Imprimir acórdão
Processo n.º 481/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente A. e recorrida a Fazenda Pública, o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 516/2011, que decidiu não conhecer do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. Notificado para dar cumprimento integral ao disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), o recorrente veio dizer o seguinte:
«A., recorrente nos autos à margem identificados, tendo sido notificado do douto despacho de 29.6.2011, proferido a fls. 1138 vem, em resposta ao mesmo, indicar que, sem prejuízo do alegado nas suas alegações de recurso, tal como resulta de folhas 7 dessas alegações de recorrente, recorre para o Tribunal Constitucional do Acórdão do TCA Sul 4.5.2010, proferido no processo de recurso n.° 03714/2010.
A interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie é a que resulta da tese interpretativa adoptada pelo TCA Sul no sentido de que:
a) Tendo lugar a acção de inspecção externa prevista no n.° 1 do artigo 46.° da LGT, o efeito suspensivo do prazo de caducidade do direito à liquidação do imposto não cessa com a notificação da nota de diligência prevista no n.° 1 do artigo 61.° do RCPIT mas mantém-se até à notificação ao contribuinte do relatório final do procedimento e inspecção;
b) E de que essa nota de diligência, cuja notificação ao inspeccionado há-de consubstanciar o términus da acção de inspecção mais não é do que o relatório definitivo de inspecção a que alude o n.° 4 do artigo 60.° (RCPIT, por ser ele que, segundo o referido Acórdão, tem a virtualidade de pôr termo à suspensão do prazo de caducidade previsto no referido artigo 46.° n.° 1 da LGT;
As normas que fundamentam tal interpretação normativa, tal como constam abundantemente citadas no referido Acórdão são, desde logo, os artigos 45.° e 46.° da LGT e os artigos 49.º, 60.°, 61.° e 62.° do RCPIT - Regime Complementar de Prevenção e Inspecção Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 413/98, das quais, quando interpretados no sentido indicado, resulta um sentido interpretativo que viola o conteúdo essencial dos direitos fundamentais directa e indirectamente tutelados no artigo 103.° e nos artigos 12.°, 13.°, 20.°, 26.°, 37.°, e 266.° e 268.°, todos da CRP.
Assim, conforme oportunamente exposto, deverá ser declarada a inconstitucionalidade da norma dos artigos 45.º e 46.° da LGT e dos artigos 49.°, 60.°, 61.° e 62.° do RCPIT - Regime Complementar de Prevenção e inspecção Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 413/98, quando interpretados no sentido de que o efeito suspensivo do prazo de caducidade se mantém até à notificação ao contribuinte do relatório final de inspecção, desde logo por violação do art.° 103.° da CRP e demais preceitos constitucionais acima invocados.
Termos em que, mantendo-se tudo quanto se invocou nas alegações já produzidas, deverá ser admitido o presente recurso e, conforme se requereu,
a) Ser declarada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 46.° n.° 1 da LGT, 49.°, 60.°, 61.° e 62.° do RCPIT quando interpretadas no sentido de que é a notificação do relatório final do procedimento de inspecção que tem a virtualidade de pôr termo à suspensão do prazo de caducidade previsto no referido artigo 46.° n.° 1 da LGT;
b) Ser acolhida a tese interpretativa doutamente adoptada pelo Tribunal Tributário da 1.ª Instância, por ser a única que é conforme à Constituição;
c) Ordenar-se a integral revogação do Acórdão do TCA SUL e a prolação de nova decisão que contemple a interpretação da lei conforme à Constituição ora defendida, e reconhecimento da caducidade do direito à liquidação por inexistência de notificação válida no prazo de 4 anos, nos termos do artigo 45.° da LGT, como é de JUSTIÇA»
3. O esclarecimento agora prestado torna claro que o presente recurso não reúne os pressupostos necessários ao conhecimento do respectivo objecto.
Na verdade, o recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada, uma vez que nem sequer apresentou contra-alegações no recurso que a Fazenda Pública interpôs e que deu origem ao acórdão do TCA Sul, de 04.05.2010, agora recorrido (fls. 918 e s. dos autos).
