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Processo n.º 684/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu decisão, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
«1. Os recorrentes A. e B. foram condenados, por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em provimento parcial de recurso por si interposto, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão e na pena única de 4 anos de prisão suspensa na sua execução, respectivamente. O mesmo acórdão manteve as condenações dos recorrentes no pedido de indemnização cível, com excepção do montante correspondente à matéria do crime de desvio de subsídio, de que foram absolvidos.
Por acórdão de 15 de Junho de 2011, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que o acórdão da Relação é irrecorrível na parte criminal. E, conhecendo do recurso na parte relativa à indemnização cível, rejeitou o recurso interposto pelos ora recorrentes, por manifestamente improcedente.
2. Os recorrentes interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, visando a apreciação de inconstitucionalidade das seguintes normas:
a) O recorrente A., “a aplicação do disposto nos artigos 151.º e 340.º do Código de Processo Penal (CPP) interpretadas tais normas pelas sucessivas instâncias no sentido de que cabe ao tribunal determinar por razões de mera conveniência a realização ou não de uma Perícia, requerida pelos arguidos e pelo ora recorrente, tendo a mesma sido sucessivamente inviabilizada, no sentido de se apurar/determinar o valor/dimensão e características do património imóvel e móvel construído pelos arguidos e integrado na Fundação CESDA, de modo a fixar-se o contributo destes, em dinheiro e trabalho, obtidos directamente, ou indirectamente pela intervenção de pessoas e entidades privadas, nacionais e estrangeiras, para além das subvenções públicas, aspecto considerado essencial quer em sede criminal quer em sede de indemnização cível”.
b) A recorrente B., “a aplicação do disposto nos artigos 151.º e 340.º do Código de Processo Penal (CPP), interpretadas tais normas pelas sucessivas instâncias no sentido de que cabe ao Tribunal determinar por razões de mera conveniência a realização ou não de uma Perícia, requerida pelos arguidos, tendo a mesma sido sucessivamente inviabilizada, no sentido de se apurar o valor de todo o património criado pelos arguidos e integrado na Fundação CESDA, de modo a fixar-se o contributo destes, em dinheiro e trabalho, obtidos directamente, ou indirectamente pela intervenção de pessoas e entidades privadas, nacionais e estrangeiras, para além das subvenções públicas, aspecto considerado essencial quer em sede criminal quer em sede de indemnização cível”.
3. Atendendo à sua natureza instrumental, só deve conhecer-se do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade quando incida sobre norma que constitua ou integre a ratio decidendi da decisão judicial impugnada, em termos tais que a decisão do Tribunal Constitucional possa ter reflexos no sentido da solução da causa ou da questão processual ou incidental apreciada pela decisão recorrida. Se for inequívoco, face à fundamentação adoptada pelo tribunal a quo, que eventual decisão de provimento é insusceptível de repercutir-se no sentido da decisão recorrida, o conhecimento do objecto do recurso não tem utilidade.
Ora, o acórdão do Supremo de 15 de Junho de 2011 pondera o seguinte:
“(…)
Não é pois admissível recurso em matéria criminal para o STJ, atento o disposto no art. 400º, n.º 1, al. f), do CPP, na nova redacção introduzida pela Lei 48/2007, que determina a irrecorribilidade de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos (na redacção anterior. o critério da recorribilidade em caso de idêntica decisão nas instâncias – “dupla conforme’ – partia da pena aplicável ao crime e não da pena concretamente aplicada - v. cit. Ac. de V. Ac. de 18-06-2008. Proc. n.º 1624/08).
O acórdão da Relação de que foi interposto o presente recurso é, pelo exposto irrecorrível, na parte criminal.
Porém, nos termos do artº 400º nº 3 do CPP Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.
Dispõe, por sua vez o nº 2 deste preceito que: Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente.
