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Processo n.º 305/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. intentou, a 7 de Abril de 2007 e junto do Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, acção contra B. e C., pedindo que se declarasse que não era pai desta última e, em consequência, que fosse ordenado o cancelamento do respectivo assento de nascimento, com a menção da paternidade que aí lhe fora atribuída.
Contestou a ré B., invocando, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, a caducidade do direito do autor a impugnar a paternidade de C.. Alegava para tanto o facto de A. ter conhecimento do nascimento da menor, pelo menos, desde Julho de 1998.
Em réplica, sustentou o autor que seria inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2 da CRP, a fixação de um prazo de dois anos (contados desde o conhecimento “de circunstâncias de que possa concluir-se a não paternidade”) para a propositura de acção de impugnação da paternidade por parte do marido, nos termos da disposição, então vigente, do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil.
O tribunal de 1ª instância, desatendendo a alegação de inconstitucionalidade, julgou procedente a excepção de caducidade da acção, e, em consequência, absolveu as rés do pedido que contra elas havia sido formulado.
Desta decisão interpôs A. recurso para o Tribunal da Relação. O tribunal, julgando improcedente o recurso, confirmou a decisão da 1ª instância.
Recorreu então o autor para o Supremo Tribunal de Justiça.
A 25 de Março de 2010 o Supremo, depois de se referir ao Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na parte em que previa, para a caducidade do direito a investigar a paternidade, um prazo de dois anos a contar da maioridade do investigante, colocou a questão de saber se a tese da inconstitucionalidade deveria valer também para as acções de impugnação [da paternidade], nos termos do artigo 1842.º, n.º 1, alíneas a), b) e c).
Centrando-se, como o exigiam as particularidades do caso sob juízo, na questão de constitucionalidade do prazo de caducidade para a interposição da acção de impugnação da paternidade por parte do marido (alínea a) do n.º 1 do artigo 1482.º do Código Civil), concluiu o Supremo do seguinte modo:
[O]s tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, por imperativo da verdade biológica, não tendo sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas, nem da insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a paternidade, a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade.
Efectivamente, os prazos de caducidade nas acções de estabelecimento de filiação estão em crise ou tornaram-se menos sedutores, sobretudo quando a caducidade não visa proteger uma realidade com consistência familiar efectiva, um vínculo de filiação “social” que desempenhe as suas funções, um vínculo que se exprima por «posse de estado», apesar de lhe faltar o fundamento biológico, tornando-se a previsão de um prazo com os fins típicos e abstractos da defesa e segurança, pouco convincente nestas matérias.
Deste modo, o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere, claramente, a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do direito de impugnar.
Enquanto a ordem jurídica nacional continuar a ser de matriz, essencialmente, biologista, é espectável que o direito de pesquisar a verdade não caduque, devendo o Direito da Filiação adequar-se à verdade biológica, por, apesar de tudo, ser ainda a “mais verdadeira”, ou, então, dito de outro modo, a menos imprevisível, que busca a coincidência entre o Direito e as realidades do sangue, em vez de procurar garantir o estatuto de filho “legítimo” e um certo entendimento da “paz das famílias”.
Esta é a solução que está de acordo com a tendência moderna e dominante, embora não pacífica, em direito comparado, de sobrepor às exigências da segurança jurídica, da eficácia das provas e da estabilidade das situações familiares adquiridas aquele interesse público da procura da verdade biológica, quando, não obstante a subsistência jurídica da família conjugal e do vínculo da paternidade, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afectiva.
Assim sendo, as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, estão, outrossim, presentes na disposição contida no artigo 1842º, nº 1, a), ambos do CC.
Ora, não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, seja necessário e proporcional, face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada, e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade, em homenagem a essas restrições.
O prazo para o exercício do direito de impugnação traduz mais uma hora de reflexão para a opção a tomar pelo interessado do que o tempo de preparação da prova para lograr em juízo o triunfo da verdade.
A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, tais como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, prevalecem sobre a ideia da existência de prazos de caducidade nas acções de estabelecimento da filiação.
Por seu turno, a impugnação deduzida pelo autor, relativamente à paternidade presumida da ré menor, no que concerne à substância de um casamento que não chegou a durar sete anos e de uma coabitação inferior a quatro, não agride um estado jurídico e social prévio, dotado de uma longevidade e densidade consideráveis, não se mostrando sujeito a uma particular censura jurídico-constitucional, face à justificação de fundo apresentada, em que não releva sobremaneira a inércia ou o desinteresse daquele.
