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Processo n.º 135/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 194/2011, da qual consta o seguinte:
“II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 579), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que os mesmos não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Encontrando-nos em presença de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, imperioso será que a recorrente tenha suscitado as questões de inconstitucionalidade normativa, de modo tal que o tribunal recorrido delas tenha podido conhecer. Caso contrário, o conhecimento do objecto do recurso fica prejudicado, por força do incumprimento do ónus decorrente do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Através do requerimento de interposição de recurso, a recorrente alega que havia cumprido tal ónus “nas suas alegações de recurso” (fls. 561). Porém, tal não corresponde, exactamente, à realidade processual expressa nos autos. Com efeito, não se pretende ignorar que a recorrente, em sede de conclusões de recurso, alegou o seguinte:
“6º
Uma eventual interpretação do artigo 606.º do Código Civil que impedisse a sub-rogação no caso em apreço traduzir-se-ia, assim numa denegação à Recorrente da tutela judicial do seu direito a ser paga pelo seu crédito, o que colidiria com o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
7º
As normas contidas no artigo 606.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, são, assim, inconstitucionais, na interpretação referida no parágrafo anterior.”
(…)
35º
São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 3.º e 20.º, n.º 1, do CIRE e nos artigos 501.º a 503.º do CSC, quando interpretadas no sentido de ser admissível que uma sociedade totalmente dependente de outra seja declarada insolvente prévia e independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante, deixando desprotegidos os credores da sociedade dominante, com benefício exclusivo dos credores da sociedade dependente, por violação do princípio da livre iniciativa económica privada, consagrado no artigo 61.º da CRP, limitando gravemente essa iniciativa, pela situação de intolerável desprotecção dos credores que assim seria gerada.” (fls. 484 e 489)
Porém, facilmente se conclui que nenhuma das específicas interpretações normativas que constituem o objecto do presente recurso foi alvo de suscitação individualizada de inconstitucionalidade. Com efeito, através do § 6 das conclusões de recurso, a recorrente optou por formular uma alegação demasiado ampla e genérica de inconstitucionalidade, ao pretender que toda e qualquer interpretação do n.º 1 do artigo 606º do Código Civil que impedisse o exercício do direito de sub-rogação seria contrária ao direito de acesso aos tribunais. Ora, a recorrente não se podia ter limitado a afirmar, de modo genérico e sem contextualizar as várias possíveis interpretações normativas potencialmente aplicáveis, que qualquer interpretação que concluísse pela impossibilidade de sub-rogação padeceria de inconstitucionalidade.
Efectivamente, nos presentes autos, a decisão recorrida viria a excluir a possibilidade de sub-rogação, no caso em concreto, demonstrando que os requisitos da sub-rogação não se encontram preenchidos, quer porque a ora recorrida não se teria abstido de exercer o seu direito por censurável falta de diligência ou descuido, quer porque o exercício do direito à sub-rogação não seria configurável como indispensável à defesa do direito da recorrente (cfr. fls. 551 e 552). Sucede, porém, que a recorrente nunca invocou, de modo especificado, a inconstitucionalidade de qualquer dessas interpretações normativas, que pretende que sejam agora conhecidas pelo Tribunal Constitucional.
Por último, a interpretação normativa que a recorrente reputou de inconstitucional, através do § 35 das suas conclusões de recurso perante o Tribunal da Relação de Coimbra, nem sequer constitui objecto do presente recurso, tendo aquela, aparentemente, renunciado à interposição de recurso quanto àquela interpretação.
Consequentemente, em função da sua actividade processual expressa nos autos, conclui-se que a recorrente não suscitou, tendo-o podido fazer, a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação normativa, pelo que, por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC, mais não resta que recusar conhecer do objecto do presente recurso.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. O recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“(…)
Para demonstrar que esse ónus, o imposto pelo n.º 2 do artigo 72. ° da LTC não foi cumprido, são citadas algumas das conclusões da Recorrente, apresentadas nas respectivas alegações para o tribunal a quo..
4.º
No entanto, analisando essas citadas conclusões, percebe-se, desde logo, que elas foram retiradas de umas alegações de recurso que não integram os presentes autos.
5.º
Com efeito, baseia-se a decisão sumária da qual se reclama não nas alegações de recurso que deram origem aos presentes Autos, mas sim noutras, que originaram os Autos de Recurso n.º 560/10.
6.°
Ora, só este lapso pode justificar o teor da decisão proferida, uma vez que a inconstitucionalidade das normas que se pretende ver sindicada foi, desde as alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, invocada de forma específica, tendo assim a Recorrente cumprido, na integra, o ónus que lhe era imposto pelo n.º 2, do artigo 72.° da LTC.
