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Processo n.º 415/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:I – Relatório1. A., Recorrente nestes autos em que é Recorrido o Ministério Público, foi condenada, por sentença proferida em 1 de Outubro de 2010 pelo 3.º Juízo dos Juízos Criminais do Porto, na pena de três meses de prisão e 170 dias de multa, à taxa diária de €5, tendo a primeira sido substituída pelo número de dias de multa correspondente (90 dias), igualmente à taxa diária de €5, pela prática, em autoria material, de um crime de aproveitamento de obra usurpada, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º do Código Penal, e 199.º, n.º 1, com referência aos artigos 195.º, n.º 1 e 197.º, n.º 1, todos do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC). A pena única foi computada em 260 dias de multa, à taxa diária de €5, no montante global de €1.300 (mil e trezentos euros).
A arguida interpôs recurso desta decisão para a Relação do Porto suscitando, no que ora se apresenta com interesse, a inconstitucionalidade material do artigo 199.º, n.º 1 do CDADC, na parte em que remete para o artigo 197.º do mesmo corpo legislativo, por violação dos seguintes princípios constitucionais: princípio da menor intervenção do Direito Penal, princípio da subsidiariedade, princípio da dignidade penal, princípio da proporcionalidade (enquanto princípio da necessidade de incriminação) e princípio da culpa. Por acórdão de 16 de Março de 2011, a Relação negou provimento ao recurso tendo então decidido, relativamente à inconstitucionalidade suscitada, o seguinte:
“A inconstitucionalidade material ocorre quando o conteúdo de uma norma viola preceitos ou princípios constitucionais.
Dispõe o art. 199 do CDADC sob a epígrafe: Aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada
«1 - Quem vender, puser à venda, importar, exportar ou por qualquer modo distribuir ao público obra usurpada ou contrafeita ou cópia não autorizada de fonograma ou videograma, quer os respectivos exemplares tenham sido produzidos no País quer no estrangeiro, será punido com as penas previstas no artigo 197.
2 - A negligência é punível com multa até 50 dias.»
Questiona o recorrente que num Estado de direito democrático o legislador opte por classificar tais condutas como ilícitos criminais e considera que tal opção representa uma desproporcionada limitação dos direitos individuais, mais especificamente da liberdade considerando que seria mais adequado sancionar tal comportamento como contra-ordenação.
Porém, do simples facto de criminalizar os descritos comportamentos em que se enquadra a conduta da recorrente, - cujos factos não são sequer discutidos por esta -, não resulta qualquer violação de normas constitucionais.
Ora, no caso concreto o legislador tomou a opção político-criminal de criminalizar os comportamentos descritos no citado art. 199, pelo que, a posição subjectiva do recorrente perante o preceito, não afecta a respectiva validade e eficácia, já que este não colide com qualquer artigo ou princípio constitucional.
Improcede, pois, este argumento do recurso.”
2. A. interpôs, então, recurso de constitucionalidade desta decisão, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores, adiante LTC), para apreciação da invocada inconstitucionalidade do artigo 199.º, n.º 1 do CDDADC, na parte em que remete para o artigo 197.º do mesmo código.
