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Processo n.º 617/10
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 12 de Maio de 2010.
2. Em 12 de Outubro de 2010, foi proferida a Decisão Sumária nº 419/10, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, com o seguinte fundamento:
«Constitui requisito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende que o Tribunal aprecie, seja a norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação mediatizada pela decisão recorrida (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 232/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
No requerimento de interposição do presente recurso – peça processual que define o respectivo objecto – o recorrente indica, por um lado, o artigo 126º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que não constitui prova proibida a realização de um reconhecimento do arguido, nos termos e para fins do artigo 147º do Código de Processo Penal, sem a assistência por parte de defensor ou advogado, mesmo quando o arguido não prescindiu desta mesma assistência; por outro, o artigo 127º do Código de Processo Penal, no sentido de que este permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem assistência de um defensor ou advogado, da qual não prescindiu.
Ora, estas interpretações dos artigos 126º e 127º do Código de Processo Penal não foram aplicadas, como razão de decidir, pelo acórdão recorrido. Na apreciação da validade da prova por reconhecimento, efectuado nos autos, em sede de inquérito (fl. 335 e ss.), o Tribunal da Relação de Lisboa não considerou, em momento algum, que tal prova era admissível, podendo ser valorada em julgamento, ainda que o arguido não tenha prescindido da assistência de um defensor ou advogado. O tribunal interpretou os artigos 64º e 147º do Código de Processo Penal no sentido de que não impõem a presença obrigatória de defensor no reconhecimento nele disciplinado, realizado perante os órgãos de polícia criminal e com observância de todas as formalidades legais previstas no mesmo preceito. Considerando, por isso, que a prova em causa não era proibida, podendo ser valorada em julgamento.
A decisão recorrida não aplicou pois, como ratio decidendi, os artigos 126º e 127º do Código de Processo Penal nas interpretações identificadas pelo recorrente, o que obsta a que este Tribunal possa tomar conhecimento do objecto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, invocando o seguinte:
«1. A douta decisão sumária houve por bem não conhecer do objecto do recurso, por entender que o douto acórdão recorrido não aplicou, como ratio decidendi, os artigos 126.º e 127.º, ambos do CPP, nas interpretações apontadas pelo recorrente (limitando-se a interpretar os artigos 64.º e 147.º do CPP, no sentido de que não impõem a presença obrigatória de defensor no reconhecimento nele disciplinado).
2. Salvo sempre o devido respeito, a douta decisão sumária concluiu neste sentido, por não emprestar relevância a duas circunstâncias fundamentais.
3. A primeira delas, salvo sempre o devido respeito, é a de que à parte compete suscitar a questão de inconstitucionalidade, durante o processo, de modo que o tribunal encarregado do julgamento possa sobre ela se pronunciar.
4. Mas não pode a parte responder pelos termos escolhidos pelo tribunal, para eventualmente deixar de reconhecer a questão de inconstitucionalidade que lhe foi submetida, como é natural.
5. Ora, no caso presente, o recorrente suscitou, na sua reclamação para a conferência, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, a inconstitucionalidade material do artigo 127.º, do CPP, quando interpretado e aplicado no sentido de que “...permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem assistência de um defensor ou advogado, da qual não prescindiu...”.
6. E esta questão de inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP foi efectivamente decidida, pelo douto acórdão recorrido, como se verifica pela própria transcrição parcial efectuada pela douta decisão sumária (fls. 4 da douta decisão sumária, segundo parágrafo, em seu ponto “3”), tendo o douto acórdão recorrido consignado expressamente:
“…Não se vislumbra que o entendimento expresso implique uma qualquer restrição inadequada das garantias de defesa do arguido e/ou do processo equitativo que lhe está subjacente, nem tão pouco se vislumbra que tal implique inconstitucionalidade do art.º 127º do CPP...”.(destacamos)
7. Ora, verifica-se, sem sombra de dúvida, salvo sempre o devido respeito, que o douto acórdão recorrido decidiu a questão de inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP, suscitada pelo recorrente.
8. O facto de ter escolhido como “argumento” a circunstância de que esta não se verifica, por não ser “obrigatória” a intervenção do defensor, não afasta a aplicação que efectivamente fez, do artigo 127.º do CPP, nos termos apontados pelo recorrente, salvo sempre o devido respeito (antes acaba por demonstrá-la).
