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Processo n.º 466/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), A. veio interpor recurso do acórdão de 7 de Abril de 2011, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O recorrente enunciou o objecto do recurso, nos termos seguintes:
“1. a norma resultante do conjunto normativo dos artigos 34.°, ns.º 3 e 4, 99.º e 131.º do EMJ de 1985 e dos artigos 2.º, nº 4, e 77.º do CP, quando interpretado e aplicado, implicitamente, como o foi no acórdão recorrido, no sentido de que pode ser aplicada uma pena única de exoneração legalmente inexistente na data da realização do cúmulo de penas disciplinares “por força do disposto no n.º 4 do art. 2° do Código Penal, aplicável ao abrigo do art. 131° do EMJ”, uma vez que “a pena de exoneração [parcelar] foi-lhe [ao recorrente] aplicada na vigência da versão originária do art. 34° do EMJ, que previa um regime mais favorável para os condenados na pena de demissão, já que essa pena podia ser substituída pela pena de exoneração”, sendo que “como regime mais favorável, essa pena de substituição manteve-se, e entrava necessariamente no cúmulo com as restantes penas aplicadas ao recorrente, operado pela decisão recorrida.
(…)
2. a norma resultante do conjunto normativo dos artigos 169°, n°1, e 131.° do EMJ de 1985, quando interpretado e aplicado, implicitamente, como o foi no acórdão recorrido, no sentido de que “a […] prescrição do procedimento […] disciplinar(es) […] ao contrário do que sucede com os vícios indicados no art. 133° do CPA […] não pode ser invocada a todo o tempo mas só por via do recurso contencioso previsto no art. 169°, nº 1, do EMJ, a interpor no prazo de 30 dias após a prolação […] da decisão impugnada, ficando definitivamente decidida a questão da (não) prescrição […] do procedimento disciplinar […] e consequentemente precludido o direito do recorrente de a suscitar”.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos se tais pressupostos – de verificação cumulativa – estão presentes no caso concreto.
(…) Comecemos por analisar se a decisão recorrida aplica as normas, cuja formulação consta do requerimento de interposição de recurso.
A exigência de que as normas ou interpretações normativas, cuja sindicância é pretendida, sejam efectivamente convocadas, pela decisão recorrida, como fundamento normativo da solução dada ao caso, prende-se com a característica da instrumentalidade, configurada como pressuposto geral de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Por força de tal característica, considera-se que apenas é admissível o recurso, quando o julgamento da questão de constitucionalidade é susceptível de se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto.
Obviamente, tal susceptibilidade encontra-se liminarmente afastada, quando a decisão recorrida não tenha aplicado as normas que constituem o objecto do recurso.
Ora, no presente caso, constata-se que a decisão recorrida – o acórdão de 7 de Abril de 2011 – não aplica as normas em análise.
Na verdade, o acórdão de 7 de Abril de 2011 não faz qualquer apreciação substancial sobre a possibilidade de aplicação da pena única de exoneração, no caso concreto, ou sobre o regime de invocação da prescrição do procedimento disciplinar.
Limita-se, ao invés, a pronunciar-se, nos termos dos artigos 668.º, n.ºs 1, alínea d) e 4 e 669.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código de Processo Civil.
De facto, conclui a decisão recorrida, nos termos seguintes:
“ São dois os erros na aplicação de normas suscitados pelo requerente. O primeiro reporta-se aos arts. 34º, nºs 3 e 4, 99º e 131º do EMJ, na versão originária, e arts. 2º, nº 4, e 77º do Código Penal, no sentido em que foram aplicados, ou seja, permitindo a aplicação, em cúmulo, da pena de exoneração, prevista na lei ao tempo da prática dos factos, já depois da eliminação dessa pena do elenco das penas admissíveis.
Analisado o requerimento, (…) constata-se que o requerente não invoca qualquer erro ostensivo de julgamento do acórdão. Ele limita-se a rebater, repetindo, e por vezes simplesmente reproduzindo, a argumentação anterior, no sentido de que a pena de exoneração é “inexistente” e, como tal, insanavelmente nula.
