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Processo n.º 723/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. instaurou acção declarativa ordinária, que foi distribuída à 3.ª secção da 14.ª das Varas Cíveis de Lisboa, contra B., S.A. e C., S.A., pedindo a condenação das Rés no pagamento da quantia de 373 196,00 euros, por conta das quantias pagas pelo Autor, a título de sinal, pela compra de 10% das participações sociais da D., S.A., acrescidos de juros de mora vencido e vincendos, calculados à taxa legal sucessivamente em vigor desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
As Rés contestaram e, em reconvenção, pediram a condenação do Autor a ver reconhecido o direito de cada uma delas a reter a quantia de 186.598,00 euros que lhes foi entregue a título de sinal, como indemnização pelos prejuízos que a rescisão ilícita do contrato promessa lhes causou, sem que sejam obrigadas a entregar ao autor as acções da D. prometidas vender.
Houve réplica do Autor, à qual respondeu cada uma das Rés, pugnando a 1.ª Ré pela nulidade parcial da réplica, com a eliminação dos seus artigos 5.º a 130.º, e a 2.ª pelo desentranhamento dessa mesma réplica.
Foi proferido despacho, julgando:
- procedente a nulidade arguida, entendendo-se como não escrita a matéria da réplica até à resposta à reconvenção.
- fixando o valor da acção em 1 119 588,00 euros;
- admitindo a reconvenção;
- dispensando a realização de audiência preliminar;
- e proferindo despacho saneador-sentença no qual se declarou ser possível conhecer desde já dos pedidos, tendo a acção sido julgada improcedente por não provada, absolvendo-se... as Rés do pedido de declaração de que a resolução do contrato promessa teve lugar por motivo a si imputável e do pedido de condenação a restituírem ao Autor. o dobro do sinal prestado; e o pedido reconvencional procedente por provado, condenando-se o Autor a ver reconhecido o direito de cada uma das Rés a reter a quantia de 186 598,00 € que lhes foi entregue a título de sinal, sem que sejam obrigadas a entregar-lhes as acções da D. prometidas vender.
Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação mas o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão proferido sem qualquer voto de vencido, julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida.
Ainda inconformado, o Autor interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) e c) do n.º 1 e alínea a) e c) do n.º 2, do artigo 721º-A do Código de Processo Civil.
O Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão de não admissão do recurso.
O Autor interpôs então recurso deste Acórdão para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“A. … notificado da Decisão de fls..., da formação de Juízes que constituem o Colectivo a que se refere o n.º 3 do art. 721º-A do Código de Processo Civil que não admite o recurso de Revista Excepcional com fundamento no facto de “(...) a contradição de julgados e em relação à qual afirma uma relevância jurídica que arrasta a necessidade de uma apreciação para melhor aplicação do direito é uma questão inserta numa decisão interlocutória a caminho da decisão final inscrita no despacho saneador-sentença. (...)”, vem junto de V. Exa., nos termos do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Em cumprimento do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 75º A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso é interposto mercê da al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
A Decisão da formação de Juízes que constituem o Colectivo a que se refere o n.º 3 do art. 721º-A do Código de Processo Civil efectuou uma interpretação da al. c) do n.º 1 do art. 721º-A do Código de Processo Civil restritiva e desconforme à Constituição da República Portuguesa, na medida em que veda a possibilidade a qualquer parte interessada de interpor recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, mesmo quando o Acórdão da Relação esteja em oposição com outro de qualquer Relação já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
O que conduz à inconstitucionalidade da Decisão por violação do disposto nos arts. 2º, 20º e 205º da Constituição da República Portuguesa, que apenas neste momento se suscita, atenta a sua verificação na própria Decisão, de natureza definitiva (n.º 4 do art. 721º-A do Código de Processo Civil), e não em momento anterior.
Pelo que, se requer a apreciação pelo Tribunal Constitucional da al. c) do n.º 1 do art. 721º-A do Código de Processo Civil, devendo, para tanto, ser admitido o presente recurso.”
O Conselheiro Relator proferiu despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, com os seguintes argumentos:
Não se admite o recurso.
E não se admite porque exactamente não foi o disposto na al. c) do nº 1 do art.721º-A do CPCivil que a formação teve que interpretar para a decisão que proferiu – a decisão incorporada no acórdão de fls. 1263 a 1267 não tem nada a ver com a definição dos contornos da folha da alínea c) da janela do art. 721º-A, mas está mesmo antes da definição dos limites da própria janela, situa-se no momento em que a porta do recurso se fecha ou não fecha em definitivo, de acordo com o que dispõe o nº 5 do art. 721º do CPCivil. E sobre esta norma não vem suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade.”