9. Ora, o douto acórdão recorrido não põe em causa que o reconhecimento do recorrente fundamentou a sua condenação.
10. Igualmente não põe em causa que este reconhecimento foi realizado sem a presença de um advogado ou defensor.
11. E igualmente não põe em causa que o recorrente não prescindiu da assistência de advogado ou defensor (nem poderia fazê-lo, pois o próprio recorrente, inclusivamente, recusou-se a assinar o auto de reconhecimento, em protesto pela realização da diligência sem o respeito por um seu direito fundamental).
12. Chegou até mesmo o douto acórdão recorrido a afirmar, quanto ao aludido reconhecimento, que o recorrente poderia ter arguido “a sua própria falsidade”.
13. Ora, se do auto de reconhecimento não consta qualquer dispensa, por parte do recorrente, da presença de um seu advogado ou defensor, salvo sempre o devido respeito, não tem este que ser processualmente onerado com arguições de falsidade, para ver respeitado um seu direito fundamental (à autoridade policial é que competia consignar expressamente a sua dispensa, para que pudesse realizar a diligência, nos termos legais e constitucionais).
14. Assim, salvo sempre o devido respeito, ao decidir a questão de inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP, suscitada pelo recorrente, o douto acórdão recorrido, na verdade, acabou por tentar estender o pronunciamento anterior, deste Venerando Tribunal Constitucional - no sentido de que o artigo 147.º, do CPP, não impõe a presença obrigatória de defensor, na diligência de reconhecimento - para que tal pudesse, igualmente, alcançar a situação na qual o arguido não prescinde desta assistência.
15. Como se pudessem ser equivalentes, em termos constitucionais (o que não ocorre, como é natural, uma vez que a não dispensa, por parte do arguido, é um acto que depende da sua vontade expressa, enquanto que a obrigatoriedade não depende da sua vontade pessoal).
16. Assim, salvo sempre o devido respeito, ao contrário do que entendeu a douta decisão sumária, o douto acórdão recorrido, ao decidir a questão de inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP, não se ficou pela simples análise dos artigos 64.º e 147.º do CPP, como razão de decidir.
17. O que considerou o douto acórdão recorrido, na verdade, como razão de decidir, no tocante à questão da inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP, foi que, por não ser obrigatória a intervenção do defensor, nos nos termos e para fins dos artigos 64.º e 147.º do CPP, nunca poderia ter-se por verificada a inconstitucionalidade material suscitada pelo recorrente, mesmo quando este não prescinda da referida assistência, salvo sempre o devido respeito.
18. Assim, salvo sempre o devido respeito, o douto acórdão recorrido acabou por decidir pela não verificação da inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP, suscitada pelo recorrente, por ententer que o anterior pronunciamento deste Venerando Tribunal Constitucional, no que se refere à inexistência da obrigatoriedade de assistência, por defensor, pudesse alcançar igualmente a situação presente (completamente diversa, salvo sempre o devido respeito).
19. Desta forma, a ratio decidendi da questão de inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP, no douto acórdão recorrido, não foi a da mera aplicação dos artigos 64.º e 147.º do CPP, nos termos referenciados, mas sim a tentativa de que este entendimento viesse a alcançar igualmente uma situação diversa, qual seja, aquela que depende da vontade expressa do arguido (prescindir ou não, da referida assistência).
20. Se assim não fosse, salvo sempre o devido respeito, não poderia ser explicada a expressão “...nem tão pouco se vislumbra que tal implique inconstitucionalidade do art.º 127.º do CPP...”, consignada no douto acórdão recorrido.
21. E é exactamente porque as situações não são equivalentes, ao contrário do que sustentou o douto acórdão recorrido, salvo sempre o devido respeito, que adquire ainda maior relevância o pronunciamento deste Venerando Tribunal Constitucional, sobre a questão respeitante à inconstitucionalidade material do artigo 127.º do CPP, suscitada pelo recorrente.
22. Porque a naturalidade com que foi entendida, nestes autos, a ausência de assistência por advogado ou defensor, mesmo não prescindida e expressamente solicitada, pelo arguido recorrente (que, em protesto, recusou-se, até mesmo, a assinar o auto de reconhecimento), acaba por sinalizar que ensaia-se um entendimento jurídico equivocado, no sentido de que, por ter este Venerando Tribunal Constitucional, em pronunciamento anterior, invocado a não obrigatoriedade da presença de defensor, no acto de reconhecimento, a autoridade policial passou praticamente a dispor do poder de desconsiderar completamente a necessidade da sua presença, na referida diligência, mesmo quando não dispensada e expressamente solicitada pelo arguido.