E é irrelevante que o recorrente tenha eventualmente suscitado tal questão perante o tribunal de primeira instância, e que neste tenha obtido ganho de causa, uma vez que o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade – que constitui uma verdadeira condição de legitimidade – exige que o interessado, ao recorrer (ou contra-alegar) dentro da respectiva ordem judiciária, não abandone a questão de constitucionalidade, mas antes a reitere perante o tribunal que proferiu a decisão que pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional, ou seja, no caso, perante o TCA Sul. Este nível de exigência está hoje, a partir da alteração introduzida pela Lei n.º 13-A/98 no n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional, claramente expresso na letra da lei, ao consagrar-se que a suscitação da questão de constitucionalidade tem que ocorrer “perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida” (cfr. Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, 95-96).
Por outro lado, o ónus de suscitação que incumbia ao recorrente não se mostra cumprido pelo facto de este ter aflorado tal questão nas alegações que, após a prolação do acórdão recorrido, apresentou junto do TCA Sul (fls. 935 e s. dos autos). Estas alegações já não constituíam momento oportuno para suscitar a questão de constitucionalidade, uma vez que foram produzidas no âmbito de um recurso interposto pelo ora recorrente (cfr. fls. 935) para o Supremo Tribunal Administrativo, com fundamento em oposição entre o citado Acórdão do TCA Sul de 04.05.2010 e o Acórdão do STA aí identificado (recurso este que não veio a ser admitido, a final, por acórdão do TCA Sul de 01.03.2011). Não só esta última decisão não aplicou as normas cuja constitucionalidade se pretendia questionar, como é o próprio recorrente que veio esclarecer que o recurso de constitucionalidade vem interposto do primeiro Acórdão do TCA Sul, proferido em 04.05.2010.
3. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) A., recorrente nos autos à margem identificados, tendo sido notificado do douto despacho de 13 de Outubro de 2011, que decide não conhecer do objecto do recurso vem, nos termos do artigo 78.°-A da LTC dele reclamar para a conferência nos termos e com os fundamentos seguintes:
Decidiu o Exm.° Senhor Conselheiro Relator não conhecer do recurso com fundamento nos dois argumentos seguintes:
— O recurso não reúne os pressupostos necessários ao conhecimento do respectivo objecto, por o recorrente não haver suscitado, perante o Tribunal recorrido, a questão da inconstitucionalidade; o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade exige que o interessado, ao recorrer (ou contra-alegar) dentro da respectiva ordem judiciária, não abandone a questão da constitucionalidade, mas antes a reitere, pelo que não cumpre a exigência feita pelo n.° 2 do artigo 72.° da Lei do TC;
— As alegações que o recorrente produziu em sede de recurso contra o Acórdão recorrido (Ac. do TCA Sul de 4.5.2010) já não constituíam o momento oportuno para suscitar a questão da constitucionalidade uma vez que foram produzidas no âmbito de um recurso interposto pela ora recorrente;
Com o devido respeito não tem razão o Dig.mo Juiz Relator pelas razões seguintes:
Em primeiro lugar porque o âmbito ou objecto daquele recurso é, exclusivamente, a inconstitucionalidade das normas indicadas, com o sentido interpretativo que lhes é dado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, através do Acórdão de 4.5.2010.
Efectivamente, o Acórdão do TCA SUL de 4.5.20 10 dá provimento ao recurso interposto pela fazenda pública da decisão de provimento do Tribunal Tributário de 1.ª instância.
Nele se sustenta, com fundamentos inteiramente novos, nunca antes suscitados no processo, o acto tributário de liquidação sobre o qual o ora recorrente já suscitara a caducidade do poder de tributar.
