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Processo n.º 493/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal ConstitucionalI – Relatório1. A., SA deduziu acção de impugnação judicial sobre acto tributário, relativo ao ano de 2004, traduzido na liquidação de contribuição especial, criada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, no montante global de €18.015,22.
Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a impugnação foi julgada procedente, tendo sido decidido desaplicar os artigos 1.º, n.º 2 e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, por violação da proibição da retroactividade fiscal constante do artigo 103.º, n.º 3 da Constituição.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto interpôs recurso obrigatório dessa decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional – LTC).
2. Notificado para alegar, o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional, veio fazê-lo nos seguintes termos:
“2. Apreciação do mérito do recurso
2.1. Na óptica da decisão recorrida, a “contribuição de melhoria” ali instituída – ao conduzir à tributação de um facto ocorrido antes da entrada em vigor da lei que criou tal tributo - ofenderia o princípio da não retroactividade da lei fiscal, consagrado actualmente, de modo expresso, no artigo 103º, nº 3, da Constituição.
2.2. O Decreto-Lei nº 43/98, de 3 de Março, veio aprovar o Regulamento da Contribuição Especial devida como contrapartida pela valorização de prédios situados em áreas excepcional e substancialmente beneficiadas pela realização de relevantes obras públicas, facilitadoras das comunicações estradais e ferroviárias – substituindo e “consumindo” a sua aplicação a que decorreria, quer do regime geral de tributação dos acréscimos patrimoniais ligados às mais-valias, quer os respeitantes a outras contribuições especiais, porventura existentes (artigo 5º do citado Decreto-Lei nº 43/98).
Tratando-se de diploma legal posterior à inclusão na Constituição do princípio da proibição da retroactividade das leis fiscais, é evidente que – no caso dos autos – tal princípio constitucional – cujos precisos contornos será necessário delimitar – é naturalmente de aplicação directa.
Importa, deste modo, começar por fixar qual a incidência objectiva da “contribuição de melhoria” instituída pelas normas desaplicadas, situando-a temporalmente, para aferir da existência ou não de verdadeira retroactividade, constitucionalmente proibida.
Conforme decorre dos artigos 1º e 2º do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei nº 43/98, a contribuição especial incide sobre o aumento de valor dos prédios ou terrenos, situados nas áreas territoriais definidas na lei, substancial e “anormalmente” valorizados como directa decorrência de importantes investimentos públicos, o qual se concretiza e consuma aquando de certas vicissitudes: utilização de prédios rústicos ou terrenos para construção urbana ou demolição de prédios urbanos já existentes, para neles edificar novas construções, naturalmente valorizadas pelas acrescidas acessibilidades, resultantes das obras públicas (artigo 1º, nºs 1 e 2).
Em termos análogos aos que estão previstos em sede do regime “geral” das mais-valias, a matéria colectável é integrada pela diferença entre um valor “de aquisição” e um valor actual de tais bens imóveis, precipitado em determinado acto jurídico, estabelecendo o artigo 2º, nº 2 do dito Regulamento que os valores que servem para determinar a “diferença” tributável são calculados por avaliação, que deverá basear-se no diferencial entre o valor hipotético dos imóveis à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido pelos coeficientes de desvalorização, e o valor actual dos prédios à data “em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra” – valendo, todavia como momento “de realização” do acréscimo de valor patrimonial “a data da emissão do alvará de licença de construção ou de obra” (parte final do nº 1 do artigo 2º do dito Regulamento).
2.3. Como já anteriormente se disse o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão nº 63/2006, já declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma dos artigos 1.º, n.º 2 e 2.º do Regulamento, na interpretação segundo a qual, sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma, seria devida a contribuição especial por este instituída que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento. Tal interpretação foi considerada violadora do princípio da não retroactividade fiscal, consagrado no artigo 103º, n.º 3, da Constituição.