Ora o que os recorrentes questionam em matéria de indemnização cível, fundamenta-se na inexistência de provas requeridas, nomeadamente a perícia, desde logo pertinentes para a questão criminal, e da omissão de tais provas, mormente a perícia requerida, pretendem assacar à matéria de facto insuficiência para a decisão de matéria de facto provada, “insuficiência de matéria de facto essencial para a boa decisão da causa” (v. conclusão 19º), explicitando aliás na conclusão 20ª que: “A não realização da Perícia teve implicações ao nível da matéria penal, pois não foi suficientemente valorizado o papel e méritos dos arguidos na criação e desenvolvimento da instituição, devendo a sua visão, iniciativa e trabalho ter sido considerada para efeitos da aplicação do disposto no artigo 72º e seguintes do Código Penal (atenuação especial da pena)”, entendendo que os vícios apontados constituem nulidade nos termos do disposto na alínea d), do nº 2 do artigo 120º do CPP, uma vez que a perícia seria obrigatória nos termos do artº 151º do CPP.
Da omissão das referidas provas requeridas, resultaram reflexos na apreciação do pedido de indemnização civil
Na verdade, segundo os recorrentes, a requerida Perícia foi sempre considerada pelos arguidos um meio de prova indispensável, para efeitos de apuramento da eventual indemnização civil e da acusação criminal e visava o seguinte:
- Obter dados seguros, certos e rigorosos, sobre o trabalho e a inovação social dos arguidos, respeitantes à criação e desenvolvimento da instituição de que foram criadores, em especial o arguido Pastor Diamantino;
- Evidenciar, de modo preciso que o património imóvel construído e a actividade social prestada durante 25 anos, não dependeram exclusivamente, longe disso, dos apoios concedidos pelo Estado;
- Conhecer onde, de que modo, em que percentagem e corno foi aplicado o dinheiro do Estado;
- Conhecer o grau, nível percentagem e onde foi aplicado o dinheiro de entes privados, nacionais e estrangeiros,
- Perceber se os arguidos são devedores ou credores e qual o quantum pecuniário preciso do Estado ou de algum dos seus serviços;
- Avaliar com dados precisos a iniciativa e o desenvolvimento social resultante da acção social dos arguidos;
- Avaliar comparativamente o realizado pela instituição, antes e depois de 2001
- Obter dados quantitativos susceptíveis de melhor apreciar a conduta personalidade e motivações dos arguidos em sede de acção penal nos presentes autos.
Com os dados indicados nos autos e que os arguidos consideram muito insuficientes, não é possível estabelecer com segurança qualquer responsabilidade civil destes;
(v. conclusões 7ª a 9ª)
Por isso, em seu entendimento, seria afectada a decisão quanto ao pedido de indemnização civil, porque alegam que “Os arguidos entendem nada dever à Segurança Social;” (conclusão l2ª) e que: Sem a perícia é de todo impossível formular juízos seguros sobre a conduta dos arguidos, se devem algo ou não, e a que título, no desconhecimento do valor de todo o património da Fundação: (conclusão l4ª)
Desde logo cumpre salientar que o Supremo não conhece dos vícios constantes do artº 410º nº2 do CPP, a pedido das partes, mas apenas oficiosamente, quando os detecte no texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum.
Esses vícios nada têm a ver com a valoração ou produção de provas – pois estas são questões de recurso em matéria de facto –, mas sim e apenas com o texto da decisão recorrida (factos provados e não provados e respectiva convicção) conjugado com as regras da experiência comum.
Tais vícios ou nulidades de que cumprisse conhecer nos termos dos artºs 410º nº 3 e 379º do CPP, apenas poderiam ser cognoscíveis em recurso que fosse legalmente admissível da decisão em matéria criminal.
Porém, sendo o acórdão recorrido, irrecorrível em matéria criminal, óbvio é que das questões que lhe subjazem e também atinentes à parte criminal, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, sejam interlocutórias, ou finais, enfim das questões referentes às razões de facto e direito da condenação em termos penais, não poderá o Supremo conhecer. por não se situarem no circulo jurídico?penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo.
É o caso presente em que as questões suscitadas no objecto do recurso se situam na área jurídico-criminal, quer a nível do invocado vício, quer a nível da pretendida nulidade, relacionados com a não produção de provas requeridas, ainda que delas se pretenda extrair os efeitos fundamentantes de recurso em matéria cível.
