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Processo n.º 17/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por acórdão de 23.02.2009 da 1ª Vara Criminal de Lisboa, foi o arguido A. condenado, como autor material, por um crime de corrupção activa para a prática de acto lícito, previsto e punido pelo artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na redacção da Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, na pena de vinte e cinco dias de multa à razão diária de duzentos euros, o que perfaz o montante global de cinco mil euros.
Desse acórdão recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa quer o arguido quer o Ministério Público e o assistente.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 22.04.2010, foi o arguido absolvido.
Inconformados, desse acórdão interpuseram recurso o Ministério Público e o assistente para o Supremo Tribunal de Justiça.
Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, foi proferida pelo aí relator decisão sumária, datada de 15.10.2010, através da qual se rejeitaram, por inadmissibilidade legal, os recursos interpostos.
Inconformados, o Ministério Público e o assistente reclamaram dessa decisão para a conferência.
Por acórdão datado de 2.12.2010, foram as reclamações indeferidas e mantido o decidido pelo relator.
No entender do Tribunal, embora da interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, se retirasse a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, de acórdão do Tribunal da Relação que, absolvendo o arguido por determinado crime, revogasse a condenação do mesmo, em primeira instância, numa pena não privativa da liberdade, tal norma, assim interpretada, seria inconstitucional, por violação dos artigos 13.º e 32.º, n.º 1 da Constituição, pelo que se deveria recusar a sua aplicação ao caso dos autos.
Ao fundamentar o seu juízo de desaplicação de norma por inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal de Justiça, como já antes o fizera a decisão sumária proferida pelo relator, argumentou que, ao admitir o recurso em tal situação, o legislador estaria a dar um tratamento diferente daquele que confere à situação inversa em que, revogando uma decisão absolutória proferida na primeira instância, o acórdão da Relação, proferido em recurso, condena o arguido numa pena não privativa da liberdade.
Na base de tal entendimento está, portanto, o confronto entre duas situações consideradas como simetricamente opostas em que, na primeira, existe uma condenação em pena não privativa de liberdade seguida de absolvição e, na segunda, uma absolvição seguida de condenação em pena não privativa da liberdade.
2. É deste acórdão que, através de requerimentos autónomos, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional tanto o Ministério Público quanto o assistente. Fizeram-no ao abrigo da alínea a) do n.º1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC), e por ter sido recusada a aplicação da norma constante dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, de acórdão do Tribunal da Relação, que, ao absolver o arguido de um dado crime, revogue a condenação do mesmo em pena não privativa da liberdade imposta na primeira instância.
3. Recebido o recurso no Tribunal Constitucional, nele apresentaram alegações, como recorrentes, o Ministério Público e o assistente no processo.
Defendeu o primeiro que se confirmasse o juízo de inconstitucionalidade proferido pela decisão recorrida. Pugnou o segundo pela rejeição desse juízo. Foram os seguintes, os argumentos apresentados por um e por outro.
4. Entendeu desde logo o Exmo. Representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional que, em matéria penal, a regra relativa à recorribilidade das decisões judiciais se tinha que colher no disposto no artigo 399.º do Código de Processo Penal, segundo o qual é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei. Partindo desta regra geral de recorribilidade – e, portanto, da natureza típica das excepções previstas nas diversas alíneas do artigo 400.º do CPP – chegou o Ministério Público à conclusão segundo a qual, no caso, seria recorrível a decisão, por não ser o seu tipo subsumível em nenhuma das excepções, expressamente previstas pelo legislador, de decisões irrecorríveis.
No entanto – continuou – tal implicaria que o sistema legal trataria diferentemente duas situações “opostas mas indissociáveis”. Por um lado, a situação prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, segundo a qual não são recorríveis as decisões proferidas pela Relação que condenem o arguido em pena não privativa de liberdade. Por outro lado, a situação dos autos, à qual se aplicará a norma segundo a qual serão recorríveis – evidentemente, por parte da “acusação” – as decisões proferidas pela Relação que absolvam o arguido em pena não privativa de liberdade.
