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Processo n.º 526/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Leiria, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido IEP – Instituto de Estradas de Portugal, foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade da decisão daquele Tribunal que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações, uma vez que «condiciona a atribuição de uma indemnização apenas às utilidades actuais que estavam dadas à parcela onerada e não tendo em conta as suas potencialidades edificativas à data da declaração de utilidade pública», por violação dos princípios da justa indemnização e da igualdade (artigos 62.º, n.º 2, e 13,º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, adiante CRP).
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1º
A norma constante do n.º 2 do artigo 8.º do Código das Expropriações de 1999, interpretada no sentido de que não confere direito a indemnização a constituição de uma servidão legal non aedificandi, sobre prédio não expropriado (total ou parcialmente), mas, simplesmente, marginado por uma auto-estrada, desde que veja sacrificadas as mesmas possibilidades de aproveitamento económico normal, afronta os princípios constantes dos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
2º
Na verdade, para efeitos indemnizatórios, não se vê razão para tratar diversamente, a situação em que a servidão incide sobre a parte sobrante de prédio expropriado, da situação em que a mesma servidão (decorrente da mesma disposição legal, com idêntico conteúdo, estabelecida em benefício da mesma coisa pública dominante e implicando o mesmo efeito gravoso na parcela onerada) é constituída, porque o prédio em causa passa a ser marginado por uma auto-estrada.
3º
Isto porque, do ponto de vista dos prejuízos decorrentes da servidão (limitação das faculdades inerentes ao direito de propriedade, igualdade de contribuição para os encargos públicos, gravidade das consequências do ónus no aproveitamento económico do prédio), as situações são, em tudo, equiparáveis.
4º
Deste modo, tal como nos Acórdãos anteriores o Tribunal Constitucional já reconheceu a desconformidade constitucional da norma aqui em causa, interpretada no sentido de que não confere direito a indemnização a constituição da servidão non aedificandi de protecção a uma auto-estrada que incida sobre a totalidade da parte sobrante de um prédio expropriado, por razões de justiça e de igualdade, deve ser reconhecida a desconformidade constitucional da mesma norma, quando interpretada no sentido de excluir o direito de indemnização para a servidão resultante directamente da lei e à margem de qualquer processo expropriativo.
5º
Termos em que deverá ser negado provimento ao presente recurso.»
3. O recorrido IEP – Instituto de Estradas de Portugal não contra-alegou.
4. Notificados para contra-alegarem, pelas razões vertidas no despacho de fls. 602, os recorridos A. e B. apresentaram contra-alegações, onde concluem o seguinte:
«1º O n.º 2 do art.º 8 do Código das Expropriações do Código das Expropriações de 1999, terá de ser interpretado no sentido de que confere direito à indemnização a constituição de uma servidão legal non aedificandi decorrente de uma obra pública, sobre um prédio relativamente ao qual não foi constituído qualquer processo expropriativo, desde que vejam sacrificadas as mesmas possibilidades de aproveitamento económico normal, de um prédio que tenha sido sujeito a declaração de utilidade pública, com a constituição do respectivo processo expropriativo.
2º Dois prédios vizinhos, com iguais características, com idêntica potencialidade edificativa, têm tratamento diferenciado na valoração do principio da justa indemnização, por igual diminuição efectiva das utilidades de ambos prédios, apenas porquanto num dos prédios foi constituído um processo expropriativo e noutro não.
3º O princípio da igualdade e da justa indemnização, apenas serão salvaguardados, se o Tribunal Constitucional ordenar a interpretação do art.º 8.º n.º 2 do Código das Expropriações, no sentido que confere direito à indemnização a constituição de uma servidão non aedificandi resultante de uma obra pública, independentemente da constituição de um processo expropriativo próprio pela entidade expropriante.
4º O Tribunal Judicial de Leiria deverá aplicar o art.º 8, n.º 2 do Código das Expropriações de 1999, no sentido que confere aos Recorrentes direito à justa indemnização pelos prejuízos causados, pela constituição de uma servidão non aedificandi, em 2844 m2 dos quais são proprietários, apesar de não ter sido constituído um processo expropriativo próprio.
5º Que a acção seja julgada procedente e consequentemente ser a Ré condenada no pedido, porque apenas assim serão salvaguardados os princípios constitucionais, previstos nos art.ºs 62, n.º 2 e 13.º n.º 1 da C.R.P.»
5. O presente recurso de constitucionalidade emerge de acção declarativa de condenação, intentada por A. e B. contra o ICOR – Instituto para a Conservação Rodoviária, integrado no IEP, Instituto das Estradas de Portugal -, na qual peticionam a atribuição de uma indemnização pela constituição de uma servidão non aedificandi numa parcela do prédio de que são proprietários, em consequência da construção de uma via de comunicação (auto-estrada A8), que originou a expropriação de um prédio contíguo.
A parcela em causa tem uma área de 2.844 m2 e integra-se num prédio composto por um artigo urbano e dois artigos rústicos, com a área coberta de 700 m2 e descoberta de 302.700 m2. Na referida parcela, não é possível construir instalações de carácter industrial e, numa área de 340 m2, não é possível a construção de edifícios. Poderá apenas ser ocupada com áreas verdes, espaços de estacionamento ou de circulação. Inseria-se em “espaço urbano terciário” e foi classificada, anteriormente à constituição da servidão, como “solo apto para construção”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
6. O artigo 8.º do Código das Expropriações (cuja redacção corresponde à originalmente aprovada pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro), reza assim:
«Artigo 8.º
Constituição de servidões administrativas
1 - Podem constituir-se sobre imóveis as servidões necessárias à realização de fins de interesse público.
2 - As servidões, resultantes ou não de expropriações, dão lugar a indemnização quando:
a) Inviabilizem a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado globalmente;
b) Inviabilizem qualquer utilização do bem, nos casos em que estes não estejam a ser utilizados; ou
c) Anulem completamente o seu valor económico.