Convidada a apresentar alegações, veio concluí-las nos seguintes termos:
“a) a questão da inconstitucionalidade foi já suscitada nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, nas alíneas c) a i) das conclusões, invocando-se a inconstitucionalidade da concreta aplicação de dispositivos legais, mormente os normativos constantes do art.° 199.°, n.° 1, na parte em que remete para o art.° 197.° do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos (doravante CDADC);
b) reiteram-se as conclusões ali apresentadas, mormente quanto á violação do princípio da menor intervenção do Direito Penal, do princípio da subsidariedade (ou princípio da máxima restrição das penas), do princípio da dignidade penal e do princípio da proporcionalidade, também conhecido, como princípio da necessidade de incriminação (implícitos no art.° 2.º da CRP, que consagra directamente o principio do Estado de Direito Democrático ou mesmo do n.° 2 do art.° 18.°) ou ainda princípio da culpa (que se pode retirar do art.° 1.º e 25.° da Lei Fundamental);
c) discorda-se, nos termos já expostos, do erróneo juízo quanto à conformidade constitucional dos art.°s 199.° e 197.° do CDADC;
d) a Arguida foi punida pela prática de um crime de aproveitamento de obra usurpada, p. e p. pelo art.° 199.°, n.° 1, remissivo ao art.° 197.°, n.° 1, ambos do CDADC, em pena única de multa, no montante de € 1.300,00 (mil e trezentos euros);
e) o referido normativo — art.° 199.°, n.º 1 do CDADC — consagra como ilícito criminal o aproveitamento de obras originais, sem o pagamento de preço aos respectivos autores, produtores e/ou legítimos representantes, pelos direitos de autor;
Ora, importa reflectir, à luz da axiologia social reinante, bem como princípios estruturais do Direito Penal, consagrados na Constituição da República Portuguesa, se tal acto de aproveitamento deve ser punido como ilícito criminal;
g) sendo que, do sopesar dos vários direitos em confronto (dito simplisticamente: a opção do Estado em punir versus o direito à liberdade, integridade pessoal), de acordo com o filtro dos princípios da menor intervenção do Direito Penal, principio da subsidiariedade (ou princípio da máxima restrição das penas), princípio da dignidade penal e princípio da proporcionalidade, também conhecido, como princípio da necessidade de incriminação (implícitos no art.° 2.° da CRP, que consagra directamente o princípio do Estado de Direito Democrático ou mesmo do n.° 2 do art.° 18.°) ou ainda princípio da culpa (que se pode retirar do art.° 1.º e 25.° da Lei Fundamental), concluímos pela desproporcionada limitação dos direitos individuais, neste caso, o da liberdade;
h) bem mais assertiva ao caso concreto e situações similares, permita-se a observação, será a punição apenas como ilícito contraordenacional ou eventual condenação no pagamento de indemnização civil, em processo impulsionado pelo titular do direito autoral;
i) assim, o art.° 199.°, n.° 1 do CDADC, na parte em que remete para o art.° 197.° do CDADC, padece do vício de inconstitucionalidade material;
j) tal vício resulta, ainda, do facto, joeirado pelos mesmíssimos princípios acima identificados (com maior acutilância para o princípio da máxima restrição das penas) do legislador consagrar uma pena conjunta de prisão e de multa (ambas penas principais), o que muito menos se compreende, por respeito a tais princípios (que resultam quer do art.° l., 2.°, 18.°, n.° 2 e 25.°, todos da Constituição da República Portuguesa);
k) e outrossim em consonância com o entendimento sistemático do ordenamento jurídico português, particularmente o edifício do direito criminal, que em nenhum outro caso, senão o dos famigerados art.°s 197.° e 199.° do CDADC, sanciona um conduta com as penas principais de prisão e multa cumulativamente;
1) destarte, desaguando, também por este motivo, numa opção legislativa aberrantemente descomunal;
m) e, em consequência, ferida do vício de inconstitucionalidade material, nas normas consagradas no art.° 199.°, n.° 1, na parte em que remete para o art.° 197.° do CDADC, pelo que deverá a Arguida ser absolvida da pena a que foi condenada;
n) e tudo, sempre, com o Douto Suprimento de V. as Exas., no salutar uso do poder-dever de, oficiosamente, suprirem as eventuais omissões do recorrente.”
Em contra-alegações, o Recorrido Ministério Público pugnou pela não procedência da inconstitucionalidade suscitada, tendo dito designadamente o seguinte:
“2.1. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 199.°, n° 1, e 197.°, n.° 1, do CDADC, quem vender, puser à venda, importar, exportar ou por qualquer modo distribuir ao público obra usurpada ou contrafeita ou cópia não autorizada de fonograma ou videograma, quer os respectivos exemplares tenham sido produzidos no País quer no estrangeiro, é punido na pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias.