Esta diferença, legislativamente consagrada, entre as duas situações não é para o Exmo. Representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional uma diferença constitucionalmente admissível. Mesmo tendo em conta que o processo penal não é um processo de partes e que, nele, o princípio da igualdade de armas terá um conteúdo tal que não incluirá por certo uma “igualdade matemática ou mesmo lógica”, a inexistência do recurso do arguido, na primeira situação, e a existência do recurso da “acusação”, na segunda situação, consubstancia, no seu entendimento, uma diferença de regimes que, não envolvendo qualquer “compressão” do estatuto constitucional do Ministério Público, não tem a justificá-la, sob o ponto de vista dos direitos da defesa, um critério de razoabilidade bastante. A norma que atribui à acusação o direito de recorrer – em caso de absolvição do arguido, pela Relação, em pena não privativa de liberdade – será por isso inconstitucional, por violação dos artigos 13.º e 32.º, n.º 1, da CRP.
5. Em diverso sentido alegou o assistente, que pugnou, como já se disse, pelo juízo de não inconstitucionalidade.
Partindo embora de premissa idêntica à adoptada pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal – a saber, a de que seria recorrível a decisão proferida no caso, por se não poder subsumir a nenhuma das excepções tipicamente previstas pelo legislador no n.º 1 do artigo 400.º do CPP – chegou, no entanto, a conclusões opostas, justificadas pelo fundamento encontrado para a mencionada recorribilidade.
Sendo, no seu entender, tal recorribilidade ainda reportável à lógica do sistema legislativo, lógica essa que implicaria por regra a admissão de recurso quanto a decisões judiciais que não prefigurassem uma “dupla conforme”, concluiu o assistente que a admissão de recurso interposto pela “acusação” (de decisão absolutória proferida pela Relação), não implicaria nenhuma solução normativa que fosse “arbitrária” ou “desigual”, visto que a justificá-la estaria precisamente a inexistência, no caso, de uma “dupla conforme”. E, posto que o desentendimento, em matéria de direito, entre duas instâncias judiciais, justificaria sempre a existência do recurso, concluiu que a solução legislativa subjacente à norma sob juízo não seria inconstitucional, por se inscrever ainda (tal como a solução oposta, de não admissão de recurso) no âmbito de liberdade conformadora do legislador ordinário.
Mais acrescentou que, no seu entender, padecia de um vício lógico a argumentação oferecida pela decisão recorrida. Para além de conceber como “simétricas” duas situações que na verdade o não seriam (primeira, a da inexistência de recurso, por parte do arguido, de acórdão condenatório em pena não privativa de liberdade proferido em segunda instância pela Relação; segunda, a da existência de recurso, por parte da “acusação”, de acórdão proferido pela mesma Relação que, por ser absolutório, nada poderia revelar quanto ao teor do primeiro julgamento), a referida decisão teria apreciado, “em sede errada”, a restrição imposta pelo legislador ordinário ao direito de recurso do arguido, inferindo que, por ela existir, deveria também ocorrer igual restrição para o Ministério Público ou o assistente.
6. O arguido A., na qualidade de recorrido, apresentou as suas contra-alegações, nas quais subscreveu por inteiro os argumentos apresentados pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional quanto ao juízo de inconstitucionalidade.
Este último, notificado para contra-alegar relativamente ao recurso interposto pelo assistente, remeteu para as alegações produzidas no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público, concluindo pelo não provimento do mesmo.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. Como decorre do relato que vem de fazer?se, está em juízo, neste recurso, a norma constante dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, de acórdão do Tribunal da Relação, que, absolvendo o arguido de um dado crime, revogue a condenação do mesmo em pena não privativa da liberdade imposta na primeira instância.
Entendeu o tribunal a quo que tal norma, assim interpretada, era inconstitucional, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 13.º da Constituição.