3 - À constituição das servidões e à determinação da indemnização aplica-se o disposto no presente Código com as necessárias adaptações, salvo o disposto em legislação especial.»
A sentença recorrida recusou a aplicação da norma do n.º 2 deste preceito legal, porque «condiciona a atribuição de uma indemnização apenas às utilidades actuais que eram dadas à parcela onerada e não tendo em conta as suas potencialidades edificativas à data da declaração de utilidade pública», por violação dos princípios da justa indemnização e da igualdade (artigos 62.º, n.º 2, e 13,º, n.º 1, da Constituição).
Lê-se, a este respeito, na decisão recorrida:
«Com efeito a limitação do direito à atribuição de uma indemnização, nos termos em que é feita no art.º 8.º n.º 2 do CExp, trata de forma desigual o proprietário de um prédio simplesmente onerado com uma servidão, daquele outro proprietário que vê o seu prédio totalmente expropriado, apesar dos efeitos para os respectivos proprietários serem os mesmos. Com efeito, enquanto a indemnização deste último proprietário é calculada tendo em conta a potencial edificabilidade do terreno a expropriar (…), o proprietário de um prédio onerado com a servidão apenas é indemnizado em função da utilidade que era dada ao prédio.
Concluímos assim que se o proprietário de um prédio expropriado não estivesse a dar qualquer utilidade àquele, seria sempre indemnizado em função da capacidade edificativa do prédio, o que não sucederia com o proprietário do prédio onerado com uma servidão que, nesse caso, legalmente não teria direito a qualquer contrapartida.»
7. Constitui objecto do presente recurso a norma do artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações (aprovado pela Lei n.º 168/1999, de 18 de Setembro), na medida em que restringe a atribuição de uma indemnização às utilidades actuais dadas à parcela onerada com a servidão non aedificandi, não tendo em conta a potencialidade edificativa adveniente à classificação do solo, anterior à constituição da servidão, como solo apto para construção.
Por força desta norma, apenas é susceptível de ressarcimento a perda de uma utilidade actual, efectivamente extraída do imóvel onerado, à data da constituição da servidão. Na delimitação das situações indemnizáveis, apenas é contabilizado o aproveitamento económico já concretizado, sendo desconsiderado o valor resultante da possibilidade de aproveitamento, no futuro, da aptidão edificativa.
Esta solução restritiva contrasta com a estabelecida em relação à expropriação, por aplicação do critério constitucional da “justa indemnização” (artigo 62.º, n.º 2, da CRP). No quadro do regime específico da expropriação dos “solos aptos para construção”, o ressarcimento abrange, neste caso, as potencialidades edificativas próximas, a mais-valia que para o solo resulta por lhe ser reconhecida essa aptidão.
A sentença recorrida foi sensível a esta disparidade de tratamento, pois pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade da norma em causa por considerar, além do mais, que «a limitação do direito à atribuição de uma indemnização, nos termos que é feita no art. 8.º, n.º 2, do CExp, trata de forma desigual o proprietário de um prédio simplesmente onerado com uma servidão, daquele outro proprietário que vê o seu prédio totalmente expropriado, apesar dos efeitos para os respectivos proprietários serem os mesmos.»
Este ponto de vista valorativo foi secundado pelo Ministério Público, nas alegações apresentadas neste Tribunal Constitucional, ainda que deslocando o ponto de referência comparativo para a situação específica em que a servidão incide sobre parte sobrante de prédio expropriado. Salienta-se, nessas alegações, além do mais, que não há razão para tratar diversamente essa situação e a presente, em que o mesmo tipo de servidão (de protecção a auto-estrada) é constituída sobre parte de prédio não objecto de expropriação, pois os prejuízos inerentes a uma e outra são em tudo equiparáveis.
8. A actual redacção do artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações de 1999 difere substancialmente da constante da versão de 1991, já que nesta se prescrevia que “as servidões fixadas directamente na lei não dão direito a indemnização”.
Sobre este regime anteriormente vigente, teve o Tribunal Constitucional oportunidade de formar um juízo de inconstitucionalidade, que incidiu sobre a dimensão normativa referente às situações em que a servidão non aedificandi se constituiu na sequência de um processo expropriativo, ou seja, em que a servidão incidiu sobre uma parte sobrante de um prédio, na sequência da respectiva expropriação parcial.
Assim, no Acórdão n.º 331/99 (que culminou a orientação jurisprudencial já seguida nos Acórdãos n.ºs 193/98, 614/98, 740/98, 41/99 e 243/99 e, antes disso, no Acórdão n.º 262/93, que incidiu sobre norma equivalente, anteriormente constante do artigo 3.º, n.º 2, do Código de Expropriações de 1976), o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade «da norma constante do artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações de 1991 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro), na medida em que não permite que haja indemnização pelas servidões fixadas directamente pela lei que incidam sobre parte sobrante do prédio expropriado, no âmbito de expropriação parcial, desde que a mesma parcela já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, capacidade edificativa».
A delimitação da dimensão normativa julgada inconstitucional motivou dois votos de vencido no Acórdão n.º 331/99 (um deles, reiterando discordância já expressa nos acórdãos anteriores), por se considerar, em síntese, que não havia fundamento para seccionar a norma em termos de distinguir as situações acima referidas daquelas em que a lei impõe uma servidão non aedificandi a um prédio não expropriado (contudo, as duas declarações de voto apostas ao Acórdão n.º 331/99 divergem quanto ao juízo a formular sobre a constitucionalidade da norma, nesta dimensão mais ampla).