O recorrente entende que qualificar como crime a conduta descrita nos artigos 199.°, n° 1, viola os artigos 2.° e 18.° da Constituição.
2.2. Quanto à violação do princípio da proporcionalidade, no caso da necessidade de tutela penal para determinados comportamentos, o Tribunal Constitucional, numa vasta e uniforme jurisprudência, tem entendido que nessa matéria, o legislador ordinário, que terá necessariamente de ser a Assembleia da República ou o Governo se por aquele autorizado, goza de uma ampla liberdade de conformação (v.g. Acórdãos n°s 573/95, 494/2003 e 595/2008).
Diz-se a esse respeito no Acórdão n° 604/99:
‘Como se observou noutro aresto já mencionado, o n° 1142/96, ‘se é sabido que o direito penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] «o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais)», (na linguagem do acórdão n° 83/95, publicado no Diário da República, II Série, n° 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos acórdãos n°s. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, Suplemento, n° 76, de 31 de Março de 1994).
«É evidente - lê-se no citado acórdão n° 634/83 - que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva»’.
2.3. Face à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal matéria, parece-nos evidente que ao entender punir como crime a conduta descrita no artigo 199.°, n.° 1, do CDADC, o legislador ordinário não extravasou a sua ampla liberdade de conformação, remetendo-se, aqui, quanto aos elementos constitutivos do tipo legal, para a bem fundamentada decisão proferida em 1.ª instância.
O bem jurídico protegido com a tutela penal, são os direitos de autor, que são direitos complexos que abrangem direitos de carácter patrimonial e de natureza pessoal (artigo 9.° do CDADC) (José Oliveira Ascensão — Direito de Autor e Direitos Conexos, págs. 166 a 316).
Sendo ao legislador ordinário que caberá, em primeira linha, apurar como protegê-los, parece-nos evidente que o recurso à tutela penal não se mostra desproporcionada e violadora do disposto nos artigos 2.° e 18.° da Constituição.”
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentaçãoa) Delimitação do objecto do recurso3. O presente recurso tem por objecto os artigos 199.º, n.º 1 e 197.º, n.º 1, do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC), na estatuição segundo a qual quem vender, puser à venda, importar, exportar ou por qualquer modo distribuir ao público obra usurpada ou contrafeita ou cópia não autorizada de fonograma ou videograma, quer os respectivos exemplares tenham sido produzidos no País quer no estrangeiro, é punido com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias. A Recorrente invoca a violação do princípio da subsidiariedade do direito penal (ou princípio da máxima restrição das penas), enquanto decorrência da proporcionalidade, na criminalização das condutas abrangidas pelo tipo, as quais são puníveis com pena de prisão e pena de multa.
b) Do mérito do recurso4. O Tribunal Constitucional tem entendido que lhe compete a fiscalização concreta da observância, pelo legislador, do princípio da subsidiariedade do direito penal. Sendo tal princípio enformador da nossa Constituição, decorrendo não só do princípio da proporcionalidade tal como é enquadrado pelo artigo 18.º, n.º 2, ao estabelecer os critérios de validade das leis restritivas de direitos fundamentais, mas também do conceito de Estado de direito democrático, não poderia este parâmetro ser afastado do sistema das garantias judiciais da Constituição. Mas o Tribunal Constitucional tem também afirmado, de modo reiterado, que, na apreciação deste parâmetro, cumpre respeitar a margem de liberdade conformadora que, no plano da definição da política criminal, cabe, nos termos de uma adequada separação de poderes do Estado, ao legislador democrático, isto é, à Assembleia da República, em primeira linha, ou ao Governo, uma vez emitida a correspondente credencial parlamentar.
A este propósito, escreveu-se o seguinte no Acórdão n.º 634/93 (publicado no Diário da República, I série, de 31 de Março de 1994):
“[O] juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva.”