Mas, sendo inadmissível o recurso para o Supremo na parte criminal, essas questões ficam processualmente precludidas, ainda que seja com fundamento nelas que se pretenda extrair ilações como fundamento de recurso que verse o pedido de indemnização civil.
Na verdade
Inexistindo recurso na parte criminal, a matéria fáctica apurada, tornou-se definitiva e é insusceptível de ser discutida pelo tribunal de revista, que reexamina exclusivamente a matéria de direito, conforme artº 434º do CPP
A matéria fáctica apurada em matéria criminal, resultante das provas produzidas, é também definitiva, para apreciação do recurso em matéria cível.
Isto decorre aliás do princípio da adesão.
Como se sabe, o artº 129º do C.Penal, ao referir-se à responsabilidade civil emergente de crime, dispõe: “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Isto significa que a indemnização é regulada, quantitativamente e no seus pressupostos, pela lei civil, não tratando de questões processuais. que são reguladas na lei adjectiva.
Embora o processo civil defina vários aspectos do regime da acção enxertada, como da definição da legitimidade das partes, é a acção penal que verdadeiramente suporta, orienta e conforma todo o rito processual, marcando definitivamente a cadência de intervenção dos demandantes civis na causa e os principais aspectos de forma a observar no seu desenrolar, sem esquecer a diligência para que conflui todo o processo: a audiência de julgamento
Por força do princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (artº 71º do C.P.P. quer antes quer depois da revisão operada pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto).
A dedução do pedido cível em processo penal é a regra e a dedução em separado a excepção (v. artºs 71º, 72º e 75º do C.Processo Penal), sem prejuízo de quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal, o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis. – nº 3 do artº 72º.
Não é a mera invocação pelo recorrente na motivação de recurso e respectivas conclusões, ou em requerimentos posteriores, de questões que pretende ver decididas, que define a amplitude dos poderes de cognição do tribunal ad quem, e vincula este ao conhecimento dessas questões, pois que se essas questões contenderem com o objecto de recurso, e ainda que sejam de conhecimento oficioso, apenas podiam ser conhecidas se ainda fosse tempestivo o seu conhecimento e se o recurso fosse admissível quanto a elas, pois só então ficavam integradas na competência funcional dos poderes de cognição do tribunal de revista.
(…).”
Resulta desta fundamentação, pese embora a aparência contrária que poderia radicar no facto de seguidamente referir o que foi decidido pela Relação quanto à requerida perícia e se salientar que os recorrentes nada alegaram que justifique a alteração do decidido nesse campo, que para o acórdão recorrido a matéria de facto que serviu de base à decisão criminal e as questões de direito à sua determinação respeitantes é imodificável, por ser inadmissível o recurso nessa parte. Mas, sendo assim, as considerações feitas sobre a perícia no acórdão recorrido constituem mero obter dictum pois que nada o Supremo admite poder vir a ser alterado nesse domínio. Na verdade, o acórdão recorrido considera que “as questões suscitadas no objecto do recurso se situam na área jurídico-criminal, quer a nível do invocado vício, quer a nível da pretendida nulidade, relacionados com a não produção de provas requeridas, ainda que delas se pretenda extrair efeitos fundamentantes do recurso em matéria cível” e que “sendo inadmissível o recurso para o Supremo na parte criminal, essas questões ficam processualmente precludidas, ainda que seja com fundamento nelas que se pretenda extrair ilações como fundamento de recurso que verse o pedido de indemnização civil”.
Vale por dizer que os factos materiais da causa e as questões respeitantes aos modos da sua aquisição são indiscutíveis, segundo o Supremo, porque é matéria de apreciação precludida, face à irrecorribilidade do acórdão da Relação na parte criminal e aos princípios do “processo de adesão”. Deste modo, parece dever concluir-se que, o acórdão recorrido, não fez efectiva aplicação da norma respeitante à perícia como sua ratio decidendi, o que basta para que não deva conhecer-se do presente recurso [alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC]
4. Acresce que, relativamente ao decidido no acórdão da Relação quanto à não realização da perícia requerida, os recorrentes não suscitaram, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa.
