidas
durante o período em que lhe deveriam ser concedidas, perdurando a
situação de desemprego involuntário: a circunstância de a autora ter
formulado a sua pretensão perante a Segurança Social apenas em 19 de
Novembro de 2002 (quando o deveria ter feito até 9 de Agosto de 2002)
não é susceptível de dificultar, de modo relevante, a actividade
procedimental cometida à Segurança Social no âmbito do procedimento em
causa, destinada essencialmente a ajuizar da existência dos pressupostos
e condições do direito às prestações de desemprego e calcular a
respectiva duração e montante ? sendo certo que tal ?mora? dos
trabalhadores sempre ditará a preclusão ou caducidade das prestações
parcelares que se teriam vencido até à referida data de apresentação do
requerimento.
A estas considerações ? que se sufragam ? apenas se aditará que, tendo o
subsídio de desemprego uma função sucedânea da remuneração salarial de
que o trabalhador se viu privado e sendo a situação de desemprego,
geradora do direito àquele subsídio, por natureza uma situação
permanente e não instantânea, que se prolonga e renova no tempo, é de
todo desrazoável fulminar com a perda definitiva e irreversível do
direito ao subsídio de desemprego, por todo o tempo (futuro) em que o
trabalhador a ele teria direito (que se pode prolongar por anos), por
qualquer atraso na formulação inicial do pedido. A situação de
desemprego involuntário, em que se funda o direito ao subsídio de
desemprego, persistia no momento em que o pedido da sua concessão foi
formulado e ter?se?á prolongado para além dessa data. Negar este
direito, embora limitado ao período temporal em que se pode considerar
ter sido tempestivamente exercitado, significa, em termos substanciais,
uma negação, sem motivo adequado, do próprio direito dos trabalhadores,
constitucionalmente garantido, à assistência material em situação de
desemprego involuntário.
Toda esta argumentação é transponível para o caso dos autos, mantendo
inteira validade quanto à correspondente disposição do artigo 72.º, n.º
1, do Decreto?Lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, tal como, aliás,
considerou a decisão recorrida, que, nestes termos, é de manter.
*3. Decisão*
Em face do exposto, acordam em:
/a)/ Julgar inconstitucional, por violação do princípio da
proporcionalidade conjugado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea /e)/, da
Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 72.º, n.º 1, do
Decreto?Lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, interpretada no sentido de
que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do
desemprego para o interessado requerer à segurança social a atribuição
do subsídio de desemprego determina a irremediável preclusão do direito
global a todas as prestações a que teria direito durante o período de
desemprego involuntário; e, consequentemente,
/b)/ Confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral (com declaração de voto em anexo)
Gil Galvão
*DECLARAÇÃO DE VOTO*
Votei esta decisão com as maiores dúvidas, a esclarecer com ulterior e
mais aprofundado estudo. Mais uma vez, emite o Tribunal um juízo de
inconstitucionalidade quanto a um acto do legislador concretizador de um
direito social (neste caso, o direito à «assistência material em
situação involuntária de desemprego») com fundamento em violação do
princípio da proporcionalidade.
É certo que, tendo este princípio sede no artigo 2º da Constituição, ele
não vale apenas para os casos em que estejam em juízo restrições
legislativas de direitos, liberdades e garantias. O âmbito de aplicação
do princípio não se esgota no artigo 18º, nº 2 da CRP; estende-se a
actos do Estado que não a actos legislativos e, dentro destes últimos,
pode estender-se também a leis que não sejam restritivas de direitos de
defesa. Ponto é, no entanto, que, nestes últimos casos, se encontre o
legislador vinculado por algum outro limite constitucional, ou, dizendo
de outro modo, ponto é que tais leis se não inscrevam no espaço de
liberdade de conformação legislativa. Contendo o princípio da
proporcionalidade ou da proibição do excesso uma ?ordem? de congruência
e de medida entre os meios que o legislador usa para a prossecução de
certas finalidades e essas mesmas finalidades, em si próprias tomadas,
parece-me seguro que ele só será aplicável aos casos em que o legislador
esteja vinculado, pelo menos, quanto à escolha de certos fins. É o que
sucede com as restrições aos direitos, liberdades e garantias, que só
podem ser adoptadas tendo em conta a necessária prossecução de outros
bens ou valores constitucionalmente tutelados. Mas não é o que sucede
com as medidas concretizadoras de direitos sociais, onde se define
livremente o se e o como da realização das prestações estaduais.
Todos os direitos sociais têm por certo dimensões negativas, que impõem
ao legislador um dever de não afectação (para além do dever de protecção
e de promoção). Nessas dimensões, o dever de não afectar pode ser
identificado com o dever de não restringir excessivamente: o princípio
da proporcionalidade será, aqui, inteiramente aplicável. Tenho porém
dúvidas que seja esse o caso do /direito ao subsídio de desemprego e à/
/fixação de um prazo para o requerer/. Parece-me, antes, que se estará,
aqui, no pleno coração da dimensão positiva de um direito social. Não
vejo, por isso, como chegar a um juízo de inconstitucionalidade com
fundamento em violação do princípio da proporcionalidade.
/ /
/Maria Lúcia Amaral/
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