Afastando-se do regime anterior, o actual artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações de 1999 trata unitariamente o direito de indemnização por servidões administrativas, quer tenham sido constituídas na sequência de um processo expropriativo, quer dele sejam independentes; assim como deixou de fazer depender a atribuição do direito a indemnização do modo imediato de constituição da mesma (servidão resultante directamente da lei ou imposta por acto administrativo), estipulando expressamente que a constituição de servidão pode dar lugar a indemnização, quer resulte de expropriação, quer, como é o caso dos presentes autos, não resulte de uma expropriação.
Como refere Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, I, 4.ª ed., Almedina, 2008, 334, «[R]resulta da nova redacção do n.º 2 do artigo 8.º do Código das Expropriações que o problema da indemnização das “servidões administrativas” deixou – e bem – de estar dependente da forma ou da origem da sua constituição (lei ou acto administrativo), passando a estar ligado à índole ou à natureza dos prejuízos delas emergentes.»
Na verdade, o n.º 2 do artigo 8.º veio limitar a indemnização das servidões administrativas aos seguintes três casos: i) quando a servidão anule completamente o valor económico do prédio (alínea c) do n.º 2 do artigo 8.º); quando inviabilize qualquer utilização do bem, nos casos em que estes estejam a ser utilizados (alínea b) do referido n.º 2); ou quando inviabilize a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado globalmente (alínea a) do n.º 2).
Por isso, apesar das alterações citadas, manteve-se o problema de constitucionalidade retratado nos acórdãos citados, pois a previsão do n.º 2 do artigo 8.º continua a não abranger uma servidão non aedificandi, como a dos autos, na medida em que esta não inviabiliza uma “qualquer utilização do bem”, nem traduz um “sacrifício das utilidades actuais” (uma vez que o proprietário não construiu na parcela em causa antes de constituída a servidão).
A subsistência do problema foi salientada no Acórdão n.º 612/2009 que, pronunciando-se sobre a norma do n.º 2 do artigo 8.º, na sua redacção actual, a julgou inconstitucional quando «interpretada no sentido de que não confere direito a indemnização a constituição de uma servidão non aedificandi de protecção a uma auto-estrada que incida sobre a totalidade da parte sobrante de um prédio expropriado, quando essa parcela fosse classificável como “solo apto para construção” anteriormente à constituição da servidão». Neste aresto, o relator apôs declaração de voto (na linha, aliás, das declarações de voto anteriormente referidas), manifestando discordância quanto à fundamentação adoptada, «na parte em que considera que a confluência, sobre o mesmo prédio, da imposição da servidão administrativa e da expropriação parcial constitui uma razão específica para o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou».
9. Nos presentes autos, está igualmente em causa a constituição de uma servidão non aedificandi numa parcela de terreno com anterior aptidão edificante. Contudo, os fundamentos subjacentes ao juízo de inconstitucionalidade formulado na jurisprudência acima mencionada não podem ser transpostos para o caso em apreço.
Na verdade, a ratio desse juízo de inconstitucionalidade assentou, como expressamente se refere no Acórdão n.º 331/99, numa «razão específica [que] aponta, no tipo de situações agora consideradas, para, por razões de justiça e de igualdade, tornar concretamente exigível uma indemnização quando a constituição da servidão incidente sobre a parte sobrante do prédio surgir na sequência de expropriação de parte do mesmo prédio. Essa razão consiste em que, nesse caso, à extinção do direito de propriedade decorrente da mesma expropriação acresce uma essencial diminuição das faculdades do direito de propriedade quanto à parte sobrante.» Como também se salientou no mesmo Acórdão, «a precedência da expropriação cria um efeito global na função económica da propriedade, que, incidindo a sujeição sobre a parte sobrante, faz decorrer histórica e funcionalmente da expropriação uma redução global das utilizadas do bem que é objecto do direito de propriedade». Na mesma linha, reafirmou-se no Acórdão n.º 612/2009 que «estamos perante um encargo que incide especialmente sobre os cidadãos onerados, que implica o sacrifício total e permanente de uma faculdade actual inerente à propriedade da coisa (a aptidão edificativa que a parcela sobrante já detinha como solo classificado como apto para construção segundo os factores objectivos relevantes à luz do artigo 25.º do Código das Expropriações) e que é imposto por razões de interesse público. Justifica-se que à luz do princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos o proprietário expropriado e simultaneamente onerado seja indemnizado da perda de valor correspondente.»
Ora, no caso vertente não se verifica esta razão específica que determinou o juízo de inconstitucionalidade. O problema que aqui se coloca é precisamente aquele para que alertaram os votos de vencido apostos naqueles arestos. Neles se salientou que «não há certamente razão para distinguir entre a situação referida e uma outra, por exemplo, em que o prédio, sem ter sido objecto de qualquer expropriação para a abertura de uma nova via de comunicação passa, todavia, a ser marginado por esta, e a ficar onerado, consequentemente, com uma correspondente servidão non aedificandi», concluindo-se que «o princípio da igualdade impõe um tratamento idêntico dos dois casos, quanto ao reconhecimento ou não de um direito a indemnização» (declarações de voto apostas nos Acórdão n.ºs 262/93 e 331/99). Mais se afirmou que a incidência da servidão non aedificandi sobre solo anteriormente classificado como “apto para construção” constitui uma «limitação singular às possibilidades objectivas de uso do solo preexistentes que comporta uma restrição significativa da sua utilização (a totalidade da aptidão edificativa actual) de efeitos equivalentes a uma expropriação, porque sacrifica um factor de valorização do solo que seria necessariamente levado em conta no cálculo da indemnização numa expropriação (da titularidade) do mesmo bem, em igualdade de circunstâncias. Se, nos casos de expropriação total, a aptidão edificativa actual funciona como um dos factores a atender no cálculo da indemnização a atribuir ao expropriado a título de ressarcimento pelo prejuízo decorrente da expropriação, também naqueles casos em que a Administração impõe a certos particulares vínculos que diminuem substancialmente a utilitas rei, a igualdade exige que se reconheça ao titular afectado o direito à “justa indemnização”» (declaração de voto aposta no citado Acórdão n.º 612/2009).