E, no acórdão n.º 527/95 (publicado na I série A, de 10 de Novembro de 1995),
“[É] inegável que cabe ao legislador o juízo sobre a necessidade de recurso aos meios penais, dispondo, nesta matéria, uma ampla margem de liberdade, dado que inexiste na Constituição qualquer proibição de criminalização. Porém, a criminalização de condutas deve restringir-se aos comportamentos que violem bens jurídicos essenciais à vida em comunidade, devendo a liberdade de conformação do legislador ser limitada sempre que a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva ou o legislador actue de forma voluntarista ou arbitrária, ou ainda as sanções se mostrem desproporcionadas ou desadequadas (…).”
A este respeito, Maria Conceição Ferreira da Cunha esclarece que o Tribunal Constitucional pode controlar casos extremos de desnecessidade de protecção penal (cfr. Constituição e crime, Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 429). E Figueiredo Dias sustenta que o critério da necessidade ou da carência de pena está ao dispor do legislador, só podendo ser jurídico-constitucionalmente sindicado em “casos gritantes” (cfr. “O ‘Direito Penal do Bem Jurídico’ como princípio jurídico-constitucional”, in XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa, Coimbra Editora, 2009, p. 45).
5. Salienta o Recorrido Ministério Público que, até agora, o Tribunal Constitucional apenas considerou procedente a violação do princípio da subsidiariedade do direito penal a propósito de duas questões específicas, cuja axiologia não encontra paralelo na situação que se apresenta nestes autos. Uma dessas questões dizia respeito à norma do artigo 132.º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 3852, de 20 de Novembro, que estabelecia a punição criminal, como desertor, do tripulante que, não desempenhando funções directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do navio, o deixasse partir para o mar sem motivo justificado. O Tribunal entendeu que a punição criminal de tal conduta de trabalhador de bordo cujas funções não estão directa e normalmente ligadas com a segurança do navio era um meio excessivo, não respeitando, portanto o princípio da subsidiariedade do direito penal e da necessidade da pena, violando os princípios da justiça e da proporcionalidade decorrentes da ideia de Estado de direito democrático, nos termos dos artigos 18.º, n.º 2 e 2.º da Constituição. O Tribunal começou por julgar tal norma inconstitucional em processos de fiscalização concreta (Acórdãos n.ºs 634/93, 650/93 e 141/95, o primeiro já citado e o segundo publicado no Diário da República, II série de 31 de Março de 1994, e o terceiro disponível em www.tribunalconstitucional.pt), tendo tais pronúncias culminado numa declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral através do acórdão n.º 527/95, já citado.
O outro rol de situações em que o Tribunal proferiu juízos de inconstitucionalidade relativamente a opções legislativas de incriminação abrange várias normas do antigo Código de Justiça Militar. Em todos esses casos, todavia, a censura do Tribunal incidiu sobre o facto de as normas em questão fixarem penas bastante superiores às que se encontravam previstas para os crimes correspondentes na legislação penal comum, tendo, portanto, igualmente como parâmetro fundamento da censura o princípio da igualdade. Foi o que sucedeu nos acórdãos n.ºs 370/94, 958/96, 201/98 e 334/98 (publicados, respectivamente, no Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1994, 19 de Dezembro de 1996, 24 de Julho de 1998 e 27 de Novembro de 1998).
6. Da análise conjunta dos dicta do Tribunal face às funções que lhe competem na fiscalização da constitucionalidade de soluções legislativas de incriminação, e das pronúncias em que, efectivamente, proferiu juízos de inconstitucionalidade, resulta a confirmação da conclusão que já se enunciou previamente. A separação de poderes do Estado impõe ao juiz, mormente ao juiz constitucional, que salvaguarde, com as cautelas necessárias, o espaço de liberdade de conformação que, em matérias de política criminal, pertence primacialmente ao legislador democrático, cuja legitimidade, assente no voto directo popular, lhe confere especial capacidade para decidir quais as condutas passíveis de constituírem ofensas penais, bem como quais as penas adequadas à punição das mesmas. A actividade de fiscalização do Tribunal deve ser, portanto, restringida a um controlo de evidência, relegando-se as decisões de inconstitucionalidade para os casos em que, de modo evidente ou manifesto, se excederam os limites à incriminação penal resultantes do princípio da proporcionalidade e da ideia de Estado de direito democrático.