8. A argumentação que conduziu ao juízo de inconstitucionalidade desenvolveu-se ao longo de quatro passos essenciais.
Considerou antes do mais o Supremo que, como em processo penal valia, em matéria de recorribilidade das decisões judiciais, a regra geral constante do artigo 399.º do CPP (é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei), o elenco das decisões irrecorríveis fixado pelo n.º 1 do artigo 400.º do CPP teria que ser lido como um elenco fechado de excepções típicas, cada uma delas insusceptível de ser alargada ou reduzida por via de interpretação.
Por ser assim, concluiu que, no caso dos autos, haveria que se admitir o recurso interposto pelo Ministério Público e pelo assistente da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, que absolvera o arguido na condenação que lhe fora imposta pela primeira instância em pena não privativa de liberdade. E isto porque o tipo de decisão em causa (decisão absolutória proferida em recurso pela Relação, que revoga decisão condenatória tomada em 1ª instância) se não podia subsumir a nenhuma das excepções típicas (configuradoras de decisões irrecorríveis) taxativamente enumeradas no n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
No entanto, tal norma – a que admite recurso de decisões absolutórias proferidas pela Relação que revoguem condenação do arguido em primeira instância em pena não privativa de liberdade – foi confrontada com a outra, aplicável, segundo o Supremo, à situação simetricamente oposta. Em casos de acórdãos da Relação, proferidos em recurso, que condenem o arguido em pena não privativa de liberdade, nunca há recurso para o Supremo. É o que decorre, a contrario, do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP. Chega-se assim – e é este o terceiro passo de argumentação dado pela decisão recorrida – a uma solução legislativa que desafia a coerência do sistema. Se o arguido for condenado pela Relação em pena não privativa de liberdade (em acórdão proferido em recurso), a decisão condenatória é, para qualquer uma das “partes”, irrecorrível. Mas se o arguido for absolvido, então – e porque tal não configura uma das excepções típicas à regra geral da admissibilidade dos recursos –, a “acusação”poderá sempre recorrer, havendo portanto lugar ao segundo grau de recurso, coisa que a lei excluíra na situação “simetricamente oposta”.
Finalmente, entendeu o Supremo que a solução legislativa, mais do que incoerente ou desafiadora da lógica de sistema, era inconstitucional, por lesar conjuntamente quer os princípios constitucionais relativos às garantias da defesa em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1) quer o princípio da igualdade, entendido como proibição do arbítrio (artigo 13.º, n.º 1 da CRP). Fê-lo invocando os seguintes termos:
Já vimos que a simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações:
– não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1, al. e, do CPP);
– é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400.º, este “a contrario”).
Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos.
*
A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade
(…)
Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer.
Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição).
Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.
É certo que o Processo Penal não é um processo de partes. Mas o direito de defesa, constitucionalmente protegido, exige a igualdade de armas, pelo menos após o encerramento do inquérito.
(…)
Ora, o tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação!
Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.
Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal. Não se nega à “acusação” (M.º P.º ou Assistente) o direito, também constitucionalmente protegido, de recorrerem das decisões desfavoráveis, mas têm de o fazer em pé de igualdade com a defesa, nunca com superioridade de meios.
Deve desde já dizer-se que, perante estes fundamentos, não resulta totalmente claro se o parâmetro constitucional que serve de base à decisão de recusa de aplicação de norma é apenas um – reportado a uma conjugação entre o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição e os direitos de defesa, incluindo o direito ao recurso, que se retiram do artigo 32.º, n.º 1 – ou se, para sustentar a sua decisão, o Tribunal a quo invoca, como vícios de inconstitucionalidade autónomos, por um lado, o princípio da igualdade e, por outro, os direitos de defesa do arguido. Mas para além desta dúvida, à qual ainda se voltará, uma outra se coloca, face ao teor da declaração recorrida.
9. Com efeito, compreende-se, pelos termos da declaração de voto que acompanha a referida decisão, que não foi incontroversa a qualificação do problema que acabou por ser colocado, como problema de constitucionalidade, ao Tribunal Constitucional.