A violação de princípios constitucionais que invocam é directamente reportada às concretas decisões judiciais. Foi o indeferimento do pedido de realização da perícia que, no entender dos recorrentes, limitou o direitos dos arguidos “no seu direito e exercício cabal do contraditória, havendo pois violação do direito constitucional plasmado no artigo 32.º, n.º1, da CRP, de aplicação directa, por força do artigo 18.º do referido texto constitucional” (cfr. conclusões 17.º, 18.º e 19.º das alegações do recorrente A.) e violou “um direito elementar e constitucionalmente consagrado dos arguidos e nomeadamente da Recorrente, não tendo assim sido possível aos mesmos exercer a sua defesa”, gerando “o indeferimento de tal perícia uma nulidade processual” (conclusões 23.º e 24.º das alegações da recorrente B.). Não se pediu ao Supremo Tribunal de Justiça que recusasse aplicação a determinada norma por ser contrária à Constituição e aos princípios nela consignados, no exercício do poder que lhe confere o artigo 204.º da Constituição. Pediu-se-lhe que censurasse, embora com argumentos de ordem constitucional, a aplicação de determinados preceitos legais ou o entendimento deles por parte das instâncias.
Consequentemente, não se considera cumprido por parte dos recorrentes o ónus que decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 2 da LTC, o que também implica que o recurso, apesar de admitido, não deva prosseguir.
5. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LTC, decide-se não conhecer do objecto dos recursos e condenar os recorrentes nas custas, com 7 (sete) UCs de taxa de justiça.»
2. O recorrente A. reclamou para a conferência, nos seguintes termos:
“(…)
Meritíssimos Conselheiros:
O caso que tendes em mãos para decidir é talvez um exemplo das perplexidades crescentes que se suscitam no interior do nosso sistema jurídico quanto ao modo de interpretar e aplicar princípios e regras jurídicos.
No caso dos autos, estamos diante de uma clamorosa falha dos operadores do sistema que, numa cadeia de decisões formais insuficientes e de omissões, implícitas ou explícitas, tornaram este caso um exemplo prático de injustiça para com os arguidos.
Seja-nos permitido fazer a abordagem ao caso da seguinte maneira: Imaginai que um cidadão culto, integrado numa comunidade, e agente social activo em prol do desenvolvimento, decide num dado momento, com a sua família, criar uma instituição particular de solidariedade social. Para isso, mobiliza o apoio financeiro e técnico de entidades públicas, privadas, nacionais e estrangeiras. Além disso, investe na instituição que criou todo o tempo e trabalho, renunciando com a esposa a carreiras no Estado ou no sector privado. Todos os bens que a família possuía foram integrados no património da nova IPSS, originando-se uma real confusão patrimonial. Com um talento organizador notável, e a ajuda de apoios públicos e privados que congrega com estudo, imaginação e muito trabalho, é erguida uma das mais importantes instituições sociais do país, cuja actividade se mantêm pujante, com cerca de 35 anos de existência.
Acontece que, por várias razões, alguns membros da família vêm a ser acusados e condenados pela prática de certos actos ilícitos, qualificados como crimes, e ainda em avultada indemnização cível, a favor de instituições públicas.
O tribunal, nas diversas instâncias, limitou-se a considerar que os actos praticados pelos arguidos atingiam exclusivamente bens públicos, como se a instituição fosse um serviço do Estado, e não uma instituição privada de interesse público, o que é coisa diferente. Por outro lado, nenhuma relevância foi prestada ao facto de muitas das subvenções obtidas não terem origem em fundos públicos, mas sim em fontes privadas.
Os arguidos foram condenados em pedido cível, em indemnização, pela apropriação de fundos, sem que se mostre contabilizado nos autos o valor dessa alegada apropriação, por confronto com o que investiram em obra social.
Por isso, os arguidos, após terem sido notificados da acusação, requereram a realização de uma perícia destinada a apurar o valor do património construído por acção dos arguidos, a sua origem, pública ou privada ou originada em receitas próprias, bem como o que é que do dinheiro recebido se destinou a investimento ou a actividade corrente.