O único interesse que poderia invocar-se em contraponto ao direito fundamental do marido da mãe em determinar, juridicamente, a verdadeira paternidade biológica da menor CC, seria o da «harmonia e estabilidade da vida e da família conjugal», se o mesmo, porém, devesse prevalecer, face ao princípio da proporcionalidade, pois que tais limitações específicas ao direito de agir contra os supostos filhos de progenitores casados, ao tempo do nascimento ou apenas no momento do seu reconhecimento, não se traduzem em efeitos discriminatórios, constitucionalmente, vedados.
Efectivamente, as desvantagens que advêm para a menor da perda da possibilidade de vir a ter a paternidade fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o autor de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação à menor, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez, biológica, e não já por presunção.
Caso procedesse a caducidade do direito de impugnação, por parte do marido da mãe, cercear-se-ia, em definitivo, o direito fundamental do autor à identidade pessoal e, correlativamente, do filho a ver reconhecida a paternidade biológica.
Aliás, face à pluralidade das pessoas a quem a lei hoje confere legitimidade para impugnar a paternidade presumida e à diversidade de prazos dos vários titulares da legitimidade activa para o efeito, isto é, três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, para o marido da mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento, para a mãe, e até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou, posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, para o filho, por força do disposto pelo artigo 1842º, nº 1, a), b) e c), do CC, a opção pela paternidade presuntiva não poderá ter-se como consolidada antes de terem caducado todos os direitos de impugnação atribuídos aos seus diferentes titulares.
E, a aceitar-se, tão-só, a inconstitucionalidade do prazo de caducidade da acção de impugnação de paternidade, por parte do filho, então, jamais se perfeccionaria a opção pela paternidade presuntiva.
Escoam-se, assim, com o devido respeito, os argumentos que ainda pretendem sustentar a constitucionalidade do prazo de impugnação da paternidade presumida nas acções intentadas pelo marido da mãe.
Conclui-se, pois, que a norma prevista no artigo 1842º, nº 1, a), do CC, na dimensão interpretativa explicitada, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva, na parte em que prevê o prazo de três anos para o marido da mãe intentar a acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era o pai biológico, e bem assim como do estipulado pelos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da CRP.
Logo, o prazo do artigo 1842º, nº 1, a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de o presumido progenitor impugnar, a todo o tempo, a sua paternidade, constituindo uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação, por períodos, excessivamente, longos, face à defesa do direito constitucional à identidade, consagrado pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, é inconstitucional, razão pela qual não ocorre a caducidade da acção.
2. Desta decisão recorreram para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as rés no processo principal. De acordo com o teor dos respectivos requerimentos, foram os dois recursos interpostos ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), por ter a decisão recorrida recusado a aplicação da norma constante do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil. No requerimento apresentado pelo Ministério Público acrescentava-se referência à “dimensão normativa” que fora considerada pelo tribunal a quo.
3. Admitidos os recursos no Tribunal Constitucional, nele apresentaram alegações recorrentes e recorrido.
Disseram a recorrentes rés, fundamentalmente, que se não podia aplicar ao caso dos autos a doutrina do Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional que, atinente apenas ao prazo de dois anos que o Código Civil fixava para a interposição da acção de investigação da paternidade, não seria extensiva a qualquer outro limite temporal; e que o não seria, seguramente, para a interposição da acção de impugnação da paternidade pois que, quanto a esta última – e quanto à sujeição da respectiva acção a prazos de caducidade – sempre haveria que ponderar valores de certeza e segurança jurídicas que justificariam a proporcionalidade da restrição ao direito, constitucionalmente tutelado, do impugnante. Mais alertaram os recorrentes para o facto de ter entretanto entrado em vigor a Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que introduziu um novo regime sobre a matéria.