De acordo com uma das orientações a este propósito expressas (e constante da referida declaração), a questão não seria de constitucionalidade mas de interpretação do direito ordinário. A reposição do equilíbrio e da harmonia no seio do sistema de recursos em processo penal (que a assimetria das soluções aparentemente encontradas revelava) sempre se poderia efectuar, para esta orientação, por via interpretativa: bastaria para tanto considerar também legalmente inadmissível o recurso interposto da sentença absolutória, por força da redução teleológica da norma constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, de acordo com o princípio base inscrito no artigo 432.º, n.º 1, alínea c) do mesmo Código.
Não foi, no entanto, esta a orientação que veio a ser perfilhada pela decisão recorrida que, entendendo ilegítima a escolha daquela via “interpretativa” – por, mais do que interpretação, implicar correcção da solução fixada pelo legislador ordinário –, não deixou de considerar que a única leitura possível da lei seria a da admissão do recurso em caso de sentença absolutória, leitura essa que, como se viu, conduziu ao juízo de inconstitucionalidade e à consequente recusa de aplicação de norma.
Não compete ao Tribunal Constitucional tomar posição sobre qual seja a correcta interpretação do direito ordinário. No caso sob juízo, o que parece certo é que o dado perante o qual é o Tribunal é confrontado é de uma verdadeira recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, o que justifica a sua intervenção nos termos da Constituição e da lei.
Com efeito, na base das duas orientações interpretativas em disputa no caso concreto – a que propugna a redução da norma relativa à admissibilidade do recurso, e a que, entendendo tal redução como ilegítima, concluí pelo juízo de inconstitucionalidade – está uma mesma e única situação de partida: a verificação de uma contradição no sistema legislativo, resultante do diverso tratamento – sempre em prejuízo dos direitos da defesa – de duas situações que são tidas como perfeitamente simétricas (no caso em que o arguido é condenado não pode recorrer e pedir a sua absolvição, no caso em que é absolvido pode a acusação recorrer e pedir a sua condenação). De acordo com a primeira orientação, o problema resolver-se-ia por meio dos critérios interpretativos próprios do direito infra-constitucional, critérios esses que teriam portanto a virtualidade de fazer descobrir, por detrás da aparência do mau direito, a correcta solução dado ao caso pelo legislador ordinário. De acordo com a segunda orientação, não havendo aqui lugar algum para a interpretação – dada a natureza típica das situações excepcionais que são previstas no elenco do n.º 1 do artigo 400.º do CPP –, tornar?se-ia inequívoca a solução desejada pelo legislador: em caso de sentenças, proferidas em recurso, pela Relação, que absolvam o arguido em pena não privativa de liberdade, pode a “acusação” recorrer para o Supremo; mas já no caso simétrico (de sentenças condenatórias na mesma pena) não pode o arguido recorrer. Sendo incontestável a “existência” desta norma, é sobre ela que incide o juízo de inconstitucionalidade, por lesão dos artigos 32.º, n.º 1 e 13.º da Constituição.
Interpôs-se recurso para o Tribunal Constitucional de decisão em que foi maioritária a segunda orientação. Assim – e apesar de, nela, os argumentos de direito constitucional surgirem em discussão com argumentação relativa à interpretação do direito ordinário, argumentação essa alheia à competência própria do Tribunal – é o resultado interpretativo que essa orientação, maioritária, acolheu, que surge como um dado no presente recurso de constitucionalidade.
Importa, por isso, resolver a questão.
10. Para sustentar o seu juízo, entendeu a decisão recorrida que, por implicar uma diferença de tratamento em casos que deveriam ser tratados como iguais, a norma sub judicio viola o artigo 13.º e 32.º, n.º 1 da Constituição.
Note-se, como já se disse, que não resulta totalmente claro se o parâmetro constitucional que serve de fundamento à recusa de aplicação da norma é apenas um – reportado a uma conjugação entre o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição e os direitos de defesa, incluindo o direito ao recurso, que se retiram do artigo 32.º, n.º 1 – ou se, para sustentar a sua decisão, o Tribunal a quo invoca, como vícios de inconstitucionalidade autónomos, por um lado, o princípio da igualdade e, por outro, os direitos de defesa do arguido.
