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Processo n.º 422/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Nos presentes autos, em 16 de Janeiro de 2008, foi deduzida acusação a fim de serem submetidos a julgamento os arguidos A., B., C., D., E. e F. e G., pela prática, em co-autoria, os quatro primeiros, de um crime de prevaricação de titular de cargo político previsto e punido pelo artigo 11.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 13/2001, de 4 de Junho e 108/2001, de 28 de Novembro, por referência aos artigos 2.º, n.º 2, 56.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 7, alínea b), 65.º, n.º 1, a contrario, 65.º, n.º 2, e 69.º, todos da Lei n.º 169/99, de 18.09, e artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea i), da já citada Lei n.º 34/87, e artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, no qual se encontra consumido o crime de participação económica em negócio previsto e punido pelo artigo 23.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, com referência aos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 1, deste mesmo diploma legal e, os dois últimos arguidos, pela prática em co-autoria, de um crime de abuso de poder previsto e punido pelo artigo 382.º do Código Penal.
Após realização de instrução, por decisão de 30 de Julho de 2009, aqueles arguidos foram pronunciados nos precisos termos em que foram acusados.
No dia 8 de Janeiro de 2010, após remessa dos autos ao Tribunal de Julgamento onde foram distribuídos à 5.ª Vara Criminal de Lisboa, aí foi proferido despacho, ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, que determinou a respectiva autuação como processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, e designou datas para audiência de julgamento “pelos factos e crimes referidos pela acusação do MP de fls. 3227/3336 e 336113362, nos termos acolhidos pela pronúncia de fls. 5550/5723, peças processuais que aqui se dão por integralmente reproduzidas, os arguidos A., B., C., E. e F., G., pelos factos e crimes ali descritos”.
Mais foi determinado o cumprimento do disposto nos artigos 313.º n.º 2, 314.º, 315.º e 317.º, n.ºs 1 e 7, todos do Código de Processo Penal, tendo sido notificados os arguidos e os seus mandatários.
No dia 4 de Maio de 2010, data em que se deu início à audiência de julgamento, imediatamente após a abertura da audiência de julgamento, veio a ser proferido despacho que determinou a extinção do procedimento criminal quanto a todos os arguidos, por falta de objecto, e o consequente arquivamento dos autos, ao abrigo do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
O Ministério Público recorreu deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 17 de Fevereiro de 2011, julgou procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a sentença proferida e determinando que a mesma seja substituída por outra que, na sequência da realização de audiência, aprecie a responsabilidade criminal imputada aos arguidos.
A arguida C. interpôs recurso deste Acórdão para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“O recurso visa a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com as normas constantes dos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código…quanto interpretadas tais disposições legais – conforme as interpretou o Tribunal a quo, no seguimento do Recurso apresentado pelo Ministério Público no sentido de que, nomeadamente tendo havido Instrução e tendo sido proferido despacho ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo declarar extinto o procedimento criminal por falta de objecto e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos, sempre daí resultará norma materialmente inconstitucional, em razão da violação dos princípios constitucionais constantes dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.º 2, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 204.º da Constituição da República Portuguesa.”
Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
(i) O presente Recurso encontra-se delimitado no seu objecto pela interpretação normativa dada pelo Tribunal a quo ao artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo penal, em conjugação com os artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313º, n.º 4, do mesmo diploma legal, interpretação normativa essa que enferma de inconstitucionalidade.
(ii) A norma referida no ponto anterior, na interpretação que nesta sede se questiona, foi chamada a integrar a ratio decidendi da decisão a quo, razão pela qual as inconstitucionalidades suscitadas no Requerimento de Interposição de Recurso deverão ser conhecidas por este Tribunal.
(iii) Por violação dos princípios constitucionais vertidos nos artigos 1º., 2.º, 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.º 2, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 204.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa segundo a qual, tendo havido Instrução e tendo sido proferido despacho ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao tribunal declarar extinto o procedimento criminal por falta de objecto e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos, determina a inconstitucionalidade do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal conjugado com as demais normas processuais penais acima mencionadas.
(iv) Na verdade, tal interpretação não acautela as finalidades básicas de um Estado de Direito e de um sistema judiciário cujo fim último é a Justiça.