Disse o Ministério Público, por seu turno, que, face ao teor da decisão recorrida, não ficara claro qual a norma que fora desaplicada – se a constante do n.º 1, alínea a), do artigo 1842.º do Código Civil na versão anterior à Lei n.º 14/2009, que previa para a interposição da acção de impugnação da paternidade por parte do marido um prazo de dois anos “contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade”, se a constante da versão posterior à entrada em vigor da referida Lei, que ampliara para três anos o prazo de caducidade; de qualquer modo, acrescentou, tornava-se irrelevante a ambiguidade porquanto, para o Supremo, seria inconstitucional qualquer solução do legislador ordinário que sujeitasse a acção de impugnação da paternidade a prazos – quaisquer que eles fossem – de caducidade. Assim sendo, o objecto do recurso deveria ser circunscrito à específica dimensão normativa do artigo 1482.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil cuja aplicação fora recusada no caso concreto, dimensão normativa essa que coincidia com a aposição de um prazo limitador da possibilidade do marido propor, a qualquer tempo, acção de impugnação da paternidade, desde o momento em que tivera conhecimento de circunstâncias de que pudesse concluir-se que não era pai biológico do seu presumido filho. Em relação ao recurso, assim circunscrito, pugnou o Ministério Público pela sua procedência, por entender que não era inconstitucional a norma sob juízo. A tese da não inconstitucionalidade, disse, não era nem infirmada pela argumentação constante do Acórdão n.º 23/2006, nem confirmada pela jurisprudência dos Acórdãos n.ºs 589/2007, 73/2009, e 593/2009.
Contra-alegou o recorrido que, aderindo à tese defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, sustentou que era inconstitucional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP, a norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 1482.º do Código Civil, na dimensão interpretativa adoptada pela decisão de que se interpusera recurso. Salientou, como argumentos fundamentais a favor do juízo de inconstitucionalidade, o facto de o interesse público da verdade biológica se dever sobrepor às exigências de segurança jurídica, da eficácia das provas e da estabilidade das situações familiares adquiridas; e ainda o dever de tratamento igual de duas situações que, em seu entender, seriam simétricas – a da impugnação da paternidade por parte do filho (a ocorrer em qualquer tempo) e a da impugnação da paternidade por parte do progenitor marido.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A norma em juízo no caso concreto é a que consta do n.º 1 do artigo 1482.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na parte em que prevê a caducidade do direito do marido a impugnar a paternidade do seu presumido filho. Assim, e como o salienta nas suas alegações o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional, irrelevante se torna a questão de saber se a sentença de desaplicação de norma, proferida, no caso, pelo Supremo Tribunal de Justiça, incidiu sobre a versão da alínea a) do n.º 1 do artigo 1482.º do Código Civil anterior ou posterior à entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril. O facto de esta última lei ter ampliado o prazo de caducidade das acções de impugnação de paternidade é indiferente à decisão recorrida, na exacta medida em que o que esta considerou inconstitucional foi a sujeição dessas acções a prazos de caducidade, quaisquer que eles fossem. Quer isto dizer que, na leitura que o Supremo faz da Constituição, dela decorreria (e, mais exactamente, do disposto no n.º 1 do seu artigo 26.º) um dever líquido e certo para o legislador ordinário: o de facultar ao marido a possibilidade de impugnar, a qualquer tempo desde que tivesse conhecimento de circunstâncias que a infirmassem, a paternidade biológica do seu presumido filho.
No entanto, no Acórdão n.º 589/2007, decidiu o Tribunal não julgar inconstitucional a normas da alínea a) do n.º 1 do artigo 1482.º do Código Civil, ainda na versão anterior à entrada em vigor da Lei n.º 24/2009, de 1 de Abril – ou seja, na parte em que fixava um prazo de dois anos, a contar desde o momento em que tivesse conhecimento de circunstâncias que infirmassem a paternidade biológica do seu presumido filho, para o marido interpor acção de impugnação da paternidade.
O juízo foi confirmado, por maioria de razão, quanto ao prazo de caducidade ampliado (3 anos), que foi fixado pela Lei n.º 24/2009. Vejam?se, neste sentido, os Acórdãos n.ºs 446/2010, 39/2011 e 449/2011 (todos em www.tribconstitucional.pt).
Assim, e em aplicação desta jurisprudência, reitera-se para o presente caso juízo de não inconstitucionalidade.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1, alínea a), do artigo 1482.º do Código Civil, na parte em que admite a caducidade do direito do marido a impugnar a paternidade do seu presumido filho; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, reformando-se a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Dezembro 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.