10. O problema em análise – com o qual, como vimos, o Tribunal é confrontado pela primeira vez – é, pois, o de saber se é constitucionalmente imposto que uma servidão non aedificandi, constituída para protecção de uma estrada e sobre prédio anteriormente classificado como apto para construção, seja acompanhada de indemnização.
A resposta à questão de constitucionalidade em nada é facilitada pelo tratamento pouco ordenado que – no plano infraconstitucional – merece a figura da servidão administrativa e, no que aqui interessa, a modalidade específica da servidão non aedificandi.
A servidão administrativa (ou servidão de direito público) não obedece a uma disciplina jurídica comum, antes se encontra dispersa por uma profusão de regimes particulares, aplicáveis a cada uma das servidões administrativas legalmente consagradas. Da mesma forma, existem vários tipos de servidão non aedificandi, com regimes legais específicos (para além das servidões non aedificandi previstas na legislação sobre as estradas e auto-estradas, vejam-se, entre outras, as servidões das linhas férreas, as servidões de uso público sobre parcelas privadas de leitos e margens de águas públicas, as servidões militares, as aeronáuticas ou as incluídas em zonas especiais de protecção de imóveis classificados).
Embora a doutrina tenda a autonomizá-la, a figura da servidão administrativa é difícil de distinguir de certas figuras afins.
Designadamente, a servidão administrativa está próxima das denominadas “restrições de utilidade pública” que também abrangem proibições, limitações e condicionamentos à ocupação, uso e transformação do solo (incluindo a construção), por motivos de interesse público, decorrentes de normas urbanísticas (v.g., as resultantes do regime da Reserva Agrícola Nacional ou da Reserva Ecológica Nacional). Ambas traduzem limitações impostas sobre um prédio com vista à satisfação de interesses públicos, mas o elemento distintivo pode encontrar-se na existência de um praedium dominans do lado activo da relação de servidão, sendo essa necessária relação entre fundos o mínimo denominador comum entre servidões de interesse público e servidões de direito privado (neste sentido, Bernardo Azevedo, Servidão de Direito Público, Contributo para o seu estudo, Coimbra Editora, 2005, 75 e s., em especial, 85-90). Não sendo fácil distinguir «onde acaba a mera delimitação da densidade do direito de propriedade e começa a subtracção de faculdades ao titular do prédio serviente com o correspectivo ingresso na esfera de gozo do proprietário do fundo dominante» (idem, 88), há quem também aponte como nota distintiva o facto de, ao contrário das restrições de utilidade pública, a servidão administrativa dar “forçosamente lugar a uma indemnização” (ibidem, 89-90 e doutrina estrangeira citada em n. 52).
Outra fronteira difícil de traçar é entre servidão administrativa e expropriação por utilidade pública. Alguns autores adoptam uma concepção ampla de expropriação, de inspiração alemã, nela incluindo a “expropriação clássica”, traduzida no acto de autoridade que visa a aquisição e transferência da propriedade, e a “expropriação de sacrifício” ou “substancial”, consubstanciada na destruição ou afectação essencial de uma posição jurídica garantida como propriedade pela Constituição, ou seja, numa modificação especial e grave na utilitas do direito de propriedade, na qual incluem as servidões administrativas que dão lugar a indemnização e as denominadas “expropriações do plano”, de que são exemplo as previstas nos artigos 18.º da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (LBPOTU) e 143.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) (vd. Alves Correia, ob. cit., 157-159, e Fernanda Paula Oliveira, As medidas preventivas dos planos municipais de ordenamento do território – alguns aspectos do seu regime jurídico, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia Iuridica, 32, Coimbra Editora, 216 e s.). Nas palavras de Maria Lúcia Amaral, «o conceito constitucional de expropriação vale para todos os sacrifícios patrimoniais privados que sejam graves e especiais, quer eles se traduzam em alterações quanto à titularidade de um direito ou quer impliquem meras restrições ao seu exercício» (Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, 1998, 576).
Em sentido contrário, outros autores apelam à utilidade do conceito próprio (restrito) de expropriação, mesmo no plano constitucional (Oliveira Ascensão, “A jurisprudência constitucional portuguesa sobre propriedade privada”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2009, 397-417, 415), e pugnam por uma concepção de expropriação que consiste na «eliminação de um objecto do direito fundamental de propriedade e não na restrição deste último» (Miguel Nogueira Brito, A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Almedina, 2007, 993 e s., em especial, 1016 e s.).
Defendendo o conceito de servidão administrativa como «um aliud e não apenas um minus em relação à expropriação por utilidade pública», há quem chame a atenção para a necessidade de criar um espaço próprio destinado a integrar os institutos, como a servidão, que se intercalam entre a expropriação de sacrifício (aqui entendidas como intervenções que reduzem o direito de propriedade a um nudum ius) e as limitações sociais ao direito de propriedade (Bernardo Azevedo, ob. cit., 34-35).
11. Ainda no plano infraconstitucional, suscita também problemas a colocação sistemática mais adequada do dever de indemnização por parte da Administração. Problemas que são agravados pelo facto de não existir um regime indemnizatório comum (atenta a referida dispersão de regimes), bem como pelo facto de os critérios fixados no n.º 2 do artigo 8.º não serem os únicos aplicáveis para identificar as servidões que dão direito a compensação.
De facto, a par das três situações aí enunciadas, existem casos particulares em que a lei prevê expressamente o direito a indemnização pela constituição de determinada servidão e indica o critério de cálculo do quantum indemnizatório e casos em que prevê, como forma de indemnização, a possibilidade de o proprietário requerer a expropriação do prédio onerado com a servidão (por exemplo, nos casos de servidão non aedificandi incluída em zona especial de protecção de imóveis classificados como bens culturais – artigo 50.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro; ou integradas em zonas de protecção das captações de águas – artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 382/99, de 22 de Setembro, e artigo 37.º, n.º 5, da Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro).