Em qualquer caso, é seguro que na base do entendimento sufragado pelo Tribunal a quo está o confronto entre duas situações consideradas como simetricamente opostas em que, na primeira, existe uma condenação em pena não privativa de liberdade seguida de absolvição e, na segunda, uma absolvição seguida de condenação em pena não privativa da liberdade.
Importa observar que o que está aqui em causa não é a conformidade constitucional da irrecorribilidade do recurso na segunda situação, determinada pelo disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, pois é pacífico que o direito ao recurso que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, integra as garantias de defesa do arguido não impõe o esgotamento de todas as instâncias que a lei preveja, podendo o legislador determinar a irrecorribilidade das decisões da Relação que, em recurso de decisões absolutórias da primeira instância, condenem o arguido (v., nesse sentido, acórdão n.º 353/2010, disponível em www.tribunalconstitucional.pt e jurisprudência nele referida).
O que é censurado é que, ao mesmo tempo que, para determinado tipo de situações (absolvição na primeira instância seguida de condenação numa pena não privativa de liberdade), impede a interposição do recurso por parte do arguido, a lei consinta a interposição do recurso pela acusação na situação simetricamente oposta em que o arguido é absolvido na Relação, tendo sido condenado na primeira instância numa pena não privativa de liberdade.
Ora, se assim é, dir-se-ia, numa primeira apreciação, que a norma sub judicio não mereceria qualquer censura à luz dos direitos de defesa do arguido, tal como consagrados no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.
11. Com efeito – e como sempre tem dito o Tribunal (vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.ºs 132/92 e 640/04, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) –, nem o processo penal é constitucionalmente concebido como se de um processo de partes se tratasse nem, nele, o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa pode ser lido como obrigando ao estabelecimento de uma igualdade matemática ou sequer lógica entre o estatuto processual de quem se defende e o estatuto processual de quem acusa.
É certo que, descontada esta concepção mecanicista do princípio, que a Constituição não postula, a igualdade de armas deve operar sempre em favor da defesa. De tal modo que pode dizer-se que se é verdade que dela não decorre uma injunção de equiparação”matemática” entre condições processuais da defesa e da acusação, não menos verdade é que dela nasce a ideia segundo a qual quem acusa não deve dispor de meios de influência (sobre o modo pelo qual o tribunal forma a sua convicção) que sejam, na sua substância e efectividade, manifesta e desrazoavelmente superiores àqueles que são conferidos a quem se defende. A questão está, porém, em saber se tal basta para que, à luz do direito constitucional de defesa – e do princípio da igualdade de armas –, se conclua pela proibição constitucional da admissibilidade de recurso a interpor pelo Ministério Público e pelo assistente de sentenças absolutórias proferidas pela Relação, apenas porque, no caso “simétrico” de sentenças condenatórias, a lei veda o recurso ao arguido. É que sempre se dirá que se a este último forem dados, na nova frase processual que então se abre, todos os necessários e suficientes meios de apresentação das suas razões, nenhum motivo há para que se pense que foi o simples reconhecimento do direito de recurso à acusação (com a negação de semelhante direito à defesa, em caso simétrico) que fez emergir uma ruptura, constitucionalmente censurável, do princípio da igualdade de armas.
Se se fundasse, autonomamente e apenas, na violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a recusa de aplicação de norma, feita pela decisão recorrida, não teria, portanto, razão.
A verdade, porém, é que foi outro o percurso argumentativo seguido pelo tribunal a quo.
Numa tentativa de reconstrução racional desse percurso, poderá sustentar-se que, se nele foi incluído o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição – ou, mais rigorosamente: se no parâmetro de controlo à luz do qual foi invalidada a norma sob juízo se incluíram as garantias constitucionais dos direitos de defesa do arguido e o seu direito ao recurso –, tal sucedeu porque o tribunal a quo se viu na necessidade de demonstrar que tinha perante si um sistema, modelado pela lei, de recursos em processo penal que não padecia apenas de um desequilíbrio interno. Mais do que isso. Ao tratar diferentemente situações “simétricas”, sem, que à luz da sua própria lógica interna, se pudesse justificar a diferença, continha o referido sistema de recursos uma medida de desigualdade intolerável pela Constituição. Sendo este o caminho da argumentação que a decisão recorrida percorreu, é à face dele que se deverá resolver a questão de constitucionalidade que foi colocada.