Para o Tribunal, se se considerasse o facto tributário relevante, o pedido de licenciamento de construção, estar-se-ia perante uma lei (ou interpretação) retroactiva se esse pedido fosse anterior à entrada em vigor do diploma que criou o imposto (o Decreto-Lei nº 43/98), mesmo que o alvará de licença de construção ou de obra fosse emitido já na vigência daquele diploma legal.
Este entendimento não foi unânime, tendo inclusivamente sido proferido um Acórdão que não julgou inconstitucional a dimensão normativa posteriormente declarada inconstitucional (Acórdão nº 604/2005). Para quem sustentava este entendimento, como a “realização” do acréscimo de valor se consumava com a emissão do alvará, se este fosse emitido estando em vigor o Decreto-Lei nº 43/98, não ocorreria “criação retroactiva” de um tributo, mesmo que o pedido de licenciamento de construção tivesse sido apresentado antes do diploma vigorar, sendo esta também a posição que, na altura, o Ministério Público defendeu.
Esta questão, no entanto, não se coloca nos presentes autos, pelas razões anteriormente referidas, quando delimitámos o objecto do recurso.
2.4. Vejamos pois, concretamente, se a norma em causa, ao fixar a data de 1 de Janeiro de 1994, como data de aquisição, cria, retroactivamente, um imposto.
É certo que – para a definição, não já dos pressupostos de facto constitutivos de imposto em causa, mas do montante do tributo, ligado à definição ou determinação da “matéria colectável” mediante avaliação pericial – a norma desaplicada manda atender a um momento temporal anterior à edição do Decreto-Lei nº 43/98, tomando como parâmetro de aferição do diferencial de valores - de que decorre o acréscimo extraordinário de valor do prédio - a data de 1 de Janeiro de 1994, tida como ponto temporal de referência quanto ao lançamento dos investimentos públicos que geraram o potencial acréscimo de valor dos imóveis por eles genérica e indistintamente beneficiados: na realidade, o “aumento de valor” dos prédios em causa decorre da “diferença”, da comparação entre o valor patrimonial “histórico” na referida data inicial e o seu valor “actual”, à data em que se iniciou o processo de licenciamento para construção.
Deste modo – e ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida – não estamos confrontados com uma verdadeira aplicação retroactiva da lei fiscal – como sucederia se se conferisse relevância a factos, geradores da obrigação tributária, verificados anteriormente à data da vigência da lei nova que criou certo imposto – mas perante uma situação em que:
- o facto essencial, gerador da obrigação de imposto, ocorreu posteriormente à edição da lei nova que prevê certa “contribuição de melhoria”;
- de um ponto de vista instrumental – e para orientar a avaliação pericial e consequente determinação do “quantum” do aumento de valor ocorrido – a lei manda atender ao valor patrimonial “histórico” originário dos bens, em data anterior àquela em que foram lançados os investimentos públicos que implicaram o acréscimo substancial e extraordinário do valor dos imóveis.
A nosso ver, a circunstância de – como critério orientador da avaliação pericial, prevista no nº 2 do artigo 2º - se mandar atender ao diferencial de valores patrimoniais concretos, estabelecidos em função da natureza e destino económico do prédio (cfr., artigo 6º), com referência, respectivamente, à data de 1 de Janeiro de 1994 e à data em que se iniciou o processo de licenciamento que culminou na possibilidade de utilização dos terrenos para construção ou reconstrução urbana, não viola o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal.
Como atrás se salientou, consideramos que tais critérios – e momentos relevantes – não se ligam constitutivamente ao facto tributário, configurando-se antes como meros critérios instrumentais relevantes para orientar a avaliação pericial dos bens em causa. A realidade que se visa tributar não é uma valorização gradual e sequencial dos bens imóveis, verificada e consumada, de forma individualizável, ao longo dos vários anos – e, portanto, em parte, sob a égide das normas que precediam o Decreto-Lei nº 43/98, mas a valorização que ocorre e se precipita decisivamente no momento em que se efectiva a possibilidade de utilização dos terrenos para o fim de construção urbana, com um valor acrescido em consequência das obras públicas que, melhorando decisivamente as acessibilidades, tornaram viável tal utilização para a construção ou reconstrução, em termos de outorgar ao titular da licença benefícios patrimoniais acrescidos.