Por outro lado, a solução hoje consagrada no artigo 16.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (adiante RRCEE), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho, contempla, em capítulo autónomo, separado das previsões de responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função administrativa, da função jurisdicional, e da função político-legislativa, a chamada “indemnização pelo sacrifício”. Reza assim a citada norma:
«O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado».
Este tratamento sistemático, dentro do corpo legislativo do RRCEE, parece ir ao encontro de várias vozes que, na doutrina nacional, autonomizam o mecanismo da compensação pelo sacrifício do instituto da responsabilidade civil (assim João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 10.ª ed., Âncora Editores, 342-343; Carla Amado Gomes, ob. cit.; Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos, Responsabilidade Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, III, Dom Quixote, 2008, 57). Numa perspectiva mais tradicional, a indemnização pelo sacrifício é reconduzida ao instituto da responsabilidade, na modalidade de responsabilidade civil por actos lícitos (assim Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, 2.ª ed., Almedina, 2011, 743; e, embora expressando dúvidas, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, 2003, 508, que “propende” para incluir a responsabilidade da administração por actos lícitos no âmbito de protecção do artigo 22.º da Constituição).
Contrariando uma interpretação severamente restritiva já proposta (cfr. Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos, Responsabilidade…, cit., 59, que limitam o campo de aplicação do artigo 16.º à “responsabilidade civil pelo sacrifício de bens pessoais”), não parece existir objecção de princípio a que o preceito, dados a sua localização sistemática e os termos amplos em que vêm formulados os seus pressupostos aplicativos, constitua suporte normativo adequado de «pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados» que não caibam noutras previsões legais, de fundamento e/ou recorte mais específico (como a que está subjacente ao caso em apreço).
Parece dominante, na verdade, a concepção doutrinal que só exclui do regime da indemnização pelo sacrifício “as situações que se encontram especialmente reguladas na lei”, como é o caso da requisição e da expropriação, que têm fundamento constitucional próprio, no princípio do pagamento da justa indemnização (artigo 62.º, n.º 2, da CRP), e regime indemnizatório fixado no Código das Expropriações, regime extensivo à constituição das servidões administrativas previstas no artigo 8.º deste Código (Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2011, 368; Maria da Glória Garcia, “A responsabilidade civil do Estado e das regiões autónomas pelo exercício da função político-legislativa e a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa”, Revista do CEJ, n.º 13, 2010, 305 s., 321; Carla Amado Gomes, “A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência”, a aguardar publicação nos Estudos em homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda). Por outro lado, não ficariam de fora os danos especiais e anormais decorrentes de actos legislativos não enquadráveis na previsão do artigo 15.º da RRCEE (A. ob. cit., 363, n. 662, e, embora manifestando reservas quanto à solução, Alves Correia, “A indemnização pelo sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance”, RLJ, ano 140.º, 143 s., 151).
Na mesma linha, o Supremo Tribunal Administrativo já salientou (designadamente no Acórdão de 23.11.2010, P. 0444/10), a propósito do antecedente artigo 9.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que a responsabilidade civil extracontratual por factos lícitos «só é aplicável quando apesar do sacrifício imposto a um particular, a lei não preveja os termos da sua reparação», apoiando-se no disposto no artigo 1.º daquele diploma (com teor idêntico ao actual artigo 1.º do RRCEE), segundo o qual, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público «rege-se pelo disposto no presente diploma, em tudo o que não esteja previsto em leis especiais».
12. Também não se mostra inequívoco o parâmetro constitucional a utilizar para dar resposta ao problema da indemnizabilidade das servidões administrativas (assim como de outras restrições ao direito de propriedade por razões de interesse público).
Há quem, para garantir o ressarcimento dos prejuízos decorrentes de servidões administrativas, procure uma credencial constitucional autónoma (assim evitando o alargamento do conceito de expropriação) e enuncie um “princípio da onerosidade da aquisição de direitos reais”, enquanto afloramento de um “direito geral à reparação de danos” autonomamente decorrente da regra do Estado de direito democrático, vertida no artigo 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição (cfr. Bernardo Azevedo, ob. cit., 45, n. 28).
A maioria da doutrina, contudo, parece inclinar-se para considerar o artigo 62.º da Constituição como a “disposição-chave” em matéria de “obrigação de indemnizar pelos danos causados licitamente na propriedade privada” (na expressão de Rui Medeiros in Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, 1263). Para quem perfilhe uma concepção ampla de expropriação, o fundamento dessa indemnização encontra-se nos princípios do Estado de direito democrático e da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos (artigos 2.º e 13.º da Constituição), mas também, na justa indemnização por expropriação (de sacrifício ou substancial), alojada no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição (Alves Correia, Manual..., cit., 337; Maria Lúcia Amaral, ob. cit., 561 e s., em especial, 575, n. 250). Quem faz corresponder o conceito constitucional de expropriação ao sentido clássico e “próprio” que lhe corresponde transfere o problema do âmbito do n.º 2 do artigo 62.º para o n.º 1 do mesmo preceito, ou identificando a figura da “determinação de conteúdo envolvendo um dever de compensação” que, tal como a expropriação, é «manifestação do princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos em resultado do sacrifício de direitos patrimoniais privados» (Miguel Nogueira de Brito, A justificação…, cit., 1009 e s., 1014); ou afirmando que «a garantia constitucional da propriedade impõe que esta não possa ser sacrificada sem indemnização, mesmo em casos em que formalmente a titularidade privada se mantém e não há, pois, tecnicamente expropriação» (Oliveira Ascensão, “A caducidade da expropriação no âmbito da Reforma Agrária”, Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações, INCM, 1989, 55-106, 64-65; e “A jurisprudência...”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional…, cit., 415).