Esses fundamentos dizem respeito ao entendimento sufragado no Acórdão recorrido do TCA Sul, de 4.5.2010, de que, quando haja lugar a acção de inspecção externa, o termo da suspensão da contagem do prazo de caducidade previsto no artigo 46.° n.° 1 da LGT não é o do momento em que ocorre a assinatura por parte do sujeito passivo inspeccionado, da nota de diligência prevista nesse artigo 46.° n.° 1 da LGT e no artigo 61.º do RCPIT, mas aquele em que ocorre a notificação do relatório final a elaborar no termo do procedimento inspectivo.
Esta tese interpretativa foi seguida, ex novo, pelo Tribunal Central Administrativo Sul no seu Acórdão de 4.5.2010.
Nunca antes ela se suscitara no processo judicial.
Consequentemente, nunca antes o recorrente lhe poderia ter feito referência nem nunca antes poderia sobre ela ter suscitado a respectiva inconstitucionalidade.
Assim, exigir-se, como agora se faz, que o recorrente houvesse suscitado a inconstitucionalidade de uma interpretação da lei que só veio a existir com o Acórdão do TCA sul de 4.5.2010, é impor-se-lhe poderes premonitórios ou de adivinhação que o recorrente manifestamente não tem.
De facto, a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa deu provimento ao recurso interposto pelo recorrente com fundamento na interpretação contrária à seguida pelo TCA no seu Acórdão de 4.5.2010, de que uma vez terminada a acção de inspecção externa, cessaria a suspensão da contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação de IRS de 1999.
Pelo que, no entendimento do Tribunal Tributário de 1ª Instância, descontado esse período de suspensão, a notificação da liquidação do imposto ocorreu já depois do prazo geral de 4 anos, sendo por isso extemporânea.
Não tendo antes sido suscitados no decurso do processo judicial, os fundamentos (novos) invocados pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no seu Acórdão de 4.5.2010, não podia o recorrente suscitar a inconstitucionalidade dessa tese interpretativa, que não existia no processo.
Assim, contrariamente ao considerado, não podia o recorrente ter suscitado perante o Tribunal recorrido, a não ser em sede de recurso desse Acórdão de 4.5.2010, a inconstitucionalidade dessa interpretação.
Não existindo um segundo grau de recurso dos Acórdãos do TCA (artigo 280.° n.° 2 do CPPT a contrario), o recorrente veio a atacar tal acórdão interpondo:
— Recurso com fundamento em Oposição de Acórdãos, que não obteve vencimento;
— Recurso de Revista, por entender que se estava perante Acórdão assente numa interpretação da lei que, pela sua relevância jurídica ou social, se mostrava de importância fundamental, sendo, in casu, claramente necessária a sua elucidação para uma melhor aplicação do Direito.
Sendo que, em ambos os recursos interpostos suscitou exclusivamente a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Acórdão do TCA Sul.
Pelo que bem se vê que o recorrente não podia suscitar a inconstitucionalidade da tese interpretativa perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida (TCA Sul), pois essa tese interpretativa só veio a ser sufragada por esse tribunal depois da prolação do acórdão recorrido.
Tese (nova) contra se insurgiu e insurge, suscitando a sua apreciação pelo Tribunal Constitucional.
Por outro lado, sendo nova essa tese interpretativa, não tinha o recorrente outro momento para contra ela se insurgir que não fosse o das alegações de recurso, em sede de Oposição de Acórdãos, de Recurso de Revista ou de Recurso para o Tribunal Constitucional.
A prevalecer o entendimento expresso pelo Digno Juiz Relator, o que só por motivos argumentativos aqui concebe, dar-se-ia o efeito de não se poder suscitar a inconstitucionalidade das normas em vigor quando lhes seja atribuído pelo TCA um sentido interpretativo contrário à Constituição, em virtude de não caber, por princípio, recurso dos respectivos Acórdãos, a não ser nos termos previstos no artigo 280.° do CPPT.
Recursos esses de que o recorrente lançou mão, como se prova no processo, invocando a inconstitucionalidade das normas aplicadas com o sentido interpretativo que nele lhe é dado.