23. Já a segunda circunstância fundamental, salvo sempre o devido respeito, não considerada em sua relevância, pela douta decisão sumária, é a de que a verdadeira e integral ratio decidendi do douto acórdão recorrido não pode ser encontrada, nem se resume, à apontada aplicação dos artigos 64.º e 147.º do CPP, nos moldes referenciados.
24. A questão é bem mais ampla, uma vez que integram igualmente o texto do douto acórdão recorrido, em modo inseparável, os fundamentos consignados na douta decisão sumária do Ex.mo Relator, objecto da reclamação, no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
25. A própria decisão sumária proferida neste Venerando Tribunal Constitucional transcreve a sua parte em que refere
“…subscrevendo e reproduzindo aqui todos os seus fundamentos...”. (destacamos)
26. Ora, dentre os fundamentos tidos por reproduzidos pelo douto acórdão recorrido, encontra-se a afirmação expressa de que o colectivo de juízes formou a sua convicção “...com provas não proibidas por lei...” (destacamos).
27. Ora, para afirmar que o tribunal colectivo formou a sua convicção “...com provas não proibidas por lei...”, não poderia o douto acórdão recorrido ter deixado de fazer aplicação do artigo 126.º do CPP, salvo sempre o devido respeito.
28. Assim, ao contrário do quanto consignado na douta decisão sumária proferida neste Venerando Tribunal Constitucional, o douto acórdão recorrido não se limitou a aplicar e interpretar os artigos 64.º e 147.º do CPP.
29. Tendo feito aplicação expressa do artigo 126.º, do mesmo Código, salvo sempre o devido respeito, posto que se assim não fosse, não poderia justificar a afirmação de que o tribunal colectivo formou a sua convicção “...com provas não proibidas por lei...”.
30. E acabou por aplicar e interpretar o artigo 126.º, do CPP, nos moldes apontados pelo recorrente, no sentido de que “...não constitui prova proibida a realização de um reconhecimento do arguido, nos termos e para fins do artigo 147. º, do CPP, sem a assistência por parte de defensor ou advogado, mesmo quando o arguido não prescindiu desta mesma assistência...”.
31. Novamente aqui, salvo sempre o devido respeito, por entender que o quanto decidido por este Venerando Tribunal Constitucional, face à não obrigatoriedade de assistência, pudesse igualmente alcançar a situação em que essa assistência não foi dispensada, mas antes expressamente solicitada (o que certamente não ocorre).
32. Razão porque o douto acórdão efectivamente interpretou e aplicou os artigos 126.º e 127.º, ambos do CPP, nos moldes referenciados pelo recorrente, que teve negado um seu direito fundamental de ser assistido por advogado ou defensor, na diligência de reconhecimento que fundamentou a sua condenação.
33. Direito fundamental assegurado pelos artigos 32.º, nºs 1, 3 e 8, 20.º, nº 2, 8, 16.º, 18.º, e 2.º, todos da Constituição da República e artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
34. Razão porque, salvo sempre o devido respeito, acredita o recorrente estarem reunidas as condições para que este Venerando Tribunal Constitucional possa vir a conhecer e decidir o presente recurso».
4. Notificado, o recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:
«1º
Na decisão sumária de fls. 1112 a 1118, decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso, dado a decisão recorrida não ter aplicado, como ratio decidendi, os artigos 126.º e 127.º do Código de Processo Penal (CPP), nas interpretações identificadas pelo recorrente.
2º
Segundo a Decisão Sumária, «na apreciação da validade da prova por reconhecimento, efectuado nos autos, em sede de inquérito (fls. 335 e ss.), o Tribunal da Relação de Lisboa não considerou, em momento algum, que tal prova era admissível, podendo ser valorada em julgamento, ainda que o arguido não tenha prescindido da assistência de um defensor ou advogado. O tribunal interpretou os artigos 64º e 147º do Código de Processo Penal no sentido de que não impõem a presença obrigatória de defensor no reconhecimento nele disciplinado, realizado perante os órgãos de polícia criminal e com observância de todas as formalidades legais previstas no mesmo preceito. Considerando, por isso, que a prova em causa não era proibida, podendo ser valorada em julgamento».
3º
Na reclamação em análise, o reclamante, obviamente, sustenta que o acórdão recorrido interpretou e aplicou as mencionadas disposições do CPP, nos moldes que havia referenciado e que lhe negaram o direito fundamental de ser assistido por advogado ou defensor, na diligência de reconhecimento que fundamentou a sua condenação.