Embora frisando que se ocupava apenas daqueles casos em que a servidão é constituída sobre parcela sobrante de terreno expropriado, ou seja, em que à sua imposição acrescia a expropriação da titularidade de outra parcela do (mesmo) bem onerado, a jurisprudência constitucional tem admitido que «a garantia da justa indemnização contida no n.º 2 do artigo 62.º não se limita aos actos ablativos da titularidade do bem (ou direito real) para prossecução do bem comum, abrangendo a perda de valor inerente à imposição de uma servidão de direito público que sacrifique uma das faculdades de gozo ou uso (utilitas rei) que a coisa anteriormente proporcionava (Acórdão n.º 612/2009 e demais arestos já citados).
Mas há que ver que a previsão do n.º 2 do artigo 62.º constitui um afloramento particular (embora de enorme significado) do princípio mais geral da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos. É esse o princípio-base, que está na raiz de todas as imposições constitucionais de ressarcimento de prejuízos sofridos pelos particulares por força de uma actividade no interesse público. Daí que, estando em causa a supressão, por força de uma servidão non aedificandi, de uma faculdade reconhecida, por classificação administrativa, como contida no direito de propriedade, o teste constitucional decisivo far-se-á, em última instância, por aplicação daquele princípio. Independentemente da concepção de que se parta, ele fornece, para lá de todas as dúvidas, um parâmetro seguro para ajuizar da conformidade constitucional da solução.
13. Não sofre hoje contestação que dos princípios do Estado de direito democrático e da igualdade (na vertente da igualdade perante os encargos públicos) decorre uma exigência constitucional de indemnizar, não apenas as supressões do direito de propriedade, mas também certas limitações aos usos e faculdades nele incluídas.
De há muito que o Tribunal fez sua esta ideia tuteladora. Pode ler-se, por exemplo, no Acórdão n.º 341/86 que, «mesmo naqueles casos em que a Administração impõe aos particulares certos vínculos que, sem subtraírem o bem objecto do vínculo, lhe diminuem, contudo, a utilitas rei, se deverá configurar o direito a uma indemnização, ao menos quando verificados certos pressupostos».
Relembre-se, a este respeito, que o Código das Expropriações de 1991 bastava-se com uma “diminuição efectiva do valor ou do rendimento dos prédios servientes” para que houvesse lugar a indemnização pelas perdas ocasionadas pela sua imposição (restringida, é certo, às servidões administrativas resultantes de acto administrativo, sendo recusada a indemnizabilidade das servidões fixadas directamente na lei).
E hoje reconhece-se expressamente a necessidade de indemnizar o proprietário do prédio no caso de constituição de certos tipos de servidão non aedificandi, como as citadas servidões non aedificandi incluídas em zona especial de protecção de imóveis classificados como bens culturais ou integradas em zonas de protecção das captações de águas.
No entanto, nem todas as limitações ou restrições ao direito de propriedade são indemnizáveis: excluídas desta obrigação de indemnizar estão, pelo menos, aquelas limitações que traduzem “vinculações sociais” do direito de propriedade (cfr. Rui Medeiros in Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição…, cit., 1267; Alves Correia, Manual…, cit., 336).
A esse respeito, o Tribunal Constitucional já salientou, designadamente, no Acórdão n.º 329/99, que «a especial situação da propriedade ? seja a decorrente da sua própria natureza, ou antes a que se liga à sua inserção na paisagem ? importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional)». E que essa vinculação situacional da propriedade do solo pode permitir limitações, restrições e até proibições na utilização desse solo (Acórdão n.º 425/2003).
No caso dos presentes autos, não estamos, porém, perante uma vinculação situacional da propriedade.
Note-se, em primeiro lugar, que, ao contrário das proibições ou restrições à construção previstas que prosseguem interesses públicos gerais e abstractos, designadamente os decorrentes do ordenamento do território ou da protecção do ambiente, a constituição da servidão non aedificandi aqui em causa visa a protecção de um concreto bem público, no caso, uma estrada.
Por outro lado, embora tenha fundamento na lei (como têm, aliás, todas as servidões administrativas) e não careça de um acto administrativo que a declare, uma vez que resulta directamente de uma relação de vizinhança entre o prédio e a estrada, este tipo de servidão tem a montante o acto da Administração que definiu o traçado da via de comunicação e que, através dessa escolha, determinou irremediavelmente quais os prédios onerados com a servidão non aedificandi correspondente. O que significa que a oneração do prédio com uma proibição de construir é consequência de uma opção administrativa que, ao escolher o traçado da via, simultaneamente determinou quais os prédios que com esta ficam em relação de vizinhança, com a oneração daí adveniente.
Como se escreveu na declaração do relator, apensa ao Acórdão n.º 612/2009:
«Assim e em geral, por um lado, este ónus é imposto, em último termo, por uma intervenção administrativa justificada por razões de interesse público e, por outro, não se identifica com o mero reconhecimento de uma vinculação situacional objectiva do solo. […]Apesar de o ónus surgir por efeito de uma relação de vizinhança com a coisa pública que é dada pela lei, sem necessidade de identificação individual dos prédios sujeitos ao ónus, há sempre um acto pressuposto que comporta uma escolha, uma opção administrativa para servir um interesse público concreto daquela maneira, que equivale a um acto singular porque comporta uma intervenção unilateral das entidades públicas que, escolhendo o traçado da via, indirecta mas inexoravelmente designa os prédios que ficarão sujeitos à servidão non aedificandi.» (em sentido diferente, contudo, v. o referido Acórdão n.º 138/2003, onde se refere que a servidão non aedificandi de terrenos confinantes com linha férrea tem fonte “exclusivamente legal”).
Neste sentido, pode dizer-se que a servidão non aedificandi aqui em causa não resulta de características inerentes àquele solo, nem da sua vinculação situacional objectiva, mas antes foi determinada por uma opção da Administração e justificada por razões de interesse público (as subjacentes à escolha do traçado da via).