7.º
Senão vejamos:
8.°
A Recorrente requereu a fiscalização das normas contidas nos artigos 606. ° do Código Civil e 503.° do Código das Sociedades Comerciais, uma vez que o Tribunal da Relação de Coimbra, não obstante a invocação da referida inconstitucionalidade, ainda assim decidiu aplicá-las.
9.º
Nas alegações de recurso produzidas, concluiu a Recorrente — artigo 53. ° — serem inconstitucionais, entre outras, as normas contidas nos artigos 606.° do CC, e 503.° CSC., na interpretação defendida pelo Tribunal a quo, no sentido de que a embargante não se poderia sub-rogar à sua devedora para deduzir os embargos à insolvência nestes autos, por não se verificar uma inacção do devedor e por não admitir a sub-rogação com fundamento numa acção futura da sub-rogante cuja análise não foi pedida, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20°, n.º 1, da CRP e, ainda, por violação do artigo 62. ° da CRP.
10.º
Deve o alegado nesta conclusão — precisamente por se tratar apenas de uma conclusão — ser lido juntamente com o descrito no ponto III e IV das alegações de Recurso, após o que facilmente se compreenderá a inconstitucionalidade invocada:
11.º
A norma contida no artigo 606. ° do CC é inconstitucional, quando interpretada no sentido de considerar que, quando uma sociedade que detém a 100% outra, podendo deduzir embargos à insolvência desta, por se tratar de insolvência ilegal, mas se limita a reclamar créditos no respectivo processo de insolvência, ainda para mais créditos de suprimentos, está a exercer de forma diligente os seus direitos patrimoniais, não se verificando, assim, o requisito da inacção do devedor, ficando assim impedida a sub-rogação pelo credor no exercício desses direitos de conteúdo patrimonial (i.e., a sub- rogação na dedução de embargos à insolvência).
12.°
Do alegado pela Recorrente resulta, também, que o artigo 606. ° do CC é inconstitucional numa interpretação que não permita a sub-rogação pelo credor no direito de o devedor deduzir embargos a uma insolvência ilegal de uma sociedade quando se considerar que essa sub-rogação apenas produzirá efeitos na esfera patrimonial do sub-rogante caso se venha a verificar um acto posterior e incerto, cuja execução não depende exclusivamente do sub-rogante.
13.°
Quanto à inconstitucionalidade do artigo 503. ° do Código das Sociedades Comerciais, foi também esta expressamente invocada nas alegações de recurso que a Recorrente apresentou no Tribunal da Relação de Coimbra:
14.°
Do artigo 76. ° das conclusões — bem como do ponto IV, (ii), das alegações — resulta que esta norma é inconstitucional quando interpretada no sentido de ser admissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem a empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios.
15.°
Diz-se claramente que a referida norma é inconstitucional, no mencionado sentido normativo, porquanto deixa desprotegidos os credores da sociedade dominante, com benefício exclusivo dos credores da sociedade dependente, violando assim o princípio da livre iniciativa económica privada, consagrado no artigo 61. ° da CRP, limitando gravemente essa iniciativa, pela situação de intolerável desprotecção dos credores que assim seria gerada.
16.°
Do artigo 77. ° das conclusões — bem como do ponto IV (ii) das alegações — resulta também que o artigo 503.° do CSC, na interpretação supra citada, é ainda inconstitucional por violar também o artigo 62.° da CRP, por permitir a expropriação de um crédito sem qualquer compensação, uma vez que impede o credor de reaver o seu crédito, e de reagir contra uma estratégia de favorecimento de credores.
17.º
Aliás, a demonstração cabal de que as inconstitucionalidades invocadas pela Recorrente o foram de forma a que o Tribunal recorrido delas pudesse conhecer é o facto de esse mesmo tribunal delas ter efectivamente conhecido. E este facto não pode deixar de ter relevância.
18.°
Com efeito, isso mesmo já foi reconhecido por esse Venerando Tribunal, no acórdão n.º 172/88, ao decidir que: “Apesar do modo dubitativo e hesitante como foram abordadas, nas alegações produzidas pelo Ministério Público perante a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo e para o Pleno do mesmo Tribunal, as questões de constitucionalidade, deve considerar-se verificado o pressuposto da admissibilidade do recurso (e da legitimidade do recorrente) previsto nos artigos 70º, n. ° 1, alínea b), e 72º, nº2, da citada Lei, atenta a circunstância de tais questões haverem sido efectivamente apreciadas e resolvidas pelo acórdão recorrido, em razão e em consequência do que, a propósito, alegou o Ministério Público.”
