Imprimir acórdão
Processo n.º 752/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Évora, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 583/2011:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em 30 de Outubro de 2011 (fls. 1242 a 1286), para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída artigo 169º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretada no sentido de “incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação de pessoa livre e auto determinada” (fls. 1299), por violação dos artigos 18º, n.º 2, 26º, n.º 1, 27º, n.º 1, 47º e 58º da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre apreciar.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso já foi apreciada por este Tribunal por diversas vezes, sendo sua jurisprudência constante (cfr. Acórdãos n.º 144/04, n.º 196/04, n.º 303/04, n.º 170/06, n.º 396/07, n.º 522/07, n.º 591/07 e n.º 141/10, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) que a incriminação do lenocínio não configura uma violação do princípio da subsidiariedade do Direito Penal ou sequer de qualquer um dos direitos fundamentais elencados pelo ora recorrente (livre desenvolvimento da personalidade sexual – artigo 26º da CRP –, liberdade de expressão através da sexualidade – artigo 37º da CRP –, liberdade de consciência – artigo 41º da CRP – ou ainda a liberdade de escolha de profissão – artigo 47º da CRP).
Logo na primeira oportunidade em que foi chamado a tomar posição sobre esta matéria, através do Acórdão n.º 144/04, este Tribunal entendeu o seguinte:
“(…) questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando?o como “fenómeno social total” e, depreende?se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, “O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
(…)
Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando?o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.”
A circunstância de a jurisprudência supra mencionada ter sido proferida a propósito do (então) artigo 170º, n.º 1, do Código Penal não invalida a sua aplicação à norma agora extraída do artigo 169º, n.º 1, do Código Penal (na redacção da Lei n.º 59/2007), na medida em que a interpretação desta última norma – tal como vertida na decisão alvo de recurso – corresponde, no seu sentido normativo – à que já resultava da versão anteriormente vigente (no mesmo sentido, ver Acórdão n.º 141/10, supra citado). A menção, pela decisão recorrida, da eliminação legislativa da referência aos “actos sexuais de relevo” não afecta, de modo algum, a identidade daquelas normas, na medida em que – neste caso concreto – não se curava de saber se o arguida era responsável por fomentar, favorecer ou facilitar a prática de “actos sexuais de relevo”, mas antes de actos qualificáveis como “prostituição”.
Em suma, mantém-se o entendimento maioritário da jurisprudência deste Tribunal, no sentido de que a incriminação do lenocínio, mesmo nos casos em que se verifique plena liberdade na formação da vontade do/a prostituto/a, não é inconstitucional, por visar proteger bens jurídicos fundamentais que encontram consagração na Constituição Portuguesa.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos expostos decide-se negar provimento ao presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. O recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“A douta decisão reclamada prejudica os interesses processuais do rogante e foi proferida apenas pela Exma. Relatora, pelo que assiste-lhe o direito que exerce de “requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão”, na literalidade do nº 3, do art. 700 do CPC.
E tal porque, com o devido respeito, o requerente discorda da argumentação expendida no douto despacho em referência por se considerar que ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e auto determinada, o n° 1 do artigo 169° do CP ofende o principio da fragmentariadade ou subsidiariedade do direito penal, consagrado no n°2 do artigo 18° da CRP (e vazado para o n°1 do artigo 40° do CP), os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal e à liberdade, consagrados nos artigos 26° n°1 e 27° n°1 da CRP e ainda o direito ao trabalho, defendido pelos artigos 47° e 58° da CRP.
Direitos estes últimos que nada impede sejam exercidos, na prática, com o auxílio e participação de terceiros.
Aquela disposição normativa está ferida, por conseguinte, de inconstitucionalidade material, que apenas poderá colmatar-se através duma interpretação restritiva do preceito que repristine a exigência de que os actos descritivos no tipo legal só constituem crime quando referidos a pessoa “em situação de abandono ou de extrema necessidade económica”.
Questões estas de inconstitucionalidade que o arguido suscitou na interposição do recurso para este Venerando Tribunal.
A douta decisão proferida é grave e decisivamente impeditiva do conhecimento que se pretende da violação dos princípios constitucionais da fragmentariedade ou subsidiariedade, consagrado no n°2 do artigo 18° da CRP (e vazado para o n°1 do artigo 40° do CP) princípios estes ofendidos pelo n°1 do artigo 69° do CP, bem com, os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal e à liberdade, consagrados nos artigos 26°, n°1 e 27°, n°1 da CRP e ainda o direito ao trabalho, defendido pelos artigos 47° e 58° da CRP.” (fls. 1317)
3. Notificado para o efeito, o recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:
“1.º
Com o recurso para este Tribunal Constitucional, o recorrente pretendia ver apreciada a constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal – onde se prevê e pune o crime de lenocínio –, por violação dos artigo 18.º, nº 2, 26º, nº 1, 27º, nº 1, 47º e 58º, da Constituição.
2.º
Pela douta Decisão Sumária n.º 583/2011, negou-se provimento ao recurso.
3.º
Na Decisão Sumária remete-se para a numerosa jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal questão, que sempre se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal (que corresponde agora, após as alterações introduzida ao Código pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao artigo 169º, nº 1).
4.º
Aliás, concretamente sobre a inconstitucionalidade da norma do nº 169º, nº 1, do Código Penal e remetendo para a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, se pronunciaram os Acórdãos nºs 141/2010 e 559/2011.
5.º
Quer na motivação do recurso interposto para a Relação de Guimarães, quer na reclamação da Decisão Sumária, o recorrente não adianta quaisquer novos argumentos para sustentar a inconstitucionalidade.
6.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre, portanto, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. O reclamante limita-se a reiterar a inconstitucionalidade material da norma extraída do n.º 1 do artigo 169º do Código Penal, sem que, contudo, adiante quaisquer argumentos adicionais nesse sentido. Os argumentos ora aduzidos já foram devidamente ponderados pela decisão reclamada que se fundou em jurisprudência constante deste Tribunal.
Assim sendo, aderindo-se à fundamentação constante da jurisprudência citada pela decisão reclamada, mais não resta do que confirmar o juízo de não inconstitucionalidade.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo reclamante em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.