O Recorrente reclamou desta decisão para o Tribunal Constitucional, tendo invocado os seguintes argumentos:
(…)
5.Constituem pressupostos de admissibilidade de recurso interposto ao abrigo do disposto na al. c) do nº 1 do art. 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional a indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado e da peça processual em que foi suscitada a questão da inconstitucionalidade, conforme se alcança dos n.ºs 1 e 2 do art. 75º A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
6. Cotejado o conteúdo de Requerimento de recurso de fls... constata-se que o aqui Reclamante deu cumprimento aos pressupostos formais estabelecidos nos citados n.ºs 1 e 2 do art. 75º A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, ou seja para além de indicar a alínea do art. 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, indicou a norma que, no seu entender deveria ser apreciada, descriminando os preceitos constitucionais violados, bem como o momento da sua arguição.
7. Razão pela qual o aqui Reclamante não se conforma com a não admissão liminar do recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça.
8. Dispõe o n.º 2 do art. 76º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional o seguinte: «(...) O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido quando não satisfaça os requisitos do artigo 75º A, mesmo após o suprimento previsto no seu º 5, quando a decisão o não admita, quando o recurso haja sido interposto fora do prazo, quando o requerente careça de legitimidade ou ainda, no caso dos recursos previstos nas alíneas b) e do n.º 1 do artigo 70º, quando forem manifestamente infundados. (...) “.
9. In casu, o indeferimento do recurso foi motivado no facto de nenhuma inconstitucionalidade ter sido arguida quanto à norma do n.º 5 do art. 721º do Código de Processo Civil.
10. Fundamento esse que, salvo o devido respeito por entendimento divergente não se enquadra nos pressupostos de indeferimento enumerados no n.º 2 do art. 76º da citada Lei.
11. Concretamente, o Reclamante, em cumprimento dos requisitos estabelecidos no art. 75º A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional solicitou a apreciação da al. c) do nº1 do art. 721º A do Código de Processo Civil, porquanto entendeu ser também esta norma interpretada de forma desconforme à Constituição.
12. Destarte, deu cumprimento aos requisitos estatuídos no preceito legal citado.
13. Por outro lado, sem conceder, entendendo-se que a existir ofensa aos preceitos constitucionais a mesma apenas poderia decorrer do preceituado no n.º 5 do art. 721º do Código de Processo Civil, jamais tal entendimento conduziria, de imediato, ao indeferimento liminar do recurso, porquanto, sempre impenderia sobre o Sr. Juiz Conselheiro Relator o ónus de proferir despacho de aperfeiçoamento.
14. Com efeito, dispõe o n.º 5 do art. 75º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional o seguinte:
“(...) Se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias. (...).”.
15. Destarte, incumbiria ao relator, no estrito cumprimento do preceituado na citada norma legal convidar o ora Reclamante a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso de forma a colmatar a invocada omissão, o que não sucedeu.
16. Na esteira deste entendimento e para além da solicitada apreciação da al. c) do n.º 1 do art. 721º-A do Código de Processo Civil atenta a interpretação restritiva e desconforme à Constituição da República Portuguesa, preconizada na Decisão da formação de Juízes, na medida em que veda a possibilidade a qualquer parte interessada de interpor recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, mesmo quando o Acórdão da Relação esteja em oposição com outro de qualquer Relação já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito,
17. Colmatando a invocada omissão e suprimindo o inexistente convite de aperfeiçoamento, o Reclamante requer a apreciação por este Tribunal Constitucional do n.º 5 do art. 721º do Código de Processo Civil, pois a Decisão da formação de Juízes efectuou uma interpretação restritiva e desconforme à Constituição da República Portuguesa, mormente ao preceituado nos arts. 2º, 20º e 205º,
18. Na medida em que veda a possibilidade de recurso de revista dos acórdãos da Relação proferidos, para além das decisões interlocutórias impugnadas com a sentença final nos termos do disposto no nº 3 do art. 691º do Código de Processo Civil.