19.°
Lendo esse citado acórdão, com mais detalhe (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), percebe-se que, não obstante não ter sido suscitada, de modo adequado, a questão da inconstitucionalidade, é decisiva e suficiente a circunstância de o tribunal a quo dela ter conhecido:
20.°
“É que, se a questão da constitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei nº 3/80 é realmente abordada logo na alegação produzida por aquela entidade perante a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, não pode dizer-se, face ao tratamento que aí lhe é dado, que o M° P° haja então positivamente “invocado” (no sentido de “sustentado”) a inconstitucionalidade do preceito; e, quanto ao art. 25° do mesmo diploma, não se encontra sequer na referida alegação a menor referência. Por outro lado, é de modo igualmente dubitativo e hesitante, e (como no Acórdão recorrido não deixou, de resto, de salientar-se) abstendo-se “de especificar concretas razões de discordância.” Do julgado pela Secção, que a entidade recorrente aludiu à questão na alegação para o Pleno — mas agora, é certo, focando já os dois preceitos (cfr. as transcrições supra nºs 1 e 3).
Posto isto, não será realmente descabido e ilegítimo questionar que a inconstitucionalidade haja sido, em rigor, “suscitada” no processo - nos termos em que o art. 70°, nº 1, alínea b), o exige, e o art. 72°, n°2, da Lei do Tribunal Constitucional o pressupõe.
Sejam quais forem as dúvidas que, a esse respeito, a situação possa ocasionar e justificar, entende o Tribunal no entanto, dever concluir que na hipótese em apreço se acha verificado, de todo o modo, o dito pressuposto da admissibilidade do recurso (e da legitimidade do recorrente). Decisiva e suficiente será, para tanto, a circunstância de as questões de constitucionalidade em análise haverem sido efectivamente apreciadas e resolvidas pelo Acórdão recorrido (e, já antes, pelo Acórdão da Secção) - e isso, fosse como fosse, em razão e em consequência do que, a propósito, alegou o M° P°.».
21.°
Como se vê por este acórdão, tal circunstância é de tal modo determinante e suficiente, que dispensa e prejudica quaisquer outras indagações sobre se o ónus de suscitação adequada foi, ou não, cumprido.
22.°
Em conclusão, a Recorrente cumpriu na íntegra o ónus que lhe era imposto pelo n.º 2 do artigo 72. ° da LTC, tendo o tribunal recorrido podido conhecer das inconstitucionalidades invocadas, como conheceu.
23.°
Como tal, por se basear numas alegações de recurso que não fazem parte destes Autos, e por não se verificarem os pressupostos constantes do n.º 1, do artigo 78. °-A da LTC, deve a presente decisão sumária ser substituída por um acórdão que admita o presente recurso.”
3. Notificada para o efeito, a recorrida deixou expirar o prazo sem que tenha vindo aos autos apresentar qualquer resposta.
II – Fundamentação
4. Em primeiro lugar, cumpre reconhecer razão à reclamante, quando invoca que a decisão reclamada procedeu a uma transcrição das conclusões do recurso interposto, por via electrónica (cfr. fls. 466), no âmbito do processo principal identificado pelo n.º 212/10.9T2AVR, ao invés de reproduzir – como deveria ter feito – as respectivas conclusões do recurso interposto, por via electrónica (cfr. fls. 272) quanto a decisão tomada em apenso àquele processo (Proc. n.º 212/10.9T2AVR-A). A errónea menção daquele recurso resultou de manifesto lapso, apenas justificado pela inclusão nos autos de cópia do mesmo, que consta como anexo (Doc. n.º 9) às contra-alegações então deduzidas pela recorrida.
Face a este manifesto lapso material, procede-se, de imediato, à respectiva reparação, reformando-se a decisão ora reclamada quanto a este aspecto.
Com efeito, das alegações de recurso interposto perante o tribunal recorrido deve antes extrair-se que a recorrente concluiu o seguinte:
“52.º
São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 606.º do CC, 501.º a 504.º, 78.º, n.ºs 1 e 2, e 141.º, n.º 1, alínea e), do CSC, na interpretação defendida pelo Tribunal «a quo», no sentido de que a embargante não se poderia sub-rogar à sua devedora para deduzir os embargos à insolvência nestes autos, por não se verificar uma inacção do devedor e por não admitir a sub-rogação com fundamento numa acção futura da sub-rogante cuja análise não foi pedida, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP e, ainda, por violação do artigo 62.º da CRP..” (fls. 323)
“77.º
Neste particular, o Tribunal «a quo» violou o disposto nos artigos 501.º a 504.º do CSC e ainda o artigo 287.º, alínea e), do CPC, e os artigos 2.º e 40.º do CIRE.