4º
O ora reclamante, arguido condenado a 8 anos de prisão por acórdão da 6ª Vara Criminal de Lisboa, confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, pretendendo que sejam apreciadas as interpretações normativas efectuadas pelo acórdão recorrido, do Tribunal da Relação, dos artigos 126.º e 127.º, ambos do CPP, por violadoras dos artigos 32.º, nºs 1, 3 e 8, 20.º, nº 2, 8.º e 2.º, todos da Constituição da República e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
5º
Explicando melhor, diz o recorrente que o acórdão recorrido, ao concluir que o colectivo de juízes formou a sua convicção “…com provas não proibidas por lei…”, interpretou e aplicou o artigo 126.º do CPP, no sentido de que “…não constitui prova proibida a realização de um reconhecimento do arguido, nos termos e para os fins do artigo 147.º, do CPP, sem a assistência por parte de defensor ou advogado, mesmo quando o arguido não prescindiu desta mesma assistência…”
6º
E que, o acórdão recorrido, ao concluir «pela possibilidade de valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido, realizado sem assistência de um defensor ou advogado, da qual não prescindiu, afirmando expressamente que “…nem tão pouco se vislumbra que tal implique inconstitucionalidade do art.º 127º do CPP…” (…) interpretou e aplicou o artigo 127.º do CPP, no sentido de que este “…permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem assistência de um defensor ou advogado, da qual não prescindiu…”.
7º
Ora, na reclamação para a conferência da decisão proferida pelo Tribunal da Relação (fls. 1033 a 1040), o reclamante já havia suscitado, e nos mesmos termos, essas questões de inconstitucionalidade.
8º
A nosso ver, desse requerimento de reclamação para a conferência, bem como do recurso para o Tribunal Constitucional e ainda da presente reclamação, decorre que as questões cujo juízo de constitucionalidade o reclamante pretende ver apreciadas, residem na realização do auto de reconhecimento, sem assistência de advogado ou defensor, contra a vontade do arguido, que dela não prescindiu, e na valoração desse auto de reconhecimento, em julgamento.
9º
O acórdão recorrido, que desatendeu a reclamação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, confirma essa decisão, subscrevendo e reproduzindo todos os fundamentos da mesma, embora transcreva alguns segmentos.
10º
Designadamente, pode ler-se no acórdão recorrido:
“ Tal como refere o Digno PGA no seu Parecer “não vislumbramos em que é que possa verificar-se a desconformidade com a Lei Fundamental, nomeadamente por ofensa às garantias de defesa, do mencionado art. 147º ao não impor a presença obrigatória do defensor no reconhecimento nele disciplinado. Com efeito, na salvaguarda das garantias do processo criminal vertidas no texto constitucional, o legislador é livre no estabelecimento dos actos processuais em que é obrigatória a assistência do defensor. E fê-lo, com alguma minúcia, diga-se, no art. 64.º do CPP, preceito que não contempla a obrigatoriedade da presença do defensor na diligência em questão”.
E, conclui: “Não se vislumbra que o entendimento expresso implique uma qualquer restrição inadequada das garantias de defesa do arguido e/ou do processo equitativo que lhe está subjacente, nem tão pouco se vislumbra que tal implique inconstitucionalidade do art.º 127º do CPP”.
11º
Analisando a decisão do Tribunal da Relação, bem como o acórdão que a confirmou, parece-nos decorrer deste último, o acórdão recorrido, a interpretação segundo a qual, no auto de reconhecimento de arguido, não é obrigatória a assistência de advogado ou defensor, mesmo no caso em que o arguido dele não prescinda, sendo, consequentemente, válida a prova produzida nessa diligência.
12º
Efectivamente, o Tribunal da Relação ao considerar que o auto de reconhecimento respeitou o estipulado no artigo 147.º do CPP, que não decorre do artigo 64.º do CPP a presença obrigatória do defensor nessa diligência, e, consequentemente, que a prova assim produzida no auto de reconhecimento podia ser valorada em sede de julgamento, está precisamente a fazer a interpretação que o reclamante questiona das normas em causa e a aplicar tal interpretação ao caso.
13º
Aliás, como vimos, o acórdão recorrido pronuncia-se expressamente quanto à não inconstitucionalidade do art.º 127.º do CPP, no sentido de que não impõe a presença obrigatória de defensor, na diligência do reconhecimento, de forma a que, este entendimento se estenda à situação questionada pelo ora reclamante, em que o arguido não prescinde da assistência do advogado ou defensor.
14º
Pelo que, a nosso ver, por um lado, o reclamante suscitou, adequadamente e no momento processual próprio, as questões de inconstitucionalidade normativas que pretende ver apreciadas por este Tribunal Constitucional.