A Recorrente defende, precisamente, que a incriminação do tipo aproveitamento de obra usurpada ofende o princípio da subsidiariedade penal bem como o princípio da necessidade da pena uma vez que o ilícito é cominado, igualmente, com pena de prisão até três anos, para além da pena de multa.
7. Vejamos então se a tipificação, como ilícito criminal, do aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada se pode qualificar como um caso em que o legislador violou manifestamente a liberdade de conformação que lhe assiste em matérias de política criminal no que toca às decisões quanto às matérias que, em cada momento da vida social, devem ser qualificadas como ilícito criminal.
7.1. Segundo o artigo 199.º, n.º 1, do CDDADC, quem vender, puser à venda, importar, exportar ou por qualquer modo distribuir ao público obra usurpada ou contrafeita ou cópia não autorizada de fonograma ou videograma, quer os respectivos exemplares tenham sido produzidos no Pais quer no estrangeiro, será punido com as penas previstas no artigo 197.º. Trata-se de pena de prisão até três anos e de pena de multa de 150 a 250 dias. Sancionam-se, neste tipo, vários comportamentos que, com intuito economicamente lucrativo, têm origem em violações a direitos de autor.
O bem jurídico tutelado por esta incriminação reside nos direitos de autor, os quais se apresentam como valores constitucionalmente relevantes, nos termos dos artigos 42.º, n.º 2 e 62.º da Constituição. A tutela da propriedade intelectual apresenta-se, no plano da nossa Constituição, como uma tutela multifacetada. Com efeito, a propriedade intelectual é, antes de mais, propriedade privada, abrangida, portanto, no núcleo essencial do direito fundamental de propriedade, nos termos do artigo 62.º, n.º 1, da Constituição (nesse sentido se pronunciou já o Tribunal no acórdão n.º 491/2002, publicado no Diário da República, II série, de 22 de Janeiro de 2003).
Mas a tutela dos direitos de autor não se consome na protecção que o Estado concede à propriedade. A Constituição estabelece, no capítulo II do Título respeitante aos direitos, liberdades e garantias, sob a epígrafe “direitos, liberdades e garantias pessoais”, que a liberdade de criação cultural inclui a protecção legal dos direitos de autor. A propriedade intelectual surge, assim, integrada no âmbito do regime específico dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, portanto, de uma tutela mais intensa do que a que, em primeira linha, a Constituição reserva aos direitos económicos, sociais e culturais, enquadrados no Título III (ressalvando-se as devidas equiparações no caso dos direitos análogos, nos termos do artigo 17.º).
7.2. A protecção constitucional dos direitos de autor resulta, por conseguinte, não só da protecção da propriedade, entendida essencialmente como espaço de defesa pessoal perante a ingerência pública, mas também da tutela da personalidade, enquanto liberdade pessoal de criação. Trata-se da manifestação do direito ao desenvolvimento da personalidade, autonomizado, pela revisão constitucional de 1997, no artigo 26.º, n.º 1.
A propósito da natureza complexa da propriedade intelectual, Gomes Canotilho fala num direito de troncalidade autoral com várias irradiações: como direito unitário, como direito de personalidade, como direito humano, como direito de propriedade, como direito privado, como direito de liberdade e como direito exclusivo. Não se lhe oferecem, no entanto, quaisquer dúvidas de que se trata de um direito fundamental (cfr. “Liberdade e exclusivo na Constituição”, in Estudos sobre direitos fundamentais, Coimbra Editora, 2008, pp. 220-223).
