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Processo n.º 689/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:I – Relatório1. A. foi condenado, pelo Tribunal Judicial de Évora, na pena única de 25 anos de prisão, decorrente de cúmulo jurídico relativo às seguintes penas: “vinte e três anos e quatro meses de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado de B.; dezanove anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado de C. e um ano e oito meses de prisão pela prática do crime de profanação do cadáver de C..” Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por decisão sumária, o rejeitou.
Após o trânsito em julgado dessa mesma decisão, veio o recorrente apresentar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso esse que não foi admitido por ser patente o trânsito da referida decisão sumária.
De seguida, reclamou o aqui recorrente para a conferência da Relação de Évora, do despacho que não admitiu o recurso, visando a admissão do mesmo para o S.T.J. Tal reclamação foi, mais uma vez, rejeitada.
Seguiram se sucessivas suscitações de incidentes, tendo o recorrente visto sempre negadas as suas pretensões.
2. Ainda inconformado, e na sequência de mais uma tentativa de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (recurso esse não admitido), o recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações subsequentes (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), nos seguintes termos:
“I - O ora recorrente viu negada, por aquela Relação de Évora, a admissão do seu Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
II - Invoca para o efeito aquela Instancia que, no seu entender, o Acórdão proferido não admite recurso justificando que aquela situação é subsumível no previsto no artigo 400° n.º 1 al. C) do CPP e,
III- Por conseguinte, não conhecendo a final do objecto do processo, considerada meramente incidental e não de direito substantivo, pelo que, e sempre no entender daquela, nos termos conjugados da Lei n° 59/98 de 25-8 e da Lei n° 48/2007, são irrecorríveis os acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que não ponham termo à causa.
IV - Entendendo ainda aquela Relação que ‘(...) não admitem recurso os acórdãos proferidos, em recurso, pelas R elações que não conhecem, afinal, do objecto do processo, isto é, que não julgam o mérito da causa, sendo a intenção do legislador a de alargar a irrecorribilidade a todos os acórdãos, proferidos, em recurso, pelas Relações que ponham termo à causa, mas não conheças do objecto do processo, o que o artigo 400.º n°1 al. c), na redacção de 1998, não incluía.’
V - Concluindo depois ‘Daí que não se admita o presente recurso ao abrigo do disposto nos arts. 400° n°1 al.c,), 432°(a contrario) e 414°n°2, todos do CPP.’
VI - Ora, não pode o Recorrente conformar-se com tal interpretação e decisão.
VII - Até porque, a interpretação supra referida e dada pelo Tribunal da Relação de Évora, ao recurso do arguido/recorrente, limita-o e diminui-lhe as suas garantias de defesa e de recurso, previstas no artigo 32°, n° 1, in fine da C.R.P, e bem assim no respectivo n° 2, in fine, do mesmo artigo do citado diploma legal.
VIII - A plenitudes das garantias de defesa, emergentes do art. 32° n° 1 do texto constitucional, significa o assegurar em toda a extensão racionalmente justificada de ‘mecanismos’ possibilitadores de exercício efectivo desse direito de defesa em processo criminal incluindo o direito ao recurso ( o duplo grau de jurisdição) no caso de sentenças condenatórias (v. os acórdãos do Tribunal Constitucional n°s 40/84 e 55/85 e 17/86, respectivamente nos ATC vol. 3 pag. 241 e vol. 5 pag.461 DR-II de 24/4/86.
IX - Tanto basta para concluir que a interpretação e aplicação que foi feita das normas referidas, afectando desproporcionalmente uma das dimensões do direito de defesa (direito ao recurso), revelam-se violadoras das normas conjugadas dos arts. 32° n° 1 e 18° n° 2 da Constituição da República Portuguesa.
X - Pese embora a decisão recorrida não ponha directamente termo à causa, o certo é que atinge o seu objecto, ao não permitir que dela se conheça.
XI - Pelo exposto, ao contrario do que se alega na decisão daquela Relação de Évora, que a mesma é recorrível nos termos do art. 400° n° 1 al. c) do CPP a contrario.
XII - A ninguém podem ser denegados os seus direitos de recurso e muito menos por questões meramente formais.”
Este recurso não foi admitido por se considerar não ter havido suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo.