Nesta perspectiva, o facto tributário gerador da obrigação de pagamento da “contribuição de melhoria” instituída pelo Decreto-Lei nº 43/98, é – como refere o artigo 1º do Regulamento respectivo – o “aumento de valor” de certos prédios ou terrenos, resultante da “possibilidade da sua utilização como terrenos de construção urbana”, em consequência da realização de certas obras públicas. Ora, como mero instrumento ou critério de avaliação pericial desse “aumento de valor”, manda o artigo 2º do dito Regulamento que os peritos tenham em conta a “diferença” entre o valor hipotético dos bens em data anterior ao lançamento daquelas obras públicas e o seu valor actual, à data em que se iniciou o processo de licenciamento que consumou a “possibilidade de utilização” para fins de construção ou reconstrução urbana. Daqui decorre que a referência à data de 1 de Janeiro de 1994, não desempenha, na estrutura normativa do tributo, função ligada ao surgimento do facto tributário, servindo apenas de critério orientador e instrumental para a avaliação pericial do valor acrescido. Não estamos sequer confrontados com um facto tributário de formação sucessiva, como sucederia se a lei mandasse contemplar autonomamente o acréscimo de valor ocorrido em cada ano ou período fiscal: o aumento de valor, relevante para a determinação da matéria colectável, é o que ocorre instantaneamente, quer se entenda ser esse momento o do pedido de licença ou o da emissão do alvará, surgindo a referência a uma data anterior como simples critério orientador para os avaliadores, que deverão calcular a diferença entre o valor hipotético dos bens em data que se tem por anterior à valorização substancial dos prédios, ocorrida com os investimentos públicos que estão na base da edição do Decreto-Lei nº 43/98, e o seu valor actual, no momento em que tais obras públicas estão consumadas e se iniciou o processo de licenciamento.
Ora, tal situação normativa não implica, como nos parece evidente, qualquer violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, já que o facto tributário, essencial e constitutivo (seja ele o pedido ou a emissão do alvará) se verifica, na totalidade, sob a égide da “lei nova” que criou o tributo em causa.
2.5. Esta questão também foi abordada no Acórdão nº 63/2006, que a ela se refere, nos seguintes termos:
“Não levanta obviamente qualquer problema de retroactividade – nem de resto levantou ao tribunal recorrido – a ponderação da data de 1 de Janeiro de 1994, nos termos do artigo 2º, n.º 1, do RCE, pois que a qualquer contribuição de melhoria subjaz a consideração de que ocorreu uma vantagem económica particular, o que só pode ser aferido por referência a uma situação patrimonial pretérita.”
Apesar de, com vimos, no Acórdão nº 604/05 se sustentar um entendimento diferente daquele que foi sufragado pela maioria dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros, quanto a esta ponto há convergência total.
No Acórdão, após se transcrever o trecho que também atrás transcrevemos, diz-se:
“Reiterando-se esta doutrina, conclui-se que não há violação do princípio constitucional da não retroactividade dos impostos pelo facto de o aumento de valor tributário se determinar tendo por termo de referência inicial o valor corrigido do prédio em 1 de Janeiro de 1994.”
E mais adiante reafirma-se:
“Efectivamente, embora a decisão recorrida não tenha procedido a uma precisa determinação da data de apresentação dos pedidos de licenciamento de construção relativamente aos prédios em causa, limitando-se a dizer que ocorreram “durante o ano de 1998” [cf. al. j) da matéria de facto fixada na sentença], só no pressuposto de que esse momento é anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98 logra sentido concluir pela violação da proibição da retroactividade fiscal, porque a emissão dos alvarás ocorreu em 10 de Fevereiro de 1999, indiscutivelmente depois dessa entrada em vigor (Eliminada, obviamente, como ficou, a possibilidade de essa retroactividade resultar de o primeiro termo de referência para cálculo do aumento de valor ser o de 1 de Janeiro de 1994).” (sublinhado nosso)
Como resulta claramente das transcrições efectuadas, o Tribunal, neste ponto por unanimidade, entendeu de forma evidente e inequívoca que a norma que agora constitui objecto do recurso, não tinha natureza retroactiva, não sendo, por isso, inconstitucional.
