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Processo n.º 467/11
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Com a legitimidade que lhe é conferida pela alínea e) do n.º 2 do artigo 281º da Constituição e pela alínea c) do n.º 1 do artigo 12º do Estatuto do Ministério Público aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, na redacção introduzida pela Lei n.º 60/98 de 27 de Agosto, o Procurador-Geral da República requer ao Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 277.º n.º 1, 281.º n.º 1 alínea a) e 282.º da Constituição e do artigo 51.º n.º 1 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional), que aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º n.ºs 1 e 3, 6.º, 7.º n.º 1, e 8.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, diploma que regula a assistência e o patrocínio judiciário aos bombeiros nos processos judiciais em que sejam demandados ou demandantes por factos ocorridos no âmbito do exercício de funções.
Esclarece o requerente que, embora se afirme no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 286/2009 de 8 de Outubro que no decurso do respectivo procedimento legislativo foram ouvidos pelo Governo, entre outras entidades, o Conselho Superior do Ministério Público e a Procuradoria-Geral da República, o certo é que a versão do projecto de diploma remetido para apreciação destas duas entidades não continha as disposições que constituem o objecto do presente pedido de fiscalização, designadamente:
– artigo 4.º (Procedimento), n.º 1, que dispõe: “O requerimento de concessão de protecção jurídica é apresentado junto dos serviços do Ministério Público do tribunal da comarca com competência para a respectiva acção”;
– artigo 4.º (Procedimento), n.º 3, que dispõe: “Caso esteja em falta algum dos elementos ou documentos a que se referem os números anteriores, o requerente será notificado para o acrescentar ou apresentar, no prazo de oito dias após ser notificado para o efeito, findo o qual se considera haver desistência do pedido”;
– artigo 6.º (Competência para a decisão), que dispõe: “A decisão sobre a concessão da protecção jurídica compete ao representante do Ministério Publico do tribunal da comarca com competência para a respectiva acção”;
– artigo 7.º (Nomeação de patrono), n.º 1, que dispõe: “A nomeação de patrono, sendo concedida, é da competência da Ordem dos Advogados, após solicitação do Ministério Público”;
– artigo 8.º (Cancelamento da protecção jurídica), n.º 2, que dispõe: “A protecção jurídica pode ser retirada oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, da Ordem dos Advogados, da parte contrária ou do patrono nomeado”.
Sustenta o Procurador-Geral da República que estas normas, lidas conjugadamente, conferem ao Ministério Público poderes para conhecer e dirigir a instrução do procedimento (artigo 4.º, n.ºs 1 e 3), bem como conceder, denegar, promover e retirar (artigos 6.º, 7.º n.º 1, e 8.º, n.º 2) a “protecção jurídica”, aos bombeiros, que sejam demandados ou demandantes, em processos judiciais, por factos ocorridos no âmbito do exercício de funções (artigos 1.º e 3.º, n.ºs 1 e 2).
Acontece que tais poderes não constam do elenco das funções atribuídas pela Constituição ao Ministério Público, ou seja, representar o Estado, participar na execução da política criminal, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática (artigo 219.º n.º 1 da Constituição). E, por outra parte, também não constam do elenco das diversas competências cometidas ao Ministério Público pela sua lei estatutária (artigo 3.º, n.ºs 1 e 2).
Tais normas, por conseguinte, ampliaram o elenco das competências até então cometidas ao Ministério Público, que fica agora investido da competência legal para dirigir o procedimento de “protecção jurídica” em que sejam interessados os “bombeiros”, no sentido da lei (Decreto-Lei n.º 286/2009, artigos 1.º e 3.º, n.º s 1 e 2). E fizeram-no de modo inovatório, pois o regime geral da “protecção jurídica”, aprovado por lei da Assembleia da República, entrega tais funções ao dirigente máximo dos serviços da segurança social ou, por via de impugnação judicial, aos tribunais (artigos 20.º, n.º 1, 26. º e 27. º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, alterada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto).