(v) De facto, é inadmissível e impensável exigir que uma pessoa seja sujeita a um julgamento quando, à partida, o próprio tribunal que a vai julgar entenda que os factos constantes da acusação (e neste caso acolhidos também pela Decisão Instrutória) não podem, ainda que todos verdadeiros e provados, conduzir à condenação.
(vi) Não se está aqui a falar de um tribunal que entenda ser mais plausível a versão da defesa em detrimento da versão da acusação. Não. De que se fala aqui é de um tribunal que da simples análise da acusação entenda não existirem factos que correspondam ao tipo criminal imputado aos arguidos.
(vii) Neste cenário, que é claro, não é possível conceber uma solução jurídica conforme à Constituição da República Portuguesa, como a defendida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que consista na primazia das regras processuais em detrimento dos princípios constitucionais por que se rege o nosso Estado e, em última análise, a Justiça.
(viii) O artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado como o foi pelo Tribunal da Relação de Lisboa, impediria que um tribunal pudesse pôr fim a um processo-crime contra uma pessoa inocente.
(ix) Quer isto dizer que aquela pessoa, considerada inocente pelo tribunal, se veria obrigada a enfrentar um julgamento, a sentar-se no banco dos arguidos, a submeter-se a medidas de coacção (eventualmente a manter-se preso), etc., única e exclusivamente pela simples necessidade de respeitar alegadas regras processuais (como se estas fossem cegas ao sistema em que se encontram inseridas).
(x) Assim sendo, o artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com as demais normas processuais, quando assim interpretado, não respeita o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, não respeita o princípio da dignidade da pessoa humana. Princípio este que consagra a prioridade da pessoa humana em relação aos demais fins da nossa sociedade (sejam eles económicos, sociais ou outros).
(xi) Isto é, verifica-se a violação deste princípio quando, por exemplo, as regras processuais proíbem a libertação imediata daquele que não é criminoso, levando a que esse cidadão veja comprimida a sua dignidade quer enquanto ser individual, quer enquanto ser integrado em sociedade.
(xii) Em segundo lugar, aquela norma processual assim interpretada não respeita o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, o Estado de Direito Democrático.
(xiii) E não respeita, pois num Estado de Direito Democrático exige-se o respeito pelos direitos fundamentais e a existência de um sistema orientado para a Justiça, o que não sucede quando, por meras questões formais, se limita a liberdade dos cidadãos, nomeadamente sujeitando-os a um julgamento sem objecto, isto é, sem que do mesmo possa resultar qualquer condenação.
(xiv) Em terceiro lugar, a norma processual referida também não respeita o artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
(xv) Na verdade, todas as entidades públicas e privadas e, por maioria de razão, os tribunais, estão obrigadas a respeitar e fazer respeitar a Constituição da República Portuguesa.
(xvi) Para que se verifique esse respeito é essencial, para além do mais, que não se pratiquem actos limitativos dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos sem que essa limitação seja justificada pela necessidade de respeitar outros direitos fundamentais.
(xvii) Em suma, é essencial que se verifique uma relação de proporcionalidade entre a limitação e o ganho que se atinge com essa limitação.
(xviii) Sucede, porém, que o artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (em conjugação com as demais normas já mencionadas), interpretado como o foi pelo Tribunal da Relação de Lisboa, viola os direitos fundamentais dos cidadãos sem que, com isso, se garanta qualquer vantagem para o sistema de justiça ou para a sociedade em geral.
(xix) Na verdade, a eventual vantagem que se poderia retirar da proibição de o tribunal determinar o fim de um processo crime ao abrigo do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e que se baseia em simples questões processuais, não é justificativa, e muito menos proporcional, da violação que a mesma solução consagra dos direitos fundamentais dos cidadãos, não se antevendo também que a mesma proibição possa ser adequada ou necessária à realização da justiça penal.
(xx) Em quarto lugar, aquela norma processual penal é também violadora do artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que não existe um verdadeiro acesso ao direito e uma verdadeira garantia de tutela jurisdicional efectiva quando se determina que um tribunal deve continuar um julgamento de pessoas que considere não terem praticado qualquer crime.