1.º O facto tributário gerador ou constitutivo da ‘contribuição de melhoria’ criada pelo Decreto-Lei n° 43/98, de 3 de Março, é o aumento de valor dos prédios ou terrenos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção ou reconstrução urbana, nas freguesias cujas acessibilidades foram excepcional e substancialmente melhoradas com as obras públicas cuja realização está na base da edição daquele diploma legal.
2.° Como critério orientador da avaliação pericial que irá determinar tal ‘aumento de valor’, causalmente ligado à realização dessas obras públicas, o artigo 2° do Regulamento aprovado pelo citado diploma legal manda atender ao valor hipotético que teriam os prédios em data anterior ao lançamento de tais obras públicas (que se estabelece com referência ao dia 1 de Janeiro de 1994), corrigido pelos coeficientes de desvalorização, e o valor actual de tais bens, à data em que se iniciou o processo de licenciamento que irá consumar e concretizar tal ‘aumento de valor’.
3° A ponderação da referida data — 1 de Janeiro de 1994 — surge, deste modo, como simples critério orientador do juízo pericial de avaliação, não tendo, deste modo, relação directa com o facto tributário, nem implicando sequer que se esteja perante um facto tributário de formação sucessiva, como ocorreria se a lei mandasse tributar os acréscimos de valor entretanto ocorridos em cada ano fiscal.
4.º O apelo à referida data, como meio de possibilitar aos peritos avaliadores um critério e ponto seguro de referência, para determinar o ‘valor hipotético’ dos bens antes de iniciadas as obras públicas que os valorizaram, em nada afronta o princípio constitucional da proibição da retroactividade da lei fiscal (artigo 103°, n° 3, da Constituição).
5.º Não é, pois, inconstitucional, a norma do artigo 1.º, n.° 2 e artigo 2.° do Regulamento da Contribuição Especial, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 43/98, de 3 de Março, enquanto ficciona como data de aquisição do prédio, para efeitos do cálculo do valor sujeito a contribuição, 1 de Janeiro de 1994, sendo o licenciamento de construção ou de obra, requerido em data posterior à entrada em vigor daquele diploma legal.
6° Consequentemente, deve conceder-se provimento ao recurso.”
O Recorrido contra-alegou e apresentou as seguintes conclusões:
“A. Nos termos do citado n.° 1 do artigo 2.° do RCE, ‘[c]onstitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra e o seu valor à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido por aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda [...], correspondendo para o efeito, à data de aquisição a data de 1 de Janeiro de 1994 e à de realização a data da emissão do alvará de licença de construção ou de obra’.
B. Em face desta disposição, estamos manifestamente perante um imposto com natureza retroactiva, porquanto se tributa um aumento de valor verificado muito antes da entrada em vigor do diploma legal que aprovou o respectivo regulamento — neste sentido, CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, Almedina, pág. 43, nota 30; e id., A Fiscalidade do Urbanismo, in O Sistema Financeiro e Fiscal do Urbanismo, 1.° Colóquio Internacional, Coimbra, 13 e 14 de Outubro de 2000, Almedina, 2002, pág. 39ss, pág. 5lss.
C. A quarta revisão constitucional veio consagrar expressamente o princípio da não retroactividade da lei fiscal, ao estabelecer, no artigo 103°, n.° 3, como ‘parcela do direito de resistência fiscal’ (neste sentido, Jorge BACELAR GOUVEIA, A irretroactividade da norma fiscal na Constituição Portuguesa, CTF — BDGI, n.° 387, Jul/Set, 1997, págs. 49ss, p. 81), que ‘ninguém pode ser obrigado a pagar impostos […] que tenham natureza retroactiva’ (Lei constitucional n.° 1/97 de 25 de Setembro, que entrou em vigor em 5 de Outubro do mesmo ano).