76.º
São inconstitucionais estas normas, quando interpretadas no sentido de ser inadmissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas um parcela de uma única empresa, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios, deixando desprotegidos os credores da sociedade dominante, com benefício exclusivo dos credores da sociedade dependente, por violação do princípio da livre iniciativa económico privada, consagrado no artigo 61.º da CRP, limitando gravemente essa iniciativa, pela situação de intolerável desprotecção dos credores que assim seria gerada.
77.º
Tais normas, na citada interpretação, são ainda inconstitucionais por violarem também o artigo 62.º da CRP, por permitirem a expropriação de um crédito sem qualquer compensação, uma vez que impedem a ora Recorrente de reaver o seu crédito, e de reagir contra esta estratégia de favorecimento dos credores.
78.º
São, por fim, inconstitucionais, na dita interpretação, ao impedirem toda e qualquer reacção da ora Recorrente contra o devedor, por violarem o princípio constitucional de acesso ao Direito, vertido no artigo 20.º da CRP.” (fls. 328)
5. Note-se, porém, que o supra referido lapso não impede que parte da fundamentação constante da decisão ora reclamada mantenha actualidade e que o preenchimento dos requisitos legais dos quais depende o conhecimento do objecto do presente recurso continuem a não se verificar.
Com efeito, não pode deixar de referir-se que a questão de constitucionalidade normativa suscitada no § 52º das conclusões de recurso não corresponde, integralmente, à interpretação normativa adoptada pelo tribunal recorrido e, consequentemente, à primeira interpretação normativa que a recorrente escolheu como objecto parcial do presente recurso. Em sede de alegações de recurso, a recorrente nunca aludiu a uma distinção entre inacção admissível e inacção “descuidada, injustificada ou negligente”, nunca fez referência a características especial do devedor sub-rogado ou à natureza do crédito a sub-rogar. A simples leitura de cada uma daquelas redacções permite detectar um contraste evidente entre a interpretação normativa reputada de inconstitucional e a interpretação normativa que a recorrente elegeu como objecto parcial do presente recurso. Como tal, mantém-se o sentido da decisão reclamada, uma vez que a suscitação da constitucionalidade não ocorreu de modo processualmente adequado (artigo 72º, n.º 2, da LTC).
E, mesmo que se admitisse o contrário – o que por mera exaustão de fundamentação se pondera –, sempre se concluiria não subsistir qualquer interesse processual no conhecimento de tal questão normativa. Tal sucede porque a decisão recorrida distingue dois fundamentos que sustentam a ilegitimidade processual da recorrente: i) ausência de inacção pelo devedor sub-rogado; ii) indispensabilidade do exercício do direito de sub-rogação à satisfação ou garantia do direito de crédito pelo credor. Ora, a decisão recorrida considera expressamente que a ausência de inacção constitui apenas um argumento adicional e subsidiário, sendo que seria precisamente a não indispensabilidade que constituiria “o nó górdio da questão da sub-rogação neste âmbito” (fls. 551). Dito de outro modo, mesmo que se demonstrasse a inconstitucionalidade da interpretação normativa relativa à ausência de inacção por parte do devedor sub-rogado, sempre subsistiria o problema de saber se o exercício do direito à sub-rogação seria (ou não) indispensável à protecção do direito de crédito da ora recorrente.
Assim sendo, ainda que o Tribunal Constitucional viesse a julgar inconstitucional a primeira interpretação normativa extraída do artigo 606º do Código Civil (CC), tal decisão não seria susceptível de alterar o sentido da decisão recorrida, na medida em que subsistiria sempre um fundamento alternativo que justificaria – na perspectiva do tribunal recorrido, que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar – a ilegitimidade processual da recorrente. Como tal, também por falta de interesse processual, seria forçoso recusar o conhecimento do objecto do presente recurso, quanto à primeira questão de inconstitucionalidade normativa.
6. Aliás, ciente deste ponto da fundamentação adoptada pelo tribunal recorrido, a recorrente pretendia ainda que o Tribunal Constitucional conhecesse de outras quatro interpretações normativas, as duas primeiras extraídas do n.º 2 do artigo 606º do CC e as duas últimas complementadas pelo artigo 503º do mesmo diploma legal. Alega a ora reclamante que tais interpretações normativas teriam sido reputadas de inconstitucionais através §§ 76 a 78 das conclusões do recurso então interposto.