7.3. Para além da tutela interna, os direitos de autor beneficiam, entre nós, da tutela internacional resultante quer de documentos de índole convencional subscritos no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), quer da tutela específica no âmbito da ordem europeia. No primeiro caso, importa observar que o acordo ADPIC/TRIPS impõe já, no seu artigo 61.º, aos membros que estatuam sanções penais para a contrafacção de marca e a pirataria em relação ao direito de autor em escala comercial. No mesmo artigo, prevê-se também a possibilidade de a tutela pena se alargar a outras áreas da protecção da propriedade intelectual, para além daquelas obrigações explícitas de criminalização, particularmente quando estiverem em causa ofensas voluntárias e em escala comercial.
Quanto ao segundo espaço normativo referido, saliente-se que a questão da protecção da propriedade intelectual na actual União Europeia por via da tutela penal, não é tema novo. Foi ponderado, num primeiro momento, a propósito da Directiva 2004/48/CE, actualmente em vigor, tendo sido posteriormente retomado na proposta de Directiva COM(2006)168 final, relativa às medidas penais destinadas a assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual. Na exposição de motivos desta proposta, dizia-se que a contrafacção e a pirataria são fenómenos em expansão, com relevância internacional, que consubstanciam uma séria ameaça às economias nacionais (cfr. a este propósito, Paulo de Sousa Mendes, “A tutela penal de direitos de propriedade intelectual na Proposta de Directiva”, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VII, Coimbra Editora, 2008, pp. 319 e seguintes). Da proposta constava a obrigação, dirigida aos Estados-Membros, de qualificar como infracção penal qualquer violação intencional de um direito de propriedade intelectual quando cometida a uma escala comercial. As sanções previstas abrangiam, a título principal, a pena de multa e a pena de prisão.
7.4. A protecção da propriedade intelectual apresenta um carácter fundamental nas sociedades actuais. A ela se ligam considerações respeitantes ao desenvolvimento e progresso humano, muitas vezes em concorrência com valores de protecção dos direitos da personalidade, dos direitos patrimoniais dos criadores e, até, exigências de segurança dos consumidores. O encurtamento das distâncias resultante da globalização, e o surgimento de espaços de integração económica, ambos aliados ao esbatimento das fronteiras entre os Estados, potenciam o efeito nefasto para as economias que deriva de violações maciças e em escala à propriedade intelectual, facilitadas pelo desenvolvimento tecnológico e pela democratização do acesso às novas tecnologias. Estas considerações fundamentam, em muitos casos, a opção pela criminalização que os Estados adoptam no que se refere a diferentes violações dos direitos de autor, atenta também a função dissuasora subjacente a esta opção político-legislativa.
A relevância que a tutela da propriedade intelectual assume na nossa ordem jurídica, tanto ao nível constitucional como ao nível internacional e europeu, conduz à conclusão de que se trata de bem jurídico dotado de especial significado. O que, aliado à constatação de um aumento significativo de violações à propriedade intelectual, normalmente associado a fenómenos de crime organizado e transfronteiriço, e com elevados prejuízos para as economias nacionais, actualmente tão fragilizadas, fornece ao legislador a legitimidade necessária para intervir na tutela da mesma por via da criminalização e da punição com as consequências jurídicas que lhe andam associadas, designadamente a previsão de penas privativas da liberdade e penas pecuniárias.
8. Face ao lugar que os direitos de autor ocupam na nossa ordem constitucional, a liberdade de conformação do legislador democrático e uma ordem constitucional que não proíbe a cumulação da pena de prisão e multa, levam a que a criminalização da obra usurpada não resulte na violação do principio da proporcionalidade nem da subsidiariedade do direito penal, numa perspectiva de fiscalização constitucional de evidência.
III – DecisãoFace ao exposto, acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional, em negar provimento ao recurso;
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 29 de Novembro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.