19. Note-se que o aqui Reclamante alicerçou o seu Requerimento de interposição de Revista Excepcional de fls..., também, na al. a) do nº 1 e al. a) do n.º 2 do art. 721º A do Código de Processo Civil, alegando para tanto que se impunha a admissibilidade da Revista Excepcional porque estava em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica era claramente necessária à melhor aplicação do direito.
20. Ou seja, a decisão de mérito julgou improcedente o pedido deduzido pelo Recorrente de devolução do montante pago a título de sinal em dobro, por entender que o incumprimento contratual se deveu a facto imputável ao próprio Recorrente, descurando porém que o fundamento da perda de interesse no negócio e consequente incumprimento decorre da irregular situação societária face à impossibilidade de registo do acto de aquisição de participações sociais e de todo e qualquer acto societário sem que as contas da sociedade se encontrem devidamente aprovadas e publicadas.
21. E, ao ignorar tal factualidade decidindo ser legitimo o Recorrente vincular-se ao contrato definitivo, viola o Acórdão o Principio constitucionalmente consagrado da Segurança Jurídica e do próprio Comércio Jurídico – Art. 2º CRP, que “(...) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrarias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (...).” Ac. Tribunal Constitucional n.º 160/2000.
22. Donde se alcança que, o objecto da Revista Excepcional não está delimitado pela apreciação de uma decisão interlocutória enquadrada no âmbito do n.º 5 do art. 721º do Código de Processo Civil.
23. Razões pelas quais, reunidos os pressupostos de legalmente exigidos, deve o presente recurso ser admitido para apreciação da al. c) do nº 1 do art. 721º-A do Código de Processo Civil,
24. Bem como, sem conceder, para apreciação do preceituado no n.º 5 do art. 721º do Código de Processo Civil.”
O Ministério Público e a Recorrida B., S. A., pronunciaram-se pelo indeferimento da reclamação, tendo a última pedido a condenação da Recorrente como litigante de má-fé, em multa e indemnização.
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge?se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando?se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo Recorrente.
O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, requereu a fiscalização de constitucionalidade da alínea c), do n.º 1, do artigo 721.º - A, do Código de Processo Civil, na interpretação que não admite recurso de Revista Excepcional a contradição de julgados relativa a questão inserta em decisão interlocutória.
A decisão reclamada não admitiu o recurso com o fundamento em que este critério normativo não se apoiou no disposto no artigo 721.º - A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, mas sim no n.º 5, do artigo 721.º, do mesmo diploma.
Se o critério normativo cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional tem que integrar necessariamente a ratio decidendi da decisão recorrida, atenta a natureza instrumental do recurso constitucional, quando estamos perante uma determinada interpretação ela tem que ser reportada ao preceito legal, relativamente ao qual foi efectuada pela decisão recorrida a interpretação sindicada.
Da leitura do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça verifica-se que a interpretação segundo a qual não é admissível recurso de Revista Excepcional com fundamento em contradição de julgados relativa a questão inserta em decisão interlocutória, se apoia numa leitura conjugada dos artigos 721.º - A, n.º 1, alínea c), e 721.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
O facto do Recorrente a ter reportado apenas ao primeiro daqueles preceitos é uma incorrecção que não impede a apreciação do recurso, pois isso não impede a identificação da norma que tendo integrado a ratio decidendi do Acórdão recorrido é agora objecto do recurso de constitucionalidade.
Contudo, como acima se indicou, existem outros requisitos essenciais ao conhecimento deste tipo de recursos, como seja a necessidade de suscitar previamente perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal Constitucional de modo a vincular aquele tribunal ao seu conhecimento.
O Recorrente só está dispensado de cumprir este ónus quando o tribunal recorrido tenha utilizado a interpretação que agora se sindica de modo perfeitamente inesperado e surpreendente, não sendo de todo exigível ao Recorrente a antecipação de tal juízo.
Ora, a interpretação em causa, apesar de incidir sobre um meio de impugnação das decisões judiciais recentemente consagrado na lei, respeita inteiramente a letra dos preceitos legais em causa e a sua compreensão sistemática, assumindo-se como uma interpretação previsível que podia ser perfeitamente antecipada pelo Recorrente, pelo que este não se encontrava dispensado de cumprir o ónus da suscitação adequada perante o tribunal recorrido da questão de constitucionalidade que agora veio colocar ao Tribunal Constitucional.
Não tendo sido cumprido este ónus não pode o Tribunal conhecer do mérito do recurso, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderadas as circunstâncias referidas no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 30 de Novembro de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.