D. Como sublinhou o Tribunal Constitucional, ‘a proibição constitucional explícita de retroactividade em matéria fiscal não pode ser interpretada [...] restritivamente em termos semelhantes à jurisprudência anterior do Tribunal, como se não tivesse sido alterado o texto constitucional e apenas resultasse dos princípios gerais. Na expressa proibição de retroactividade não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito.’ - Ac. TC n.° 172/2000 de 22/03/2000, a propósito da constitucionalidade das leis interpretativas em matéria fiscal em face da actual redacção do artigo 103°, n.° 3, da CRP.
E. Sublinhe-se que, para BACELAR GOUVEIA, a inserção daquele princípio no direito de resistência fiscal, traduzindo uma maior intensidade na desvalorização do acto e permitindo o não acatamento da norma fiscal, autorizaria mesmo um juízo de ‘inconstitucionalidade reforçada’, fulminando de ‘inexistência jurídica’ ‘as normas que ofendam essa regra constitucional de irretroactividade’ (Jorge BACELAR GOUVEIA, ob. cit., p. 87).
F. Tudo por ser indubitável que se trata da tributação de um facto que ocorreu antes da entrada em vigor da lei que a determinou.
G. Isto porque o imposto em crise, incidindo sobre o ‘aumento de valor’, tem como incidência real a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerido o licenciamento da construção ou obra e o seu valor à data de 1 de Janeiro de 1994.
H. Destarte, trata-se de dois únicos elementos materiais e essenciais integrantes do próprio facto tributário, pelo que, da mesma forma que se entende — e bem — que um dos elementos que o define — a data de licenciamento da obra ou construção — terá que situar-se temporalmente dentro do âmbito de aplicação da Lei, e, por conseguinte, tem que suceder em momento posterior à data da entrada em vigor da Lei que o determina, também o elemento material integrante do facto tributário que o define a montante, terá necessariamente que se situar, analogamente, dentro do âmbito de aplicação da lei que o determina.
Isto é, impunha-se que o Legislador o tivesse fixado após a data da entrada em vigor da Lei, ou, até, na mesma data.
J. De tudo quanto ficou aqui expresso decorre inexoravelmente que o Regulamento da Contribuição Especial aprovado pelo Decreto-Lei n.° 43/98 de 3 de Março viola a proibição constitucional de retroactividade da lei fiscal, enfermando, consequentemente, de inconstitucionalidade material.
K. Estamos, por conseguinte, perante o que a doutrina e jurisprudência vem designando por uma ilegalidade abstracta da liquidação, ‘por não se consubstanciar num vício próprio do acto, incorrido por ocasião da sua prática, mas da norma que aplica, por inconstitucional, por isso incapaz de servir de alicerce a este como a outro qualquer acto tributário de liquidação.’ (Ac. do STA, 2.ª, de 15/05/2002, proc. 0169/02, in www.dgsi.pt).”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentaçãoa) Delimitação do objecto do recurso3. Com interesse para apreciação dos presentes autos de fiscalização da constitucionalidade, designadamente da delimitação do objecto do presente recurso, transcreve-se a matéria dada como provada pela sentença recorrida, no que ora se apresenta como relevante:
“(…)
b) Em 14/07/2004, a impugnante apresentou a declaração mod. 1 para efeito da liquidação de contribuição especial onde consta no quadro 07:
- data em que foi requerido o alvará de licença de construção ou de obra (não se mostra preenchido este campo).