12. É ponto assente que qualquer regime de recursos que, neste domínio, o legislador ordinário estabeleça deve prosseguir as finalidades que a Constituição assinala, em geral, ao direito processual penal: assegurar a necessária concordância prática entre, por um lado, as garantias de defesa do arguido, incluindo o seu direito ao recurso, e, por outro, o imperativo de realização em tempo côngruo da justiça penal. Nesta medida, o referido modelo não pode deixar de se apresentar como um sistema, isto é, como um conjunto de soluções normativas entre si harmónicas, porque concorrentes, todas elas, para a prossecução dessas finalidades comuns que, em última análise, cada uma justificam.
Por outro lado, é também ponto assente que o n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os actos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjectivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face a ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavlmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjectivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.
O regime de recursos em processo penal contém, seguramente, uma certa unidade sistémica, essa mesma que decorre, como já vimos, do facto de cada uma das suas normas dever concorrer para a prossecução do fim que é comum ao sistema: o de assegurar a congruência prática entre, por um lado, o princípio constitucional de observância das garantias de defesa do arguido e, por outro, o princípio constitucional da necessária realização, em tempo côngruo, da justiça penal.
Foi em função desse fim comum que a actual redacção do n.º 1 do artigo 400.º do CPP determinou as situações de irrecorribilidade, para o Supremo Tribunal de Justiça, das decisões proferidas em recurso pelos Tribunais da Relação. Para tanto, e após as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o “sistema” parece assentar em dois grandes critérios que orientaram as escolhas do legislador.
Por um lado, terá o legislador entendido que o recurso para o Supremo (de decisões tomadas, também em recurso, pelas relações) deveria ser reservado aos casos de maior merecimento penal. É nesse contexto – corroborado, aliás, pela exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que iniciou o procedimento legislativo que conduziu à aprovação da Lei n.º 48/2007 – que se compreenderá a versão actual da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, que consagrou a regra da irrecorribilidade de todas as decisões, proferidas em recurso pelos tribunais da relação, que apliquem pena não privativa de liberdade; ou que se compreenderá a actual redacção da alínea f) do mesmo n.º 1, que consagrou por seu turno a regra da irrecorribilidade dessas decisões, quando apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
Por outro lado, entendeu ainda o legislador que o recurso para o Supremo não deveria ser admitido sempre que sobre o caso tivessem já recaído dois juízos, proferidos pelas instâncias, de teor conforme. É de acordo com este critério – já proveniente, aliás, da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto – que se compreende a alínea d), bem como a primeira parte da alínea f), do mesmo n.º 1 do artigo 400.º.
13. Sustenta o tribunal a quo que este sistema de recursos, funcionalizado ao fim que acima mencionámos e assente nos critérios que acabámos de individualizar, é internamente incongruente; e que a sua incongruência é de molde a merecer juízo de inconstitucionalidade nos termos do artigo 13.º da CRP.
Como já se viu, a tese – que defende ocorrer no caso, por incongruência sistémica, violação do princípio da igualdade [em ligação com o princípio das garantias de defesa do arguido] – assenta no modo diverso pelo qual o legislador tratou duas situações que são tidas como “simétricas”. Na situação em que o arguido é absolvido, em primeira instância, e depois condenado, em segunda instância, em pena não privativa de liberdade, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP. Mas na situação inversa ou simétrica – em que o arguido é condenado em 1ª instância em pena não privativa da liberdade, e depois absolvido pela relação – caberá recurso, a interpor naturalmente pela “acusação”.