Nesta sequência foi deduzida a seguinte reclamação:
“1. O arguido não se conforma com a rejeição do recurso que apresentou para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70°, n° 1, alínea b), da Lei n° 28/82, pois, ao contrário do que se afirma no douto despacho que rejeita tal recurso, o arguido suscita, anteriormente, várias questões de inconstitucionalidade e, não apenas, através do anterior requerimento que apresentou.
2. Efectivamente, e como se constata dos autos, o arguido vinha suscitando antes de tal requerimento questões de inconstitucionalidade logo no primeiro recurso que interpôs para esta Relação.
3. Assim como, o arguido voltou a suscitar questões de inconstitucionalidade no recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça.
4. Tais questões de inconstitucionalidade são basicamente as mesmas que continuam a ser suscitadas no seu requerimento e recurso que o arguido interpôs para o Tribunal Constitucional.
5. As quais se prendem, essencialmente, com a violação das garantias de defesa em processo criminal,
6. Que o arguido entende que lhe vêm sendo coartadas ao longo de todo o presente processo;
7. E, fundamentalmente, nos recursos que o arguido vem interpondo, para esta Relação, para o Supremo Tribunal de Justiça e, agora, para o Tribunal Constitucional.
8. O que constitui, entre o mais, uma violação clara do artigo 32.º da C.R.P. e, inclusive, do artigo 8, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que faz parte integrante do direito português, Cfr. artigo 8 da CRP.
9. Assim, e ao contrário do referido no douto despacho de que ora se reclama, o arguido veio suscitando várias questões de inconstitucionalidade nos vários recursos interpostos, questões essas que são as mesmas que arguiu para o Tribunal Constitucional.
10. Pelo que, não assiste qualquer razão ao que se refere nesse despacho no qual foram violadas, entre o mais, as normas constantes dos artigos 70.º, n.º 1, al. b), 71, 72.º, 73.º, todos da referida Lei 28/82, de 15/11, bem como as dos artigos 32, n.ºs 1 e 2 e 18, n.º 2, ambos da C.R.P. e ainda, o artigo 8, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.”
3. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Notificado desse parecer, o Reclamante não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação4. Em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 da LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se, em concreto, se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
O conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, versando normas ou critérios normativos que, tendo sido aplicados na decisão recorrida, viram a respectiva inconstitucionalidade suscitada durante o processo, depende da prévia verificação de vários requisitos. Assim, é necessário que o reclamante haja invocado tal inconstitucionalidade normativa durante o processo em moldes processualmente adequados (cfr. artigo 72.º, n.º 2 da LTC).
Deste modo, o objecto do recurso de constitucionalidade apenas poderá incidir sobre a apreciação, à luz das regras e princípios jurídico-constitucionais, de um juízo normativo efectuado pelo tribunal recorrido. O Tribunal Constitucional aprecia normas ou interpretações de normas – a sua actuação não versa as decisões dos outros tribunais.
A suscitação de questão de constitucionalidade dita normativa, apta a adequadamente convocar a pronúncia do Tribunal Constitucional implica que “a parte identifique expressamente [ess]a intepretação ou dimensão normativa, em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os respectivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal sentido.” (Lopes do Rego, O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho-Setembro de 2004, p. 8).
Ora, o Reclamante nunca suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, designadamente do artigo 400.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, preceito que integra no objecto do recurso de constitucionalidade.
5. Por outro lado, também não se pode dizer que a decisão do Tribunal da Relação de Évora configura uma decisão-surpresa para efeitos de dispensa do ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade. Para que uma decisão possa ser qualificada como “decisão-surpresa” de modo a considerar-se o recorrente constitucional dispensado do ónus de suscitação atempada (i.e. durante o processo) da questão de constitucionalidade, é necessário que a aplicação do preceito em causa – ou a aplicação do preceito numa determinada interpretação – surja como absolutamente inesperada e imprevisível de um ponto de vista objectivo. Neste sentido se tem vindo a pronunciar, de modo reiterado, a jurisprudência constitucional. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992, “ (…) desde logo terá de ponderar-se que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso – acrescentar-se-á - também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais (voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os interessados da exigência de invocação ‘prévia’ da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo.” (sublinhado nosso).
Pelo que se conclui pela impossibilidade de conhecer do recurso de constitucionalidade tentado interpor.
III – Decisão6. Nestes termos, face ao exposto acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, indeferir a presente reclamação.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Novembro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.