- data da emissão da licença de construção ou de obra – 05-07-2002 (alvará de licença de construção n.º 225/02) – cfr. fls. 21, 22 e 23 do processo administrativo apenso aos autos, cujo teor aqui se tem por reproduzido.
c) Na sequência de processo de avaliação n.º 98/2204, referente a este lote n.º 3, foi elaborado “termo de avaliação”, cujo teor de fls. 24 a 28 do processo administrativo que aqui se tem por integralmente reproduzido.
d) Na sequência da avaliação do terreno para efeitos de tributação em sede de contribuição especial, foi apurado um valor de € 733.280,63, reportando-se a data do pedido de licenciamento, que foi identificada como sendo no ano de 2001 – cfr. fls. 30 do processo administrativo apenso.
e) Por sua vez, o valor reportado a 1 de Janeiro de 1994 foi fixado em €523.771,88 que, actualizado pela aplicação do coeficiente de desvalorização monetária de 1, 24 resultou em €649. 477, 13 – cfr. fls. 30 do processo administrativo apenso”
Desconhecendo-se embora a data específica em que foi apresentado o pedido de licenciamento, sabe-se que o mesmo ocorreu em 2001. Este pormenor é decisivo pois significa que o mesmo teve lugar em momento posterior ao da entrada em vigor do diploma que criou a contribuição especial cuja liquidação deu origem aos autos de impugnação onde emergiu a presente recusa de aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade.
4. Constitui, portanto, objecto do presente recurso a apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial (RCE) anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, no sentido de que, sendo a licença de construção requerida após a entrada em vigor do referido diploma e, consequentemente, o alvará emitido posteriormente a essa mesma entrada em vigor, é devida a contribuição especial por ele instituída, calculada sobre a diferença de valor entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento. Segundo a sentença recorrida, as mencionadas normas, na interpretação acima mencionada, contrariariam o disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, tendo sido, por isso, recusada a respectiva aplicação.
b) Análise do mérito do recurso5. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de apreciar a norma constante dos artigos 1.º, n.º 2 e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, embora, no entanto, em dimensão normativa diversa da que se apresenta neste recurso.
5.1. Pelo acórdão n.º 81/2005 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 61, p. 399), o Tribunal julgou inconstitucionais as referidas normas, por violação do princípio da não retroactividade fiscal, na interpretação segundo a qual, sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma, seria devida a contribuição especial por este instituída, que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento. Este julgamento de inconstitucionalidade foi posteriormente reiterado pelos acórdãos n.ºs 137/2005, 138/2005, 163/2005, 164/2005 e 175/2005 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O Tribunal considerou que, ao se eleger como facto tributário relevante o pedido de licenciamento da construção, se esse pedido fosse anterior à entrada em vigor do diploma que criou a contribuição especial, estaríamos perante uma lei retroactiva, ainda que o alvará fosse emitido já na vigência daquele diploma legal.
5.2. Já o acórdão n.º 604/2005 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 63, p. 305) julgou não inconstitucionais as normas dos artigos 1.º, n.º 2 e 2.º do referido Regulamento, na interpretação segundo a qual, ocorrendo o requerimento de licenciamento de construção antes da entrada em vigor deste diploma mas sendo a emissão do correspondente alvará de licenciamento posterior a essa entrada em vigor, seria devida a referida contribuição especial sobre o valor calculado pela diferença entre o valor do prédio em 1 de Janeiro de 1994 e o seu valor na data daquele requerimento. Esta decisão assentou em entendimento distinto das decisões anteriores, nos termos do qual o facto jurídico tributável seria a realização do acréscimo de valor, a qual se consumava no momento da emissão do alvará. Deste modo, importava apenas assegurar que esse momento se produzia na vigência do Decreto-Lei n.º 43/98, ficando assim afastada qualquer retroactividade constitucionalmente proibida.
5.3. Pelo acórdão n.º 63/2006 (publicado no Diário da República, I série A, de 3 de Março de 2006), no entanto, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial, na interpretação segundo a qual, sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma, seria devida a contribuição especial que incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento.