A qualquer pessoa informada, sensata, prudente, parecerá absolutamente necessário, em ordem ao apuramento da verdade material e da produção de um juízo sobre as condutas dos arguidos (atento que, o que está em causa é a apropriação do dinheiro publico e utilização em beneficio próprio dos arguidos), apurar com rigor as coisas, pois é decisivo conhecer o contributo dos arguidos e dos privados no património construído, pois se isso não afasta a censura dos actos ilícitos praticados, permite olhar a nova luz o juízo de reprovação, além de poder fazer diminuir ou mesmo desaparecer a indemnização cível.
Estranhamente as instâncias judiciais, estribadas em meras razões discricionárias ou de oportunidade ou de mera competência, ou seja argumentos exclusivamente formais, negaram a realização da perícia (perícia de onde resultaria, afirma-se com segurança inabalável, que o dinheiro investido pelos arguidos na obra social é manifestamente superior ao dinheiro que lhes foi entregue pelo Estado, de onde resultaria a falta de preenchimento dos elementos objectivos dos tipos de crime de que foram acusados e em consequência – por falta desses elementos – os arguidos só poderiam ter sido absolvidos.
Em especial, o Tribunal da 1ª instância, sustentado pela Relação de Coimbra, impediu a perícia, não por ser desnecessária mas antes por o tribunal ter estabelecido que, ao abrigo das suas faculdades de gestão do processo, haveria que garantir um julgamento concretizável num tempo razoável (ou seja, julgamentos rápidos, e sem avaliação da factualidade que lhes está subjacente e cuja apreciação é pedida ao Tribunal e em consequência, não podendo ser feita justiça).
O STJ aderiu às posições expressas pelas instâncias, entendendo que não se tornou pelos vistos necessário a realização da perícia.
Salvo o devido respeito, não consideramos estes raciocínios como verdadeiros argumentos. São antes, na prática, modos sofisticados de dar guarida a uma injustiça, o que é inadmissível.
Ao agirem como agiram, apesar dos lancinantes pedidos dos arguidos, as instâncias impediram um fundamental meio de prova para aqueles, direito processual que lhes assiste.
E a pergunta essencial, que não encontra resposta nos autos, apesar de pretensos esforços argumentativos em sentido contrário, é esta: como é possível, em que bases e com que dados informativos se pode estabelecer e fixar a indemnização cível? E ainda que a matéria penal tenha contornos diversos, o certo é que os resultados que poderiam ter sido obtidos com a perícia, certamente influenciariam a ponderação e o juízo sancionatório criminal, muito provavelmente favoráveis aos arguidos.
A faculdade de exercício deste meio de prova e o direito à realização da Justiça, como foi já reiteradamente argumentado, constitui um direito fundamental, baseando-se no disposto no n.º 1 do art.º 20.º e n.ºs 1 e 5 do art.º 32° da CRP, além do disposto no n.º 1 do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E é espantoso que não se reconheça essa qualificação de direitos fundamentais, extraindo-se as devidas e plenas consequências aplicáveis ao caso, na base da formulação adoptada.
É este o caso dos autos!
Meritíssimos Conselheiros:
A decisão sumária objecto da presente reclamação assenta a sua recusa formal na admissão do recurso do recorrente, no seguinte modo: “ Não se pediu ao Supremo Tribunal de Justiça que recusasse aplicação a determinada norma por ser contrária à Constituição e aos princípios nela consignados, no exercício do poder que lhe confere o art. 204.º da Constituição. Pediu-se-lhe que censurasse, embora com argumentos de ordem constitucional, a aplicação de determinados preceitos legais ou o entendimento deles por parte das instâncias. Consequentemente, não se considera cumprido por parte dos recorrentes o ónus que decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 2 da LTC, o que também implica que o recurso, apesar de admitido, não deva prosseguir”.
A verdade é que as instâncias indeferiram a realização da perícia sem invocarem qualquer base legal, e, como já se deixou expresso, qualquer fundamento digno desse nome. Uma omissão completa, e logo num tema tão decisivo para a boa decisão deste pleito. Como interpretar essa omissão na sede que nos ocupa?