É certo que a Constituição, no artigo 219. º, n.º 1, e o próprio Estatuto da Ministério Público (artigo 3.º, n.º 1, alínea f)) contêm cláusulas de ampliação da competência do Ministério Público. Todavia, tal alargamento só poderá validamente ocorrer por via de “lei”, uma vez que esta matéria, incluída na reserva relativa da Assembleia da República, é da exclusiva competência deste Órgão, salvo autorização ao Governo (artigo 165.º (Reserva de competência relativa) e n.º 1, corpo e alínea p) da Constituição).
Ora, o Decreto-Lei n.º 286/2009 foi emitido pelo Governo “nos termos da alínea a) do artigo 198.º da Constituição”, ou seja, no exercício da função legislativa em matérias não reservadas à Assembleia da República, apesar de, nos termos já expostos, a matéria da “competência do Ministério Público” ser objecto de “reserva relativa de competência legislativa” da Assembleia da República.
Será, assim, de concluir, sustenta por fim o Procurador-Geral da República, que as normas constantes dos artigos 4.º, n.ºs 1 e 3, 6.º, 7.º, n.º 1, e 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, enfermam de inconstitucionalidade orgânica, por infracção do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 165.º, n.º 1, alínea p), 198.º, n.º 1, alínea b), e 219.º, n.º 1 da Constituição.
2. O Primeiro-Ministro foi notificado do pedido e respondeu a oferecer o merecimento dos autos.
3. O memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal foi submetido a debate em Plenário; fixada a orientação do Tribunal e distribuído o processo ao agora relator, cumpre materializar a correspondente decisão.
II. Fundamentação
4. Na parte impugnada, as normas do Decreto-Lei n.º 286/2009 de 8 de Outubro apresentam a seguinte redacção:
Artigo 4.º
Procedimento
1 — O requerimento de concessão de protecção jurídica é apresentado junto dos serviços do Ministério Público do tribunal da comarca com competência para a respectiva acção.
2 — (…)
3 — Caso esteja em falta algum dos elementos ou documentos a que se referem os números anteriores, o requerente será notificado para o acrescentar ou apresentar, no prazo de oito dias após ser notificado para o efeito, findo o qual se considera haver desistência do pedido.
4 — (…)
Artigo 6.º
Competência para a decisão
A decisão sobre a concessão da protecção jurídica compete ao representante do Ministério Publico do tribunal da comarca com competência para a respectiva acção.
Artigo 7.º
Nomeação de patrono
1 — A nomeação de patrono, sendo concedida, é da competência da Ordem dos Advogados, após solicitação do Ministério Público.
2 — (…)
3 — (…)
4 — (…)
Artigo 8.º
Cancelamento da protecção jurídica
1 — (…)
2 —A protecção jurídica pode ser retirada oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, da Ordem dos Advogados, da parte contrária ou do patrono nomeado.
3 — (…)
5. Estas normas inserem-se no regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro – publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 195 – que disciplina a assistência e patrocínio judiciário aos bombeiros nos processos judiciais em que estes sejam demandados ou demandantes, por factos ocorridos no âmbito do exercício de funções.
Tal regulação veio concretizar a previsão constante do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 241/2007, de 21 de Junho – que define o regime jurídico aplicável aos bombeiros portugueses no território continental –, de acordo com a qual “os bombeiros têm direito a assistência e patrocínio judiciário nos processos judiciais em que sejam demandados ou demandantes por factos ocorridos no âmbito do exercício de funções” (n.º 1), devendo tal direito ser regulado “em diploma próprio” (n.º 2).
Segundo a exposição de motivos incluída no relatório do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, a regulação do direito à assistência e patrocínio judiciário dos bombeiros teve por finalidade o “alargamento do apoio judiciário aos bombeiros, independentemente da sua condição financeira” – e portanto, “de se encontrarem, ou não, em situação de insuficiência económica” (cfr. artigo 2º) – desde que “por factos ocorridos no exercício das suas funções”, assegurando-se-lhes por essa via a “defesa dos seus direitos” (cfr. artigo 2º) no âmbito daquele exercício, sem prejuízo da “possibilidade”, mantida, “de acesso ao regime geral do apoio judiciário”.
A dimensão substantiva do regime de assistência e patrocínio judiciário fixado pelo Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, encontra-se caracterizada nos respectivos artigos 3º e 8º, n.º 1, ocupando-se, o primeiro, dos pressupostos subjectivos e objectivos da atribuição do direito e, o segundo, dos factos que determinam a sua cessação.