(xxi) Isto porque, por um lado, se está a obrigar um tribunal a perder o seu tempo com um julgamento inútil, e, por outro lado, se está a determinar que a justiça formal deva prevalecer em relação à justiça material, utilizando-se simples obstáculos procedimentais para evitar uma resposta célere, definitiva e justa à pretensão dos cidadãos.
(xxii) Pretensão essa que passa pelo direito de ver arquivado um processo crime contra si movido, quando do mesmo não possa resultar a sua condenação.
(xxiii) Em quinto lugar, viola igualmente o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
(xxiv) O princípio agora enunciado determina que um tribunal deve absolver um cidadão sempre que tenha dúvidas de que o mesmo tenha praticado um crime. Tal significa que, por maioria de razão, tem o tribunal a obrigação de determinar a extinção de um procedimento criminal sempre que tenha a certeza de que o arguido não praticou um crime.
(xxv) Sendo certo que, para além do mais, este princípio obriga ainda o tribunal a tomar esta decisão logo que da mesma estiver convicto, pois é inadmissível a manutenção de um julgamento e de um processo crime, com todos os prejuízos daí resultantes para os cidadãos, quando do mesmo não possa resultar a prática de um crime.
(xxvi) Finalmente, o artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando em conjugação com os demais artigos já citados, interpretado como o foi pelo Tribunal da Relação de Lisboa, viola a função jurisdicional que compete aos tribunais (artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa), pois não só retiraria o poder de decisão ao tribunal de julgamento, numa fase processual de que é o único e exclusivo titular, como também porque impediria que o tribunal adoptasse, obrigado que está a proteger os cidadãos e a sociedade, as medidas necessárias a essa protecção.
(xxvii) Ora, não existirá (antes pelo contrário) qualquer protecção quer dos cidadãos, quer da sociedade em geral, quando um tribunal, convicto e consciente da inocência dos arguidos no início do julgamento, ainda assim seja obrigado a sujeitá-los a toda essa fase processual, com todos os prejuízos daí decorrentes.
(xxviii) Deste modo, o artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com as demais normas processuais penais já mencionadas, apenas corresponde à concretização dos princípios constitucionais vertidos nos artigos 1., 2.º, 18.º n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.º 2, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 204.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de, mesmo tendo havido Instrução e despacho proferido no âmbito do artigo 311.º do Código de Processo Penal, ser possível ao juiz de julgamento declarar extinto o procedimento criminal por falta de objecto e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos.
(xxix) Só com esta interpretação é que as mencionadas normas processuais penais se assumem conformes à dignidade da pessoa humana, aos princípios basilares de um Estado de Direito Democrático, aos direitos, liberdades e garantias, ao princípio da proporcionalidade, ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, à presunção (certeza) de inocência e à função jurisdicional dos tribunais.”
O Ministério Público contra-alegou, pronunciando-se pelo não conhecimento do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência.
Fundamentação
1. Do conhecimento do recurso
O Ministério Público, nas contra-alegações apresentadas, pronunciou-se pelo não conhecimento do mérito do recurso, por entender que a Recorrente não suscitou perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora vem colocar ao Tribunal Constitucional e que essa questão tem por objecto um critério que não constituiu ratio decidendi do acórdão recorrido.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge?se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando?se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
No presente recurso, a Recorrente pretende que o tribunal aprecie a constitucionalidade da norma constante do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com as normas constantes dos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código, quanto interpretadas tais disposições legais no sentido de que, tendo havido Instrução e tendo sido proferido despacho ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo declarar extinto o procedimento criminal por falta de objecto e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos, por considerar que esta interpretação viola os princípios constitucionais constantes dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.º 2, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 204.º da Constituição da República Portuguesa.
Da leitura das contra-alegações de recurso apresentadas ao Tribunal da Relação de Lisboa pela Recorrente verifica-se que a inconstitucionalidade desta interpretação foi aí claramente suscitada, em termos de vincular o tribunal de recurso ao seu conhecimento, designadamente na conclusão 18.ª daquela peça processual, pelo que se mostra cumprido o referido requisito da suscitação adequada perante o tribunal recorrido da questão de constitucionalidade colocada posteriormente ao Tribunal Constitucional.