Tudo o que ficou dito leva-nos à conclusão de que uma servidão non aedificandi do tipo da que está em apreciação, resultando directamente de um acto substancialmente legislativo que não “esvazia do seu conteúdo o direito de propriedade”, não deixa de constituir uma limitação singular e individualizada do uso do solo, que obriga o respectivo proprietário a uma contribuição acrescida para a satisfação daquele interesse público concreto e, nessa medida, o coloca em situação desigual relativamente aos demais proprietários. Ou seja, a proibição de construir constitui um encargo que, incidindo especialmente sobre o proprietário do prédio onerado, se traduz no sacrifício de um factor de valorização do solo (a aptidão edificativa) que, cumpre relembrar, é atendível para o cálculo da indemnização, nos casos em que o solo é expropriado.
Em consequência, é de dar por verificada a situação em que é constitucionalmente devida uma reparação da perda patrimonial sofrida pelo particular atingido pela servidão non aedificandi. Estamos perante uma restrição do direito de propriedade carecida de indemnização.
14. Mas, se assim é, se o princípio da repartição igualitária dos encargos públicos impõe uma compensação patrimonial reequilibradora do sacrifício grave e especial sofrido pelo titular do prédio sobre que incide a servidão, já não pode sustentar-se que desse princípio decorra necessariamente a aplicação, a todas as servidões non aedificandi, do critério indemnizatório consagrado para as situações de expropriação (como elemento constitutivo da garantia específica do direito de propriedade outorgada no artigo 62.º, n.º 2, da CRP).
Qualquer das três situações identificadas no n.º 2 do artigo 8.º do Código das Expropriações, como as únicas que dão lugar a indemnização, está muito próxima de configurar um esvaziamento do núcleo essencial do direito de propriedade, na medida em que estão em causa servidões que, ou anulam o valor económico do bem, ou inviabilizam a sua utilidade global.
Independentemente da aceitação da figura jurídica da “expropriação de sacrifício” ou “expropriação material” e da integração dessas três situações no seu perímetro conceptual, justifica-se inteiramente a equiparação de regimes indemnizatórios, com aplicação das regras constantes do Código das Expropriações (ainda que com as necessárias adaptações), dada a similitude de efeitos danosos produzidos. Na verdade, embora não seja privado da titularidade, o sujeito afectado pela servidão vê o seu direito de propriedade praticamente despojado da sua substância económica.
Não é exactamente essa a situação dos presentes autos, em que está em causa uma servidão administrativa non aedificandi de protecção à rede rodoviária nacional, prevista, no caso, no artigo 4.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 393-A/98, de 4 de Dezembro, que aprovou as bases da concessão relativa aos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados na zona Oeste de Portugal.
A constituição dessa servidão implicou a perda da aptidão para construção, a supressão de uma faculdade incluída no direito de propriedade (ou a ele acrescida, pela classificação administrativa, para quem entenda que essa faculdade não lhe é inerente). Mas não contende com a subsistência do direito de propriedade na esfera jurídica do seu titular, nem sequer atinge o conteúdo ou núcleo essencial desse direito de propriedade.
Na verdade, como reiteradamente este Tribunal tem afirmado (a propósito da apreciação da inconstitucionalidade orgânica de normas com conteúdo limitador do direito a edificar), o ius aedificandi não se inclui no núcleo essencial do direito de propriedade privada, que é tutelado pela Constituição como direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 329/99, 544/2001 e 496/2008).
Mas a não inclusão destas situações no campo aplicativo do Código das Expropriações, que esta caracterização do ius aedificandi justifica, de modo algum implica a denegação, de plano, de indemnização pela constituição de uma servidão non aedificandi de protecção a uma estrada, quando não está verificada nenhuma das previsões do n.º 2 do artigo 8.º desse diploma. A ser essa a solução, ela deveria ter-se por inconstitucional, por violação do princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos. Mas não é essa a consequência a retirar da aplicação (pela negativa) da norma impugnada, tal como legislativamente enunciada.
De facto, essa aplicação apenas afasta um certo regime de indemnização, um certo modo de protecção do direito de propriedade, não implicando forçosamente a irressarcibilidade de todos e quaisquer danos de carácter patrimonial sofridos por um particular para satisfação de um interesse público, que não resultem de expropriação ou de acto equiparável. Há que ver se outras normas legais, igualmente votadas a traçar um regime de indemnização por sacrifícios dignos de compensação, são ou não aplicáveis à situação sub judicio.
Como oportunamente adverte Marcelo Rebelo de Sousa, in Diogo Freitas do Amaral e Outros, Direito do Ordenamento do Território e Constituição, Coimbra, 1998, p. 57, «[O] juízo de inconstitucionalidade não pode recair sobre uma norma legal dissociando-a de todas as demais que vigoram no ordenamento jurídico encarado e, designadamente, daquelas que lhe são mais próximas».
Essa visão sistémica é indispensável, quando o que está em causa é saber se o princípio da igualdade na repartição de encargos públicos é suficientemente acautelado pelo direito ordinário, ao reger as consequências indemnizatórias das vinculações restritivas impostas ao direito de propriedade. E nada autoriza a pensar que os regimes especiais (o constante do artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações, e os demais regimes fixados para situações particulares previstas noutros diplomas) esgotam as hipóteses de possibilidade de indemnização dos sacrifícios patrimoniais decorrentes de servidões. Essas previsões específicas não impedem o recurso a dispositivos mais genéricos de tutela, desde que estejam reunidos os pressupostos por estes fixados e nos encontremos fora do campo aplicativo daquelas previsões.