De acordo com a delimitação constante do artigo 3º, o regime especial de assistência e patrocínio judiciário aprovado pelo Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, abrange os bombeiros – ou seja, os indivíduos integrados de forma profissional ou voluntária num corpo de bombeiros que tenham por actividade cumprir as missões deste (artigo 2º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 241/2007, de 21 de Junho) – que façam parte do quadro de comando e do quadro activo, nos processos judiciais em que sejam demandados ou demandantes, desde que por factos ocorridos no âmbito do exercício das suas funções, por estes se entendendo todos aqueles que resultem da respectiva actividade operacional (artigo 3º, n.º 2).
As normas impugnadas integram-se na dimensão procedimental do regime especial de assistência e patrocínio judiciário aos bombeiros definida nos artigos 4º a 7º e 8º, n.ºs 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro.
Tal procedimento tem início com a apresentação junto dos serviços do Ministério Público do tribunal da comarca com competência para a acção respectiva do requerimento de concessão de protecção jurídica (cfr. artigo 4º, n.º 1), o qual deverá conter, a par dos elementos relativos à identificação pessoal e funcional do requerente (artigo 4º, n.º 2, alíneas a) e b)), a indicação da modalidade de protecção jurídica requerida (artigo 4º, n.º 2, alínea c)), e fazer-se acompanhar por declaração emitida, quer pelo comandante do respectivo corpo de bombeiros, quer pela Autoridade Nacional de Protecção Civil, uma e outra certificativas de que os factos pelos quais o requerente pretende beneficiar do regime de protecção jurídica – e que deverão resumidamente descrever – ocorreram no âmbito do exercício das respectivas funções, bem como da ausência de desrespeito dos deveres a que o mesmo se encontra obrigado (artigo 4º, n.º 2, alíneas d) e e), artigo 5º, n.ºs 1, 2, 3 e 4). O requerimento deverá ser ainda instruído com declaração produzida pelo próprio requerente, comprometendo-se, sob compromisso de honra, a comunicar ao tribunal onde corre o processo qualquer alteração dos elementos fornecidos (artigo 4º, n.º 2, alínea f)).
Na hipótese de se encontrar em falta algum dos elementos ou documentos exigíveis, o requerente será notificado pelo Ministério Público para o acrescentar ou apresentar, no prazo de oito dias após ser notificado para o efeito, sob pena de desistência do pedido (artigo 4.º, n.º 3).
A decisão sobre a concessão da protecção jurídica compete ao representante do Ministério Publico do tribunal da comarca com competência para a respectiva acção (artigo 6º) e, caso o apoio seja concedido na modalidade de nomeação de patrono, o Ministério Público solicitará à Ordem dos Advogados a respectiva indigitação (artigo 7.º, n.º 1).
Sob verificação de algum dos factos que determinam o cancelamento da protecção jurídica, esta será retirada oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, da Ordem dos Advogados, da parte contrária ou do patrono nomeado (artigo 8.º, n.º 2).
Da conformação legal do procedimento previsto no âmbito do regime especial de assistência e patrocínio judiciário aos bombeiros, resulta clara a atribuição ao Ministério Público de competência para: i) controlar liminarmente a regularidade formal do pedido e, em caso de incompletude ou insuficiência, suscitar o mecanismo estabelecido para a sua regularização (artigo 4.º, n.º s 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro.); ii) conceder ou denegar a protecção jurídica requerida e, quando se trate da nomeação de patrono, providenciar, no primeiro caso, pela respectiva efectivação (artigos 6.º, e 7º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro); iii) cancelamento da protecção jurídica já concedida (artigo 8º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro.
6. Estabelece o artigo 219º, n.º 1 da Constituição que compete ao Ministério Público “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.
Apesar do grau de densificação relativamente escasso das funções atribuídas ao Ministério Público e do considerável espaço de livre conformação assim concedido ao legislador ordinário, o texto constitucional não deixou, todavia, de sujeitar a uma qualificada exigência o processo legislativo tendente a concretizar e definir a precisa dimensão das competências daquela magistratura, incluindo na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a «organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados» (artigo 165.º, n.º 1, alínea p)).