6. A questão que agora somos chamados a apreciar apresenta, no entanto, um recorte diverso. Enquanto que, anteriormente, o Tribunal julgou situações em que o pedido de licenciamento tinha dado entrada na Administração em momento anterior ao da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, a situação que os autos nos oferecem desenvolveu-se, na íntegra, durante a vigência desse diploma. Tanto o pedido de licenciamento como o acto administrativo de licenciamento se verificaram já na esfera de abrangência do Decreto-Lei n.º 43/98, tendo o primeiro decorrido algures em 2001 e o segundo em 2004. E isto torna a situação em causa totalmente diferente dos casos que o Tribunal apreciou anteriormente. Com efeito, o que foi então determinante para a mobilização do parâmetro da irretroactividade da lei fiscal foi o facto de a situação fiscalmente relevante apresentar conexões temporais anteriores à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98. Atentemos na fundamentação do Acórdão n.º 63/2006, já citado:
“Não levanta obviamente qualquer problema de retroactividade – nem de resto levantou ao tribunal recorrido – a ponderação da data de 1 de Janeiro de 1994, nos termos do artigo 2º, nº 1 do RCE, pois que a qualquer contribuição de melhoria subjaz a consideração de que ocorreu uma vantagem económica particular, o que só pode ser aferido por referência a uma situação patrimonial pretérita. Contudo, tendo o tribunal recorrido considerado – num caso em que licença para a emissão de alvará de construção tinha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março – que o imposto incidia sobre o aumento do valor do prédio à data da apresentação do requerimento de licenciamento de construção, há que concluir que o facto tributário subjacente à interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso ocorreu num momento anterior à data de entrada em vigor do diploma que instituiu o imposto (Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março.”
E, mais adiante:
“(…) [A] consideração do princípio da proibição da retroactividade dos impostos – consagrado no artigo 103º, n.º 3, da Constituição portuguesa e fundado, em geral, no princípio da protecção da confiança, inerente à ideia de Estado de direito democrático, e no princípio da capacidade contributiva – justifica a relevância atribuída nos acórdãos fundamento ao acto voluntário através do qual (e ao momento em que) é requerido o licenciamento de construção ou de obra. É que, no momento em que apresentou o requerimento para licenciamento de construção ou de obra – recorde-se, momento anterior ao da entrada em vigor do diploma em apreço –, o titular do prédio não podia contar com a aplicação da Contribuição Especial, pela razão simples de que tal tributo não havia ainda sido criado.”
7. Estabelece o artigo 1.º do RCE anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março:
«1 – A contribuição especial incide sobre o aumento de valor dos prédios rústicos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção urbana, situados nas áreas das seguintes freguesias:
(...)
2 – A contribuição especial incide ainda sobre o aumento de valor dos terrenos para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes situados nas áreas referidas no número anterior.»
Por sua vez, preceitua o artigo 2.° do mesmo RCE:
«1 – Constitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra e o seu valor à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido por aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda constantes da portaria a que refere o artigo 43.° do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, correspondendo, para o efeito, à data de aquisição a data de 1 de Janeiro de 1994 e à de realização a data da emissão do alvará de licença de construção ou de obra.»
A contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença de construção ou de obra – cfr. artigo 3.° do RCE.
Entendeu o tribunal recorrido que a contribuição especial incide sobre a valorização dos terrenos ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data do requerimento da licença de construção, o que implica a “tributação de um facto que ocorreu antes da entrada em vigor da lei que a determinou” (cfr. fls. 78), tratando-se, portanto, de normais fiscais retroactivas. O tribunal considerou que a norma do artigo 2.º, n.º 1 do RCE constitui uma verdadeira norma de incidência real, ao definir o valor sobre que recai o imposto, tendo entendido que se estava perante um “facto tributário complexo”. Assim, para que uma lei se possa aplicar a um facto tributário de natureza complexa, seria necessário que todos os seus elementos se concretizassem no domínio de vigência da mesma, sob pena de violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal.
Vejamos se é de acompanhar esta orientação.