E da leitura do Acórdão recorrido também se verifica que o critério normativo cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada neste recurso foi o fundamento da decisão, conforme resulta da sua síntese conclusiva onde se pode ler:
“Em síntese conclusiva, estabilizada a instância, no início da audiência de julgamento, o juiz não pode retomar a questão do mérito da acusação a partir do seu texto e, contrariando o despacho de recebimento da acusação e designação de dia para julgamento, decidir do mérito da causa com o fundamento de que os factos narrados na referida acusação não integram a prática de qualquer crime; só após a produção da prova e a produção das alegações orais em audiência de julgamento se pode apreciar o (in)fundado da acusação (no caso, confirmada pela pronúncia), através da análise do seu mérito.”
O facto da redacção do critério normativo enunciado pela Recorrente no requerimento de interposição de recurso não referir que a instrução culminou em despacho de pronúncia e que o despacho proibido é aquele que é proferido na fase introdutória da audiência de julgamento, não impede que se considere que o mesmo coincide com o que foi adoptado pela decisão recorrida, uma vez que estamos perante simples precisões de aproximação ao caso concreto, implícitas na enunciação efectuada pela Recorrente, sem qualquer influência no conteúdo normativo essencial do critério questionado.
Assim, também não existem razões para que se não conheça do mérito do recurso por este não integrar a ratio decidendi do Acórdão recorrido.
Não se verificando qualquer outro obstáculo que impeça a apreciação do mérito do recurso, deve o mesmo ser conhecido, tendo por objecto o seguinte critério normativo, já aditado das referidas explicitações e necessárias precisões:
- o artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código, quanto interpretadas tais disposições legais no sentido de que, tendo sido proferido despacho de pronúncia, na sequência de instrução, seguido de despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar extinto o procedimento criminal e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos.
2. Do mérito do recurso
Para que o Tribunal se pronuncie cabalmente sobre esta questão de constitucionalidade, impõe-se uma breve excursão pela tramitação processual penal e a inserção sistemática da norma em apreço, apreciação a que não pode alhear-se a caracterização, ainda que sucinta, da respectiva estrutura processual.
É pacífico o entendimento de que o processo penal português tem uma estrutura acusatória que implica, além do mais, o controlo judicial da acusação, e a proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não pode fazer a audiência de discussão e julgamento e vice-versa (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada,”, volume I, p. 522, da 4ª edição, da Coimbra Editora). O fundamento desta clara repartição de funções entre as diversas entidades que intervém no processo assegura, por um lado, as garantias de defesa do arguido e, por outro, a liberdade de convicção, a imparcialidade e a objectividade da decisão proferida pelo órgão chamado a decidir em cada face processual, permitindo-se ao arguido exercer um controlo jurisdicional das decisões que lhe sejam desfavoráveis.
A lei reconhece ao arguido o direito de, uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, fase processual facultativa e que visa a comprovação, pelo juiz de instrução, da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento (artigo 286.º, do Código de Processo Penal). O controlo judicial da decisão de acusação alcança-se, pois, através da abertura da instrução, matéria em que o arguido é soberano quanto à decisão de a requerer ou não, consoante a estratégia processual que considere mais adequada para defesa dos seus direitos e interesses legítimos.
Quando requerida pelo arguido, a instrução é uma fase do processo penal que ocorre entre o inquérito e o julgamento, na qual um juiz verifica os pressupostos jurídico-factuais da acusação, decidindo se a causa deve ser submetida a julgamento para apreciação do mérito da acusação. Nesta verificação está incluído o juízo sobre se os factos imputados ao arguido integram um ilícito criminal.
Quando o juiz de instrução profere despacho de pronúncia, decidindo que o processo está em condições de ser submetido a julgamento, delimitando o seu objecto e ordenando a prossecução do processo para uma nova fase, o processo é remetido a um outro juiz que realizará o julgamento.
Dispõe, então, o artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal:
“Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.”
E, marcado o julgamento, dentro dos actos introdutórios da audiência de julgamento, o artigo 338.º, do Código de Processo Penal, ainda permite que “o tribunal conheça e decida das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.”
Foi, invocando este preceito, que o Tribunal Colectivo que procedia ao julgamento, imediatamente após a abertura da audiência, deliberou o seguinte:
“Tendo os arguidos alegado, nas suas contestações, que a matéria factual constante da acusação e da pronúncia não constituem qualquer crime, importa desde já e nos termos do disposto no artigo 388.º, n.º 1, do CPP, conhecer desta questão prévia”.