15º
Por outro lado, parece-nos, que o acórdão recorrido acabou por interpretar e aplicar as normas em causa, na dimensão questionada pelo reclamante, verificando-se, assim, todos os requisitos de admissibilidade do recurso, ao abrigo do artigo 70.º, nº 1, alínea b), da LTC».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão reclamada concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso interposto por não se verificar um dos seus requisitos: a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, dos artigos 126º e 127º do Código de Processo Penal, nas interpretações identificadas pelo recorrente. No caso, por a decisão recorrida não ter aplicado, como razão de decidir, o artigo 126º, interpretado no sentido de que não constitui prova proibida a realização de um reconhecimento do arguido, nos termos e para fins do artigo 147º do Código de Processo Penal, sem a assistência por parte de defensor ou advogado, mesmo quando o arguido não prescindiu desta mesma assistência; nem, tão-pouco, o artigo 127º do Código de Processo Penal, no sentido de que este permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem assistência de um defensor ou advogado, da qual não prescindiu.
O reclamante sustenta, fundamentalmente, que estas duas disposições legais foram aplicadas, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido e que o foram naquelas dimensões interpretativas.
Importa começar por referir que a decisão que é objecto da presente reclamação não pôs propriamente em causa que o Tribunal da Relação de Lisboa tenha interpretado e aplicado os artigos 126º e 127º do Código de Processo Penal. Concluiu-se apenas que a decisão recorrida não tinha aplicado estas disposições legais nas interpretações identificadas pelo recorrente. Com efeito, não foi por esta apreciada nem decidida, por ser irrelevante no caso, a questão de saber se a prova por reconhecimento é válida quando, não tendo o suspeito/arguido prescindido de assistência de um defensor ou advogado, tal prova tenha lugar sem a assistência de um ou de outro.
Como já se deixou dito nos Acórdãos nºs 413/2004 e 532/2006 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), há que distinguir duas questões diferentes: a de saber se se pode recusar ao suspeito/arguido o direito de ser assistido por defensor no reconhecimento que tenha lugar na fase de inquérito (cf. artigo 32º, nºs 1 e 3, primeira parte, da Constituição), ou seja, se se pode realizar esta prova sem assistência de defensor, apesar do suspeito/arguido dela não ter prescindido; e a de saber se a assistência por defensor é obrigatória na prova por reconhecimento que tenha lugar na fase de inquérito (cf. artigo 32º, nºs 1 e 3, segunda parte, da CRP).
Foi aquela primeira questão a colocada ao Tribunal Constitucional, mas o que é facto é que o tribunal recorrido não a decidiu. Nem sequer tinha que a decidir, uma vez que partiu do pressuposto de que a prova por reconhecimento teve lugar sem assistência de defensor, sem que o reclamante tenha manifestado, anteriormente, a vontade de ser assistido por defensor ou advogado. Decidiu, por isso, a segunda questão, a da obrigatoriedade da presença de defensor no reconhecimento previsto no artigo 147º do Código de Processo Penal (fl. 1081 e s. dos presentes autos).
Na verdade, não resulta dos presentes autos, diferentemente do sustentado pelo reclamante, que se tenha recusado a assinar o auto de reconhecimento em protesto pela realização da diligência sem a presença de um advogado ou defensor. Pelo contrário, deles resulta que o recorrente não manifestou, anteriormente à realização da prova por reconhecimento, a vontade de ser assistido por um ou por outro: dos autos de reconhecimento não consta o motivo que o levou a recusar-se a assinar (fls. 335 a 340); o reclamante recusou-se a assinar o auto de interrogatório de arguido, em virtude de “não ter praticado os actos que lhe são imputados” (fl. 341 e s.); o arguido não assinou o auto de constituição de arguido, tendo prescindido de defensor neste acto, nem tão-pouco o termo de identidade e residência (fls. 343 e 344); no parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa lê-se que “em momento algum o recorrente – que tem, aliás, mandatário constituído desde o dia 11-12-06 – arguiu qualquer anomalia sobre os respectivos “autos”, nomeadamente a sua falsidade, e/ou alegou que tenha então pedido, e lhe tenha sido recusada, a presença de advogado ou defensor nas diligências de “reconhecimento” (fl. 934).
Não se podendo dar como verificado o requisito do recurso de constitucionalidade que a decisão sumária considerou em falta, resta confirmar a mesma.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 15 de Novembro de 2010.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.