Ora, o acórdão proferido analisou essa questão, ponderou todos os argumentos apresentados pelo requerente, e fundamentou com clareza a sua decisão.
(…)
Não se detecta nenhum “lapso manifesto” na decisão, nesta parte.
Outro dos “erros” invocados pelo requerente é o que resultaria do conjunto normativo dos arts. 169º, nº 1, e 131º do EMJ, interpretado como determinando que a prescrição do procedimento disciplinar deverá ser invocada por via de recurso contencioso a interpor no prazo estabelecido no citado art. 169º, nº 1, do EMJ (nºs 84 a 89 do requerimento).
Porém, à semelhança do que acontece com o alegado “erro” anterior, também aqui nenhum erro ostensivo é apontado.
O requerente limita-se a discordar e a argumentar contra o decidido.
Contudo, a decisão, nessa parte, como na anterior, está estabilizada, pois está esgotado o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal, nos termos do art. 666º, nº 1, do CPC.
Dir-se-á ainda, quanto às invocadas inconstitucionalidades, que o esgotamento do poder jurisdicional impede precisamente a apreciação destas questões. Estamos, de facto, no âmbito da reforma da sentença, nos estritos limites permitidos pelo art. 669º, nº 2, a), do CPC, não da reapreciação da causa, que só uma outra instância de recurso, se no caso fosse admissível, permitiria.”
Face ao conteúdo da decisão recorrida, facilmente se conclui que as normas ou interpretações normativas que o recorrente poderia problematizar, relativamente a tal decisão, de forma profícua para eventual recurso de constitucionalidade, seriam extraídas dos artigos 668.º, n.ºs 1, alínea d) e 4 ou 669.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, se cumpridos estivessem os restantes pressupostos, como a suscitação prévia da questão perante o tribunal a quo.
No tocante a normas relativas à aplicação da pena única de exoneração ou atinentes ao regime de invocação da prescrição do procedimento disciplinar, não podem as mesmas ser sindicadas no presente recurso de constitucionalidade, reportado ao acórdão de 7 de Abril de 2011, por não terem sido pelo mesmo aplicadas, mas sim pelo acórdão de 2 de Março de 2011, de que o recorrente não apresentou recurso para o Tribunal Constitucional.
Na verdade, notificado do acórdão de 7 de Abril de 2011, poderia o recorrente interpor recurso de constitucionalidade deste último acórdão ou do que havia sido proferido em 2 de Março de 2011, por estarem, nesse momento, esgotados os meios impugnatórios ordinários accionados relativamente a tal decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 70.º da LTC.
O recorrente optou, porém, por interpor recurso do acórdão de 7 de Abril de 2011, identificando inequivocamente tal aresto como decisão recorrida.
Nestes termos, em virtude de as normas identificadas pelo recorrente não terem sido convocadas como ratio decidendi pela decisão recorrida, conclui-se pela inadmissibilidade do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. Fundamentando a sua discordância relativamente à decisão reclamada, refere o reclamante que as normas, cuja apreciação de constitucionalidade foi requerida, “foram aplicadas expressamente no acórdão de 2 de Março de 2011 mas foram igualmente aplicadas no acórdão recorrido de 7 de Abril de 2011, desta vez de forma implícita”, razão que levou o reclamante a interpor o presente recurso de constitucionalidade deste último acórdão e já não do proferido em 2 de Março de 2011.
Acrescenta que não suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas em causa perante o tribunal a quo, antes da prolação do acórdão de 2 de Março de 2011, porque tais normas só foram aplicadas nesse aresto, não tendo podido o reclamante prever tal aplicação. Conclui, nestes termos, que não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade das normas identificadas, antes da prolação do aludido acórdão de 2 de Março de 2011.