Tal reserva, embora se situe no “nível mais exigente” caracterizado pelo facto de “toda a regulamentação legislativa da matéria” – e não apenas o seu regime geral ou as bases gerais do regime jurídico respectivo – se encontrar “reservada à AR” (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 4ª Edição, V.II, pg. 325), não vai, porém, ao ponto de, conforme se concluiu no Acórdão n.º 329/89 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 141, de 22 de Junho de 1989), gerar como consequência a de que “deva ter-se por excluída a possibilidade de o Governo emitir sem autorização parlamentar toda e qualquer norma que afecte ou contenda – mesmo que só em aspectos secundários ou de pormenor, ou então só de maneira indirecta e consequencial – com a estruturação e ordenação do Ministério Público ou com o quadro de funções ou faculdades que lhe são legalmente cometidas …)”.
Ocupando-se da determinação do sentido e alcance da reserva parlamentar respeitante à definição da “competência” do Ministério Público, o referido Acórdão seguiu um critério filiado na distinção “entre as intervenções legislativas directamente votadas àquela definição e determinação e as que, visando outro objectivo e inscrevendo-se num outro domínio de regulamentação (nomeadamente o da regulamentação processual), todavia, acabam por interferir apenas indirecta, acessória e necessariamente com o quadro ou a distribuição legal das incumbências e faculdades cometidas ou atribuídas ao Ministério Público e aos seus agentes”, concluindo que só as primeiras se incluem no âmbito da reserva do actual artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição, por só essas deverem «indiscutivelmente qualificar-se como “de competência”», e não já também as segundas, que «não merecem aquela qualificação, mas uma outra (v. g. a de puras normas “de processo”)».
Influenciado pelo “nível ou grau de definição, determinação ou concretização da competência do Ministério Público e respectivos agentes”, o critério preconizado no Acórdão n.º 329/89 – de resto inteiramente secundado no Acórdão n.º 115/95 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Volume 30, pág. 671 e ss.) – implica que, tal como vem configurada pelo requerente, a questão de constitucionalidade suscitada nos presente autos comece por inscrever-se no domínio da relação entre as normas impugnadas, singular e conjuntamente consideradas, e aquelas que, à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, predefiniam no ordenamento jurídico as competências cometidas ao Ministério Público.
Tratar-se-á concretamente de verificar se, através das normas impugnadas, o Governo procedeu a uma ampliação inovadora do âmbito que às competências do Ministério Público é fixado quer pelo respectivo Estatuto – na versão aprovada pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, e alterada pelas Leis n.º 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, 52/2008, de 28 de Agosto e 37/2009, de 20 de Julho, porque contemporânea da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro –, quer pelo regime geral de acesso ao direito e aos tribunais, aprovado pela Lei n.º 34/2004, e alterado pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto.
Apenas no caso de se concluir pelo carácter inovador das normas impugnadas se estará perante uma hipótese de violação da reserva de competência e, consequentemente, da necessidade de verificar se o Governo poderia ter procedido à respectiva emanação através de decreto-lei não precedido de autorização legislativa.
7. Concretizando o preceito que define o estatuto constitucional do Ministério Público (artigo 219º da Constituição), o respectivo Estatuto, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, e alterado pelas Leis n.º 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, 52/2008, de 28 de Agosto, e 37/2009, de 20 de Julho, estabelece o quadro normativo essencial da estrutura organizatória e funcional daquela magistratura, bem como do regime estatutário dos respectivos magistrados.
No que diz respeito à competência, o mencionado diploma legal estabelece, no seu artigo 3.º, n.º 1, que compete especialmente ao Ministério Público: a) Representar os Estado, as regiões autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta; b) Participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania; c) Exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade; d) Exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social; e) Assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses colectivos e difusos; f) Defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis; g) Promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade; h) Dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades; i) Promover e realizar acções de prevenção criminal; j) Fiscalizar a constitucionalidade dos actos normativos; l) Intervir nos processos de falência e de insolvência e em todos os que envolvam interesse público; m) Exercer funções consultivas, nos termos desta lei; n) Fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal; e o) Recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de defraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa.
A par destas competências tipificadas, o referido artigo contém ainda uma cláusula geral aberta através da qual comete ao Ministério Público o exercício das “demais funções conferidas por lei” (alínea p)).