Sem questionar a possível incongruência ou menor racionalidade que a solução possa, face à lógica do sistema, apresentar – incongruência ou menor racionalidade que, como já foi dito, não cabe ao juiz constitucional censurar – não se vê como é que de tal estado de coisas possa decorrer a violação do disposto no artigo 13.º, n.º 1, da CRP. Dizendo por outras palavras, não se vê como é que da menor racionalidade do “sistema” possa emergir um regime de recursos que seja constitucionalmente censurável, por se traduzir em tratamento desrazoavelmente diverso (isto é, não justificável à luz da ratio que o próprio regime prossegue) de certas e determinadas posições jurídico-subjectivas.
Já vimos que a desigualdade entre a acusação e a defesa, que a situação incongruente porventura trará, não é só por si motivo para que se considerem lesadas as garantias de defesa do arguido em processo criminal, consagradas no artigo 32.º da CRP. O que a solução (menos harmónica, face à lógica do sistema) permite é que se abra – em casos de condenação do arguido, em 1ª instância, em pena não privativa de liberdade, seguida de absolvição em 2ª instância – uma nova e última fase de recurso perante o Supremo. Nada impede que, nesta terceira e última fase de discussão do caso, sejam observadas todas as garantias de defesa do arguido.
Por outro lado, nada permite concluir que a diversidade de tratamento entre as duas situações seja, à luz apenas do princípio da igualdade, desrazoável, por introduzir entre certas posições jurídico-subjectivas diferenças de regime injustificáveis, face aos fins que, em adequação com os princípios constitucionais que lhe são aplicáveis, o “sistema” legal deve prosseguir.
Para dar concretização aos princípios constitucionais que, na matéria, são aplicáveis, resolveu o legislador ordinário limitar as situações de recorribilidade, para o Supremo, de decisões [tomadas em recurso] pelas relações aos casos em que: (i) seja maior o merecimento penal; (ii) não haja, através da chamada “dupla conforme” suficiente grau de certeza quanto aos juízos já obtidos quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito.
O primeiro critério explica que o legislador, no exercício da margem de liberdade conformadora que o Tribunal já lhe reconheceu (Acórdão nº 353/2010), tenha fixado a regra da irrecorribilidade daquelas decisões da relação que, proferidas em recurso, apliquem pena não privativa da liberdade. Mas a verdade é que o facto de o legislador ter tomado, para esta situação típica, a opção da irrecorribilidade, o não constitui em dever de tomar opção idêntica para a situação inversa. O dever não decorre, como já vimos, das garantias de defesa do arguido. O dever não decorre, autonomamente, do princípio da igualdade.
Face à ratio do sistema – que busca conciliar garantias de defesa do arguido e realização da justiça penal, com a consequente busca da verdade material –, não se mostra de todo injustificável que seja aberta mais uma via de recurso naquelas situações em que, a uma condenação em primeira instância em pena não privativa de liberdade, se siga uma absolvição em 2ª instância. A partir do momento em que se sabe que a abertura de tal via de recurso não coarcta ao arguido o exercício, durante ela, das suas garantias de defesa, nenhum motivo há para que se julgue inconstitucional a solução da recorribilidade. Tal solução pode parecer, na lógica do sistema, incongruente ou menos racional. Mas não é contrária à Constituição. Operando o princípio constitucional da igualdade como vínculo negativo das escolhas do legislador – que só proíbe diferenças de tratamento legislativo que sejam, nos termos atrás definidos, injustificáveis – o facto de o legislador ter escolhido proibir o recurso, na situação de condenação em 2ª instância em pena não privativa de liberdade, não o constitui na obrigação jurídica de adoptar a mesma regra de proibição na situação dita “simétrica”. Nada há na Constituição que imponha ao legislador, para este caso, um dever líquido e certo de se orientar no sentido da proibição do recurso.
III – Decisão
Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, de acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que, ao absolver o arguido de um dado crime, revogue a condenação do mesmo em pena não privativa da liberdade imposta na primeira instância; e
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, reformando-se a decisão recorrida em conformidade com o juízo respeitante à questão de constitucionalidade
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.