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Processo n.º 389/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Em recurso interposto de decisão que julgou improcedente a oposição deduzida por A. à execução que lhe foi instaurada por B., S.A., ora recorrida, o Tribunal da Relação do Porto decidiu, por Acórdão de 28 de Março de 2010, além do mais, condenar o executado, então recorrente, como litigante de má fé, na multa de 10 unidades de conta.
Deste acórdão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), «na parte em que, no mesmo, foi aplicada a norma do artigo 456.º, n.º 2, do CPC, condenando-se o recorrente como litigante de má fé, na multa de 10 UC’s, sem se o ter ouvido previamente», pois que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 289/2002, decidiu «interpretar a norma extraída do artigo 456.º, nºs. 1 e 2, do CPC, em termos de a parte só poder ser condenada como litigante de má fé, depois de previamente ser ouvida, a fim de se poder defender da imputação de má fé».
O Tribunal recorrido, por despacho de 2 de Maio de 2011, admitiu o recurso, tendo o Ministério Público, notificado para o efeito, apresentado alegações onde conclui do seguinte modo:
«1. Respeitando o direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), a norma do artigo 456.º, nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil, na parte respeitante à condenação em multa como litigante de má fé, deve ser interpretada no sentido de tal condenação estar condicionada pela prévia audição dos interessados sobre tal matéria.
2. Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso, devendo, nesta parte, a decisão recorrida ser reformada de acordo com a interpretação referida.»
A recorrida, notificada para o efeito, não contra-alegou.
2. Cumpre apreciar e decidir.
O Tribunal Constitucional decidiu no seu Acórdão n.º 289/02 «interpretar a norma extraída do artigo 456.º nºs. 1 e 2 do CPC, em termos de a parte só poder ser condenada como litigante de má-fé, depois de previamente ouvida, a fim de se poder defender da imputação de má-fé», assim vedando, por inconstitucional, interpretação de um tal preceito que, ao invés, consentisse que uma tal condenação se fizesse sem prévia notificação da parte para se pronunciar, pelos fundamentos já antes invocados pelo Tribunal Constitucional nos seus Acórdãos nºs. 440/94, 103/95 e 357/98 cuja argumentação, perfilhada naquele primeiro Acórdão e secundada pelos seguintes, é, no essencial, a seguinte:
«Em conformidade com o preceituado no artigo 20º, nº 1, da Constituição, 'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
O direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de acção no sentido do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos pré-estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas.
Ora, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pp. 163 e 164, no âmbito normativo daquele preceito constitucional deve integrar-se ainda 'a proibição da `indefesa' que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista de limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses'.
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, caracterizando o acórdão nº 86/88, Diário da República, II série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo 'entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder `deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras' (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit., p. 364)'.
Definido assim o conteúdo genérico do direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição da indefesa, tem-se por seguro que o regime instituído nas normas do artigo 456º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa por litigância de má fé não pressupor a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente, sobre uma anunciada e previsível condenação, padecerá de inconstitucionalidade, por ofensa daquele princípio constitucional.
Com efeito, semelhante interpretação priva por completo o interessado de poder apresentar perante o tribunal qualquer tipo de defesa, acabando por ser confrontado com uma decisão condenatória cujos fundamentos de facto e de direito não teve oportunidade de contraditar.
Mas não resulta imperativo que tais preceitos hajam necessariamente de ser julgados inconstitucionais, já que, mostrando-se embora incompatível com a Lei Fundamental a interpretação que lhes foi dada na decisão recorrida, outra existe que os torna constitucionalmente comportáveis.
Com efeito, mostra-se possível e adequada uma interpretação de conformidade constitucional daquelas normas, em termos de condicionar o juízo de condenação ali previsto à prévia notificação do litigante suspeitado de má fé processual, concedendo-lhe um prazo para nos autos responder o que tiver por conveniente.
Com este sentido e alcance, não subsiste naquelas normas qualquer vício constitucional.»
Não havendo razões para inflectir tal jurisprudência, que se afigura claramente aplicável ao objecto dos autos, cumpre, pois, reafirmar uma tal interpretação do artigo 456.º, nºs. 1 e 2, do CPC, de modo a garantir a sua conformação constitucional com os parâmetros fundamentais nela enunciados.
Pelo exposto, decide-se:
Interpretar a norma extraída do artigo 456.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, em termos de a parte só poder ser condenada como litigante de má fé, depois de previamente ser ouvida, a fim de se defender da imputação de má fé;
Em consequência, conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido, no segmento decisório atinente à condenação por litigância de má fé, ser reformado por forma a que aquela norma seja aplicada no indicado sentido interpretativo.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Outubro de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.