Como vimos, é este o papel que parte significativa da doutrina reserva para o artigo 16.º do RRCEE, como “norma de recepção” (Auffangsnorm) das situações merecedoras de indemnização não especialmente reguladas, ou, por outras palavras, como cláusula geral «de salvaguarda para cobrir aquele “resto” de actuações causadoras de danos que, num Estado de direito, não podem deixar de dar lugar ao pagamento de indemnização» (Maria da Glória Garcia, ob. loc. cit.). Se a indemnização pelo sacrifício tem uma causa e um âmbito genéricos, não sendo restrita à afectação do direito de propriedade, também a abarca, quando não é operativa a garantia específica de que este direito goza. Se não se limita a esse campo operativo, também não o exclui.
Sendo assim, não é forçoso o alargamento do conceito de expropriação – “indesejável” para Gomes Canotilho (Anotação, RLJ 128.º, 52) ?, com aplicação do regime garantístico que lhe cabe, para assegurar uma compensação devida à luz do princípio da igual repartição dos encargos públicos. O reconhecimento de que certas formas de restrição do direito de propriedade representam um sacrifício indemnizável relativiza, consagrando um tertium genus, “a tradicional dicotomia (…) entre vinculação social sem indemnização e expropriação geradora de indemnização” (Gomes Canotilho, ob. cit., 51).
E, não estando em causa danos análogos aos da expropriação, não se afigura desrazoável exigir ao interessado a demonstração do carácter especial e anormal dos prejuízos, como condição da sua ressarcibilidade. Demonstração que, no caso das proibições de edificar, se apresenta muito facilitada, pois quase se pode dizer que, na generalidade dos casos, esse carácter está in re ipsa. Ainda que não sejam estruturalmente idênticas as posições do proprietário expropriado e do proprietário de prédio sujeito a servidão non aedificandi (pela razão evidente de que este não perde a titularidade do direito), a relevância da capacidade edificativa, no caso de indemnização por expropriação, vem evidenciar – se dúvidas houvesse – que a supressão do ius aedificandi constitui uma perda de valor atendível.
Do mesmo modo, o regime de cálculo da indemnização, em razão do “grau de afectação do conteúdo do direito ou interesse violado ou afectado”, também se afigura absolutamente ajustado às restrições do direito de propriedade não expropriativas, atento o carácter multiforme, em natureza e intensidade, dessas restrições.
O que não encontra justificação razoável é o recurso à medida extrema da recusa de aplicação de uma norma, por inconstitucionalidade, para depois aplicar o mesmo regime que dela consta, mas “corrigido”, por adição de uma previsão que o seu enunciado não contém, mas se entende deveria conter, por força de um princípio constitucional que, todavia, encontra satisfação adequada noutro lugar do sistema. Atendendo ao reconhecimento de uma indemnização pelo sacrifício, não se nos depara aqui qualquer insuficiência da protecção exigida pelo princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos.
Refira-se, por último, que o entendimento aqui expresso já foi anteriormente sufragado por este Tribunal, ao julgar, pelo Acórdão n.º 329/99, não inconstitucional a ablação de uma licença de loteamento. Ainda que não estivesse especificamente previsto o direito a indemnização, levou-se em conta que a solução em causa era “integrada” pelo artigo 9.º da Decreto-Lei n.º 48.051, de 27 de Novembro de 1967 (o antecedente legal do Artigo 16.º do RRCEE), do qual resultava o dever de indemnizar. E este ponto de vista foi reiterado no Acórdão n.º 517/99.
III ? Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar não inconstitucional a norma do artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações (aprovado pela Lei n.º 168/1999, de 18 de Setembro);
Consequentemente, conceder provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Novembro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano (vencido, conforme declaração de voto que junto) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Defendi solução contrária à posição seguida neste Acórdão porque da leitura da decisão recorrida constata-se que a norma cuja aplicação foi recusada é a que consta do disposto no artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações, na interpretação que o mesmo restringe a atribuição de uma indemnização às utilidades actuais dadas a uma parcela onerada com uma servidão non aedificandi de protecção a uma auto-estrada, impedindo a indemnização da perda da potencialidade edificativa adveniente à classificação do solo, anterior à constituição da servidão, como solo apto para construção.
Sendo esta a norma cuja aplicação foi recusada, por inconstitucionalidade, o presente Acórdão ao pronunciar-se pela não inconstitucionalidade, com fundamento em que a indemnização pela perda da potencialidade edificativa pode ser atribuída por aplicação do disposto no artigo 16.º, do RRCEE, procede a uma interpretação da norma que dele é objecto diversa da que foi adoptada pela decisão recorrida.
Embora na parte decisória não se ordene expressamente que o tribunal recorrido proceda à interpretação do direito infra-constitucional sustentada neste Acórdão, ao determinar-se que aquele tribunal reforme a decisão recorrida de acordo com o juízo de não inconstitucionalidade que teve como único fundamento a aplicabilidade do artigo 16.º, do RRCEE, está a impor-se a referida interpretação, nos termos previstos pelo artigo 80.º, n.º 3, da LTC.
Ora, tem sido jurisprudência deste tribunal, face à possibilidade de se infringir o princípio da independência interpretativo-decisória do tribunal da causa, que estas decisões interpretativas devem ser adoptadas excepcionalmente em casos em que a interpretação recusada não tem qualquer suporte.
Esta não é uma dessas situações, uma vez que não é isenta de discussão a questão de saber se o disposto no artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações, não se encontra numa relação de especialidade, relativamente à regra geral do artigo 16.º, do RRCEE, afastando, por isso, a sua aplicação.
Por essa razão defendi que era preferível o tribunal pronunciar-se pela inconstitucionalidade do critério interpretativo recusado, uma vez que nessa parte acompanho a fundamentação deste Acórdão quando sustenta que não se indemnizar a perda da potencialidade edificativa duma parcela de terreno, em resultado do estabelecimento duma servidão non aedificandi de protecção a uma auto-estrada, viola o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos.- João Cura Mariano.