Sucede porém que, analisadas as referidas conclusões, é forçoso concluir que a ora reclamante nunca fez qualquer referência ao problema central abordado pela decisão recorrida que se resume à aferição da indispensabilidade do mecanismo de sub-rogação para satisfação do direito de crédito do credor que pretende sub-rogar-se. Efectivamente, em sede de alegações de recurso, a ora reclamante limitou-se a invocar a inconstitucionalidade de uma interpretação normativa que considerasse “ser inadmissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios, deixando desprotegidos os credores da sociedade dominante, com benefício exclusivo dos credores da sociedade dependente”. Ora, desde logo, importa frisar que a recorrente aparenta ter cometido um lapso de escrita ao reputar de inconstitucional uma interpretação normativa que julgasse “ser inadmissível” a decretação da insolvência da sociedade dominada, sem a simultânea insolvência da sociedade dominante, quando resulta da respectiva actividade processual que a ora reclamante pretendia precisamente o contrário, ou seja, a inconstitucionalidade de interpretação normativa que julgasse admissível tal decretação de insolvência.
Mas, ultrapassado tal lapso de escrita – que se afigura evidente e, portanto, não prejudicaria a cabal compreensão da vontade da reclamante –, impõe-se a conclusão de que, mesmo nestes termos, a interpretação normativa alvo de suscitação de inconstitucionalidade não corresponde, de modo algum, à interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida e, tão pouco, às segunda a quinta interpretações normativas que constituem objecto do presente recurso. Com efeito, a interpretação normativa alvo de suscitação (§§ 76º a 78º das conclusões) nunca aborda o problema da essencialidade ou indispensabilidade da sub-rogação, elegendo-o como critério decisivo na aferição da legitimidade processual daquele que invoca a sub-rogação num crédito do respectivo devedor. Ao invés, limita-se a reputar de inconstitucional uma interpretação normativa do artigo 503º do CSC relativa à admissibilidade de decretação de insolvência de uma sociedade dominada, mas sem que integre na interpretação em causa o problema da indispensabilidade da sub-rogação, na perspectiva do credor que a pretende exercer.
Por conseguinte, mantém-se a decisão reclamada quanto às segunda, terceira, quarta e quinta interpretações normativas, igualmente por força do incumprimento do ónus de prévia suscitação, de modo processualmente adequado (artigo 72º, n.º 2, da CRP).
7. Importa, por último, ponderar o argumento segundo o qual uma eventual falta de suscitação processual adequada não teria impedido o tribunal recorrido de conhecer daquelas interpretações normativas. Note-se que a ora reclamante pretende extrair da decisão recorrida mais do que aquela, efectivamente, decidiu. Na verdade, aquela limitou-se a fazer uma referência genérica e não exauriente às questões de inconstitucionalidade normativa suscitadas nas alegações de recurso. Os seus termos são assaz exíguos:
“Resta apreciar que não são inconstitucionais as normas contidas nos artigos 606.º do CC, 501.º a 504.º, 78.º, n.ºs 1 e 2, e 141.º, n.º 1, alínea e), do CSC, na interpretação de que a embargante não se pode sub-rogar à sua devedora para deduzir os embargos à insolvência, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20º, n.º 1, da CRP, e, ainda por violação do artigo 62.º da CRP, dado que, por um lado, a apelante teve acesso ao direito e aos tribunais e, por outro lado, porque a apelante não foi expoliada do seu invocado direito de crédito.” (fls. 552, com sublinhado nosso)
Daqui resulta que a decisão recorrida só aplicou aquelas normas de acordo com uma interpretação normativa, extremamente precisa e restrita, que não corresponde a nenhuma das interpretações normativas que constituem objecto do presente recurso. Este extracto da decisão recorrida permite extrair duas conclusões, qualquer uma delas desfavoráveis à posição da reclamante: a) as interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pela recorrente, em sede de conclusões de recurso ordinário, nem sequer foram alvo de pronúncia expressa e desenvolvida pela decisão recorrida; b) as interpretações normativas que constituem objecto do presente recurso nem sequer foram efectivamente aplicadas pela decisão recorrida como “ratio decidendi” (artigo 79º-C da LTC).
Por todos estes motivos, é de concluir pela improcedência da reclamação deduzida, confirmando-se o sentido da decisão reclamada, sem prejuízo da rectificação do lapso material relativo à transcrição das conclusões do recurso ordinário interposto.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.