8. A contribuição especial foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, com o objectivo de tributar a valorização de que beneficiaram os prédios rústicos e terrenos para construção situados nas zonas envolventes à CRIL, CREL, CRIP, CREP e respectivos acessos, bem como à travessia ferroviária do Tejo e outros investimentos. O valor sujeito a contribuição resulta da aplicação da fórmula prevista no referido artigo 2.º, n.º 1 do Regulamento, o qual resulta da diferença entre o valor do prédio à data em que é requerido o licenciamento de construção ou de obra, e o seu valor à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido por aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda.
A contribuição incide, portanto, sobre o aumento de valor dos prédios ou terrenos localizados em zonas delimitadas que beneficiaram, substancial e excepcionalmente, de investimentos públicos avultados, os quais originaram uma valorização extraordinária dos mesmos. O diploma considera que este valor – ou melhor, a sua realização tributariamente relevante – se consome uma vez verificadas determinadas condições específicas: utilização de prédios rústicos ou terrenos para construção urbana ou demolição de prédios urbanos já existentes para neles edificar novas construções, as quais saem valorizadas pelas acessibilidades resultantes das obras públicas identificadas pelo diploma (cfr. artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do RCE). O que se apresenta como fiscalmente relevante é o momento da realização da “mais-valia”, consubstanciado no requerimento do licenciamento de construção ou de obra. Este Tribunal analisou anteriormente as normas controvertidas sob o prisma da proibição da retroactividade fiscal em casos em que o requerimento da licença deu entrada antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98.
Mas, tendo o requerimento (e a consequente emissão da licença) ocorrido após a entrada em vigor daquele diploma, é afastada a mobilização do parâmetro contido no artigo 103.º, n.º 1 da Constituição. Ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, a data de 1 de Janeiro de 1994 surge, na estrutura da contribuição especial, como um mero instrumento, relevando enquanto mecanismo operacional de determinação do aumento de valor que é tributável. Como se referiu no acórdão 63/2006, já citado, “a qualquer contribuição de melhoria subjaz a consideração de que ocorreu uma vantagem económica particular, o que só pode ser aferido por referência a uma situação patrimonial pretérita.”
9. O aumento de valor não é resultado do normal decurso do tempo verificado entre aquela data – 1 de Janeiro de 1994 – e o momento do requerimento da licença (ou da sua emissão). Este valor resulta de um outro facto, extraordinário e anormal, relacionado com investimentos públicos avultados em acessibilidades de diversa índole, as quais comportam benefícios consideráveis para os terrenos circundantes. A realização desses benefícios, resultantes não do normal decurso do tempo mas das acessibilidades entretanto executadas, que é consumada no requerimento da licença de construção, é que surge como o facto tributário o qual não é, portanto, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, um facto complexo. Não se visa tributar uma valorização gradual dos imóveis, mas sim a valorização que ocorre no momento em que se efectiva a possibilidade de utilização dos terrenos para o fim de construção urbana, com um valor substancialmente acrescido por via das obras públicas previstas no Decreto-Lei n.º 43/98, as quais tornaram viável tal utilização para a construção ou reconstrução, daí resultando, para o beneficiário da licença, benefícios patrimoniais acrescidos.
Como salienta o artigo 1.º do RCE, o facto tributário gerador da obrigação de pagamento da contribuição, é o aumento de valor dos prédios, resultante da realização de determinadas obras públicas. A referência à data de 1 de Janeiro de 1994 não surge, por conseguinte, relacionada com o facto tributário em si mesmo considerado. A sua relevância é exclusivamente instrumental para a determinação do valor acrescido.
Deste modo, ocorrendo o facto tributário integralmente sob a égide do diploma criador do tributo, não se verifica qualquer ofensa ao princípio da não retroactividade da lei fiscal.
III – Decisão10. Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade agora efectuado.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Novembro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – com a declaração de que mantenho o entendimento que defini na declaração de voto anexa ao acórdão n.º 63/2006. – Rui Manuel Moura Ramos.