Refere ainda o reclamante que, no acórdão de 7 de Abril de 2011, foi decidido indeferir o requerimento por si apresentado, com base na circunstância de se ter esgotado o “poder jurisdicional para corrigir os erros de aplicação das duas normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada (…) por não se tratar de erros manifestos, nem para conhecer das inconstitucionalidades.” Porém – alega o reclamante – tal fundamento relativo ao esgotamento do poder jurisdicional não pode colher in casu, porquanto “os erros na aplicação das duas normas indicadas como inconstitucionais, atenta a magnitude da violação da Constituição com a sua aplicação, têm de ser considerados objectivamente como devidos a lapsos manifestos que o STJ podia e devia ter corrigido no acórdão de 7 de Abril de 2011. Desta forma, conclui que “o não conhecimento pelo STJ das inconstitucionalidades suscitadas deve ser considerado como equivalendo a aplicação implícita das normas em causa, para o efeito de recurso para o Tribunal Constitucional.”
Para fundamentar a sua posição, o recorrente cita os acórdãos n.ºs 318/90 e 176/88 deste Tribunal Constitucional.
Conclui pugnando pela substituição da decisão sumária proferida por acórdão da conferência, que admita o recurso de constitucionalidade interposto.
Notificado o recorrido, nada veio dizer.
II – Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que o reclamante não aduziu argumentos que infirmem a correcção do juízo efectuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, o acórdão de 7 de Abril de 2011 não aplica as normas identificadas pelo recorrente, de forma expressa ou implícita, já que não faz qualquer apreciação substancial sobre a possibilidade de aplicação da pena única de exoneração, no caso concreto, ou sobre o regime de invocação da prescrição do procedimento disciplinar.
Na reclamação apresentada, o reclamante demonstra discordar do entendimento plasmado no acórdão recorrido, defendendo a tese de que “os erros na aplicação das duas normas indicadas como inconstitucionais atenta a magnitude da violação da Constituição com a sua aplicação, têm de ser considerados objectivamente como devidos a lapsos manifestos que o STJ podia e devia ter corrigido no acórdão de 7 de Abril de 2011.” Conclui, assim, que “o não conhecimento das inconstitucionalidades suscitadas deve ser considerado como equivalendo a aplicação implícita das normas em causa, para o efeito de recurso para o Tribunal Constitucional.”
Não lhe assiste, manifestamente, razão.
Na verdade, a mera discordância do entendimento defendido no acórdão recorrido – e a consequente insistência na tese da existência de um “erro manifesto” justificativo do pedido de reforma – não legitima que o recorrente transponha, para o presente caso, a construção de uma pretensa aplicação implícita das normas, cuja constitucionalidade pretende ver sindicada pelo Tribunal Constitucional, para garantir a admissibilidade do recurso interposto.
Na verdade, a situação dos presentes autos não é idêntica à pressuposta nos acórdãos n.ºs 176/88 ou 318/90. Nesses arestos, conclui-se que deve ser considerada como equivalente à aplicação implícita da norma, cuja constitucionalidade fora suscitada pelo recorrente, o não conhecimento pelo tribunal a quo de tal questão, quando da mesma poderia e deveria ter conhecido.
Ora, na presente situação, o tribunal a quo pronunciou-se sobre os vícios invocados pelo reclamante, concluindo pela sua improcedência, não se encontrando, por isso, obrigado a conhecer das questões de constitucionalidade invocadas, alheias às normas que aplicou, na fundamentação da solução jurídica encontrada.
Cumpre ainda referir que, na decisão sumária reclamada, não se tornou necessário apreciar da verificação dos restantes pressupostos de admissibilidade do recurso – nomeadamente a questão do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade – pelo que, não havendo razões para alterar a fundamentação e o sentido de tal decisão, mantém-se a inocuidade de discussão sobre tais restantes pressupostos, que em nada poderia influir quanto à inadmissibilidade do recurso interposto.
Nestes termos, apenas resta reafirmar toda a fundamentação constante da decisão reclamada e, em consequência, concluir pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada proferida no dia 27 de Julho de 2011.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 30 de Novembro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.