Interessa lembrar que a perícia, nos termos do art. 151.º do CPP, se deve considerar obrigatória, pelo que não está sujeita a juízos de oportunidade ou conveniência, (excepto a mera finalidade dilatória), como o entenderam as instâncias. Neste contexto, deve articular-se a referida norma com o disposto no art. 340.º do indicado Código. Face à ausência de base legal invocada pelas instâncias, viu-se o recorrente obrigado a considerar que no fundo o que estava em causa, e feria manifestamente a CRP, era a aplicação implícita que as instâncias faziam das indicadas normas.
Durante todo o processo, nas três instâncias, o arguido e aqui recorrente defendeu que a interpretação dada pelo Tribunal de 1ª Instância, no sentido de entender que a admissão de prova pericial é um poder discricionário do Tribunal, viola claramente a Constituição da Republica Portuguesa, ou seja, o Tribunal de 1ª Instancia, aplica uma disposição, cujo entendimento, por ele, dela, extraído é completamente contrário à Constituição e aos princípios constitucionais que informam o Estado de Direito. O recorrente mantém o entendimento e deu aplicação ao artigo 70.º da LTC.
Finalmente:
Independentemente do exposto, e salvo melhor opinião, verifica-se que se encontram já prescritos (prescrição do procedimento criminal) alguns dos crimes de que os arguidos vêm acusados, ao abrigo, conjugado, dos artigos 118.º, 119.º, 120.º e 121.º, todos do Código Penal, designadamente os relativos ao crime de peculato, previsto no n.º 3 do art. 375.º, do CP e do crime de burla, previsto no art. 217.º do CP.
A prescrição é de conhecimento oficioso, pelo que se requer a sua análise e declaração.
Nestes Termos,
Requer-se a V. Exas se dignem aceitar a presente reclamação, revogar a douta decisão sumária objecto da reclamação e admitir a continuação normal da tramitação do recurso, com as legais consequências.”
3. O Ministério Público pronuncia-se no sentido do indeferimento da reclamação nos seguintes termos:
“1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 525/2011, não se conheceu do objecto do recurso interposto pelos recorrentes, com base numa dupla fundamentação:
- inutilidade porque as normas questionadas não constituíam a ratio decidendi do acórdão impugnado;
- não suscitação durante o processo, de modo processualmente adequado, de uma questão de inconstitucionalidade normativa.
2º
Dessa Decisão Sumária apenas reclamou o recorrente A..
3º
Como muito bem se demonstra na Decisão Sumária, integrando as questões de constitucionalidade em causa, a parte criminal do Acórdão da Relação, não sendo admissível recurso quanto a essa parte, o Supremo Tribunal de Justiça - que proferiu o Acórdão ora recorrido -, não aplicou as normas cuja inconstitucionalidade o recorrente pretendia ver apreciadas (os artigos 151.º e 340.º do CPP) e que tinham a ver com a não realização de perícias por aquele solicitada.
4º
Na reclamação agora apresentada, o recorrente não impugna este fundamento de não conhecimento, o que seria suficiente para que a Decisão Sumária se mantivesse.
5.º
Diremos ainda, no entanto, que, quanto ao segundo fundamento, parece-nos evidente que na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como claramente se vê pelo que consta das conclusões 16.º e 17.º (fls. 7657).
6.º
Aliás, na reclamação tecem-se considerações e discorda-se da forma como as instâncias julgaram a questão, mas nada de concreto ou útil se diz quanto à inverificação deste pressuposto de admissibilidade do recurso.
7.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre decidir.