Ora, a interpretação dada à lei pelo TCA não está subtraída à sindicância do Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no Artigo 70.° da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
Por outro lado, ao contrário do que certamente constitui pressuposto da decisão de rejeição do recurso, não estão aqui em causa, não fazendo parte do objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, as inconstitucionalidades suscitadas pelo recorrente na petição inicial de recurso para o Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa.
Efectivamente, o Acórdão do TCA Sul de 4.5.2010 revoga a decisão recorrida e determina a baixa dos autos ao Tribunal recorrido, no sentido de, aí, se proceder à produção da prova testemunhal arrolada.
Pelo que o recorrente aguarda a produção dessa prova e bem assim a prolação de nova sentença onde, espera, seja acolhida a invocação das inconstitucionalidades suscitadas perante o Tribunal Tributário de 1.ª Instância.
Pelo que tais inconstitucionalidades nunca foram apreciadas e hão-de ser discutidas e julgadas em momento próprio.
Por outro lado, não é verdade que o recorrente não haja suscitado a inconstitucionalidade das normas aplicadas pelo TCA Sul na interpretação que lhe é dada por esse Tribunal, de resto ficou materializada nas petições de recurso interpostas do Acórdão recorrido, do TCA Sul, de
4.5.2010.
Assim, a decisão de não conhecer do objecto do recurso, carece de ser revista e, ponderados os factos, deve o mesmo ser aceite e apreciada a inconstitucionalidade nele suscitada, devendo ser concedido integral provimento ao recurso e, consequentemente
a) Ser declarada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 46.° n.° 1 da LGT, 61.° e 62.° do RCPIT quando interpretadas no sentido de que é a notificação do relatório final de inspecção que tem a virtualidade de pôr termo à suspensão do prazo de caducidade previsto no referido artigo 46.° n.° 1 da LGT;
b) Ser acolhida a tese interpretativa doutamente adoptada pelo Tribunal Tributário da 1.ª Instância, por ser a única que é conforme à Constituição;
c) Ordenar-se a integral revogação do Acórdão do TCA SUL e a prolação de nova decisão que contemple a interpretação da lei conforme à Constituição ora defendida, e reconhecimento da caducidade do direito à liquidação do IRS de 1999, por inexistência de notificação válida no prazo de 4 anos, nos termos do artigo 45.° da LGT, como é de
JUSTIÇA (…).»
3. A recorrida não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na falta de suscitação da questão de constitucionalidade junto do tribunal recorrido.
O reclamante insurge-se contra esta conclusão, alegando, em síntese, que não teve oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade por ela se referir a uma interpretação normativa que, com carácter inovador, foi adoptada pelo Tribunal Central Administrativo Sul.
Sem razão, porém.
Como já referido na decisão sumária reclamada, o reclamante nem sequer apresentou contra-alegações no recurso que foi interposto pela Fazenda Pública (aqui recorrida) para o Tribunal Central Administrativo Sul, sendo certo que essa peça processual teria sido o momento oportuno para suscitar a questão de constitucionalidade.
Ao contrário do que pretende o reclamante não estamos perante uma situação excepcional em que se tenha verificado uma impossibilidade de o recorrente suscitar a questão de constitucionalidade. Pelo contrário, no caso era previsível que o TCAS pudesse divergir do entendimento adoptado em primeira instância e, dando provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, viesse a adoptar a posição que veio a adoptar. Tanto assim é que o acórdão de que o reclamante pretende recorrer (Acórdão do TCAS de 04.05.2010) fez assentar a sua posição em “jurisprudência firme do STA” e em arestos anteriores do próprio TCAS. Ou seja, a questão de constitucionalidade que o reclamante diz não poder ter suscitado por corresponder a uma alegada interpretação inovadora do acórdão recorrido, refere-se, pelo contrário, uma questão debatida, sobre a qual há “jurisprudência firme do STA” e jurisprudência do TCAS (de que terá divergido a sentença de primeira instância).
O que conduz, inevitavelmente, à conclusão de que o reclamante podia – e devia – ter cumprido o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, sem prejuízo do apoio judiciário, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Novembro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.