Considerada a matéria sob que versa o regime especial de assistência e patrocínio judiciário aos bombeiros estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, torna-se evidente que as competências aí atribuídas ao Ministério Público – singular ou globalmente consideradas – não são materialmente relacionáveis com qualquer uma daquelas que se encontram tipificadas nas alíneas a) a o) do n.º 1 do artigo 3º do respectivo Estatuto.
Não sendo reconduzíveis ao âmbito de qualquer das funções especificadas naquelas alíneas, tais competências apenas poderão considerar-se conformes ao quadro funcional definido no Estatuto do Ministério Público na hipótese de serem qualificáveis como concretizações, variações ou meras replicações de funções já conferidas à respectiva magistratura por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei devidamente autorizado (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição).
8. É sabido que o regime jurídico de acesso ao direito e aos tribunais foi objecto de importantes alterações na sequência da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, compreendendo-se entre as mais relevantes aquela que consistiu na atribuição aos serviços da segurança social da competência, até então cometida aos tribunais, para apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário (artigo 21.º, n.º 1).
Adaptando-se a esta nova regra de competência, o procedimento previsto para a tramitação do pedido de concessão do apoio judiciário ficou supletivamente sujeito às disposições do Código do Procedimento Administrativo (artigo 22.º), passando o pedido a ser apresentado nos serviços de atendimento ao público dos serviços de segurança social (artigo 23.º, n.º 1).
No âmbito deste novo regime, ao Ministério Público foi atribuída competência para requerer a concessão do apoio judiciário em representação do interessado (artigo 18.º, n.º 1, alínea b)), bem como a sua retirada em caso de verificação de algum dos factos geradores de tal efeito (artigo 37.º, n.ºs 1 e 3).
No que diz respeito à intervenção do Ministério Público no âmbito do regime jurídico de acesso ao direito e aos tribunais, a modelação seguida na Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, foi confirmada, no essencial, pela Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, subsistindo estruturada a partir da regra de atribuição da competência para apreciação do pedido de protecção jurídica (artigo 20.º, n.º 1).
Assim, o Ministério Público manteve a legitimidade para requerer a protecção jurídica em representação do interessado (artigo 19º, alínea b)), bem como a faculdade de requerer a respectiva retirada, quer na sua totalidade, quer relativamente a certa(s) modalidade(s), no caso de verificação de alguma das circunstâncias susceptíveis de produzirem tal efeito (artigo 10.º, n.ºs 1 e 3).
Embora a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, tivesse previsto, a par da confirmação da regra de atribuição da competência decisória aos serviços da segurança social, a hipótese excepcional de estes, perante um determinado caso de decisão complexa, poderem entender não dever aplicar o resultado da apreciação efectuada de acordo com os critérios especialmente previstos para o efeito e remeter o pedido para apreciação por uma comissão constituída por um magistrado designado pelo Conselho Superior da Magistratura, um magistrado do Ministério Público designado pelo Conselho Superior do Ministério Público, um advogado designado pela Ordem dos Advogados e um representante do Ministério da Justiça (artigo 20.º, n.º 2), a Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, veio pôr termo a tal mecanismo excepcional, mantendo sem alterações a competência dos serviços da segurança social para a apreciação do pedido (artigo 20.º).
O único aspecto em que, relativamente ao regime definido na Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, as competências do Ministério Público se poderão dizer ampliadas pela Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na versão conferida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, diz respeito à atribuição expressa de legitimidade para a instauração de acção para cobrança das importâncias em causa no caso de se verificar que o requerente de protecção jurídica possuía, à data do pedido, ou adquiriu no decurso da causa ou no prazo de quatro anos após o seu termo, meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento houvesse sido declarado isento (artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e artigo 13º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto).
9. Conforme se retira da caracterização do papel atribuído ao Ministério Público no âmbito do regime geral de acesso ao direito e aos tribunais segundo a modelação resultante da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, o mesmo esgota-se na faculdade de requerer o benefício do apoio judiciário ou a sua retirada, bem como na de promover a reposição dos valores indevidamente suportados através da propositura da correspondente acção.