4. Em primeiro lugar, deve ter-se presente que a competência do Tribunal Constitucional é restrita às questões de constitucionalidade (ou ilegalidade por violação de lei de valor reforçado) de normas jurídicas que tenham integrado a ratio decidendi da decisão recorrida (ou, se for o caso, a que a decisão recorrida tenha recusado aplicação com fundamento em inconstitucionalidade ou em violação de norma legal com valor reforçado). Não lhe compete apreciar os factos materiais da causa, a concreta conformação da lide ou a interpretação e aplicação do direito ordinário. Objecto do recurso (em sentido material) são exclusiva e necessariamente normas jurídicas, tomadas com o sentido que a decisão recorrida lhes tenha conferido. Designadamente, no nosso sistema jurídico, não cabe ao Tribunal Constitucional uma função revisora da actuação dos demais tribunais (ou de defesa contra essa actuação) fundada na directa imputação de violação de direitos fundamentais por tais decisões (recurso de amparo ou acção constitucional de defesa).
Por outro lado, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade tem pressupostos e requisitos formais, prescritos pela Constituição (artigo 280.º da CRP) e pela Lei (maxime artigos 70.º, 72.º e 75.º-A da LTC), cujo âmbito e sentido podem considerar-se consolidados pela abundantíssima e constante jurisprudência na matéria, cuja não verificação impede a apreciação de mérito da questão de constitucionalidade. Entre eles, a exigência de que quem pretende aceder ao Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC suscite a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, como questão de constitucionalidade de determinada norma jurídica.
Reafirmadas estas conclusões elementares, a reclamação não pode proceder.
Como o Ministério Público salienta, a decisão sumária ora reclamada assenta em dupla fundamentação: (i) as normas questionadas não constituem ratio decidendi do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (decisão recorrida, relembra-se) (ii) e não foi suscitada, em termos processualmente adequados, a questão de constitucionalidade das normas cuja apreciação se pretende. Trata-se de fundamentos autónomos, qualquer deles suficiente para que não deva conhecer-se do objecto do recurso, pelo que basta que um deles se mantenha para não ser, sequer, necessário examinar a subsistência do outro.
Ora, a argumentação do recorrente na reclamação respeita ou contende apenas com o segundo fundamento. Deixa intocado o que na decisão sumária se disse quanto à não aplicação da norma em causa pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que constitui a decisão recorrida. Com efeito, como na decisão sumária se refere (n.º 3 dessa decisão), o Supremo considerou que, apesar de ser admissível recurso quanto à matéria cível, ficou precludida pela inadmissibilidade de recurso em matéria criminal a apreciação das questões relacionadas com a não produção de provas requeridas. O Supremo não decidiu propriamente que “não era necessário a realização da perícia”. O que decidiu foi que a questão da necessidade da realização da perícia ficara precludida por força da inadmissibilidade de recurso em matéria criminal. Como já se disse, ao Tribunal Constitucional não cabe apreciar o acerto ou desacerto desse entendimento do direito ordinário, nem a eventual injustiça que pode resultar de se darem por provados factos que a realização da diligência indeferida poderia mostrar não terem a expressão ou o significado considerado assente. Consequentemente, o que poderia ser deferido a este Tribunal seria a conformidade à Constituição da norma em que tal entendimento do Supremo (acerca da preclusão da questão nessa fase e também nesse âmbito) se fundou e não da norma ao abrigo da qual as instâncias tinham decidido que não haveria lugar à requerida perícia.
5. O recorrente alega que se encontra já prescrito o procedimento criminal por algum dos crimes pelos quais está condenado, requerendo a análise e declaração da prescrição.
Essa é matéria cuja apreciação compete aos tribunais da causa e que exorbita da competência do Tribunal Constitucional. Terão de ser estes a pronunciar-se sobre a eventual prescrição e a oportunidade da sua invocação.
E nem sequer se justifica a remessa do processo ao tribunal a quo a título devolutivo, atendendo a que se decidiu não conhecer do objecto do recurso por falta dos necessários pressupostos, decisão que vai confirmar-se. Efectivamente, o que sobre essa outra questão possa vir a decidir-se é insusceptível de repercussão sobre o sentido da decisão a proferir no presente recurso porque não pode suprir a irremediável falta de pressupostos do recurso interposto.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a reclamação, confirmando a decisão de não conhecimento do objecto do recurso;
b) Não apreciar a questão da prescrição do procedimento criminal, sem prejuízo do que deva ser decidido pelos tribunais da causa a este propósito, face ao requerido pelo recorrente a fls. 8958;
c) Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2011.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.