Do ponto de vista da respectiva natureza, as competências atribuídas são, portanto, apenas aquelas que tipicamente se compreendem na “função activa d(e) iniciativa ou promoção processual” constitucional e estatutariamente fixada à magistratura do Ministério Público (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, pág. 208).
Ao atribuírem ao Ministério Público o poder de decidir sobre a concessão da protecção jurídica requerida, bem como sobre a respectiva retirada, as normas constantes dos artigos 6.º e 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, não se inscrevem já nesta matriz.
Pelo contrário: conferindo ao Ministério Público a faculdade de decidir sobre o pedido de assistência jurídica, assim como a de proceder ao cancelamento da protecção concedida, tais normas transmudam num certo sentido a própria natureza típica das funções que o ordenamento jurídico fixa àquela magistratura, que assim abandona aqui a sua configuração de “magistratura de acção” para converter-se numa “magistratura de decisão” pela via da titularidade do poder de reconhecimento ou negação dos pressupostos de atribuição ou cancelamento de um direito.
Deste ponto de vista, as normas constantes dos artigos 6.º e 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, não podem deixar de considerar-se estruturalmente inovatórias e ampliativas das funções cometidas ao Ministério Público, quer no âmbito do respectivo Estatuto, quer no âmbito do regime geral de acesso ao direito e aos tribunais, aprovado pela Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, e alterado pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto.
As competências atribuídas pelas demais normas impugnadas – que incluem o juízo liminar de controlo formal do pedido e o accionamento do mecanismo previsto para a respectiva regularização (artigo 4.º, n.º s 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro), bem como a efectivação da protecção jurídica concedida quando esta o haja sido na modalidade de nomeação de patrono (artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro) – apresentam-se, na economia do regime jurídico de assistência a patrocínio judiciário aos bombeiros, coadjuvantes daquela competência decisória principal, pelo que, não podendo subsistir de modo autónomo e independente, serão naturalmente afectadas pelos efeitos a retirar do reconhecimento daquela inovatória ampliação.
10. No sentido em que se inscrevem no domínio da regulamentação do regime especial de assistência e patrocínio judiciário aos bombeiros, todas as normas impugnadas – principais e acessórias – têm manifesto carácter procedimental.
Do ponto de vista das competências que atribuem ao Ministério Público, esse carácter não é, todavia, meramente procedimental.
Não se trata, com efeito, de simples modelações, variações ou conformações de uma competência no essencial pré-atribuída ou de uma interferência indirecta e lateral nesta em função das particularidades do regime jurídico em causa, mas da fixação à magistratura do Ministério Público de uma competência estrutural e materialmente nova e, como tal, insusceptível de reconduzir-se ao quadro funcional definido no respectivo Estatuto e/ou na lei que estabelece o regime geral de acesso ao direito e aos tribunais.
Na situação em análise, torna-se, assim, manifesto que as normas impugnadas – as constantes dos artigos 6.º e 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, e, por arrastamento, as incluídas nos artigos 4.º, n.º s 1 e 3, e artigo 7º, n.º 1, do mesmo diploma legal – têm o sentido de alargar, de forma directa e autónoma, o núcleo de competências do Ministério Público, tal como este se encontrava definido no quadro legislativo na altura em vigor.
As referidas normas deveriam, portanto, constar necessariamente de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei emitido ao abrigo de uma lei de autorização – legislativa (cfr. artigos 165º, n.º 1, alínea p), e 198º, n.º 1, alínea b), da Constituição) e, não, como se verifica suceder, de decreto-lei aprovado pelo Governo ao abrigo do disposto no artigo 198º, n.º 1, alínea a), da Constituição, isto é, no exercício da competência para 'fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República'.
Deverá concluir-se, portanto, pela inconstitucionalidade orgânica das normas constantes dos n.ºs 1 e 3 do artigo 4.º, do artigo 6.º, do n.º 1 do artigo 7.º e do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro.
IV – Decisão
11. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 1 e 3 do artigo 4º, do artigo 6, do n.º 1 do artigo 7º e do n.º 2 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 286/2009, de 8 de Outubro, por violação dos artigos 165º n.º 1 alínea p) e 198º n.º 1 alínea b) da Constituição.
Lisboa, 22 de Novembro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Ana Maria Guerra Martins – José Borges Soeiro – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – João Cura Mariano – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.