E, conhecendo desta questão, após extensa fundamentação, concluiu:
“Ora, é precisamente aqui, como decorre de tudo o que se disse, que a acusação e a pronúncia dos presentes autos falecem, na medida em que para além de inúmeras considerações, abstracções e conclusões que não constituem factos na verdadeira acepção jurídico-penal do conceito, a matéria factual que delas consta não permite a conclusão que os arguidos tenham cometido qualquer crime e designadamente, os que ali lhe são imputados.
Ao não constituírem crime os factos que a acusação pública e a pronúncia imputam aos arguidos, que apenas poderão ter relevância no foro administrativo, ter-se-á que concluir que os presentes autos carecem de objecto útil, tendo inteira procedência a questão prévia levantada por todos os arguidos em sede de contestações.
Nessa medida, o prosseguimento destes autos e ainda que se provassem os factos constantes da acusação e acolhidos pela pronúncia, apenas poderia redundar numa decisão: a absolvição dos arguidos, o que torna o presente julgamento um acto processualmente inútil e por isso, proibido por lei, como estipula o Art° 137 do CPC.
Assim, por todo o exposto e ao abrigo do disposto no Art° 338 n°1 do CPP, o Tribunal Colectivo declara extinto o procedimento criminal quanto aos arguidos por falta de objecto e em consequência, determina o arquivamento dos autos.
Ficam sem efeito as restantes sessões de Audiência de Julgamento designadas nos autos. Cessam as medidas de coacção impostas aos arguidos.”
O Tribunal da Relação de Lisboa revogou esta decisão por ter entendido que, tendo sido proferido despacho de pronúncia, na sequência de instrução, seguido de despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, estava vedado ao Tribunal Colectivo, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar extinto o procedimento criminal e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos.
Sustentou esta posição no facto dessa apreciação não estar compreendida nas questões prévias que o juiz pudesse tomar conhecimento antes da sentença, tendo a respectiva questão já sido objecto de decisão pelo despacho de pronúncia.
A Recorrente defende que esta interpretação viola os princípios contidos nos artigos 1º., 2.º, 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.º 2, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 204.º, da Constituição, ao exigir que uma pessoa seja sujeita a um julgamento quando, à partida, o próprio tribunal que a vai julgar entende que os factos constantes da acusação e do despacho de pronúncia não podem, ainda que todos verdadeiros e provados, conduzir à condenação. Para a Recorrente, obrigar uma pessoa, considerada à partida inocente pelo tribunal, a enfrentar um julgamento, a sentar-se no banco dos arguidos, e a manter-se sujeita a medidas de coacção, única e exclusivamente pela simples necessidade de respeitar alegadas regras processuais, contraria, de forma desproporcionada ao interesse que visa proteger, princípios constitucionais como o do respeito pela dignidade da pessoa humana, a ideia de justiça inerente a um Estado de direito democrático, o direito a um processo equitativo, o princípio da presunção de inocência e a atribuição da função jurisdicional aos tribunais.
Se as considerações efectuadas pela Recorrente nas suas alegações, numa leitura imediata, impressionam, após uma reflexão mais atenta verifica-se que elas partem duma perspectiva errada quanto ao ponto de incidência do critério normativo sustentado pela decisão recorrida e que é objecto do presente recurso.
A proibição contida na norma sindicada não tem como alvo a decisão de não prosseguir com o julgamento, determinando-se desde logo a extinção do procedimento criminal, mas sim o juízo ponderativo que a precede e fundamenta.
Não se proíbe que o juiz do julgamento determine a extinção do procedimento criminal, não prosseguindo a audiência de julgamento, quando ainda em fase introdutória tenha ajuízado que os factos constantes do despacho de pronúncia não tem relevância criminal; o que se proíbe é que o juiz de julgamento, nessa fase, possa sequer efectuar uma tal avaliação, devendo apenas decidir pela condenação ou absolvição do Réu, após realizada a produção de prova e alegações, e fixados os factos que se provaram na audiência de julgamento.
Esta limitação dos poderes do juiz de julgamento tem como fundamento um reconhecimento da autoridade do caso julgado formal. Tendo já sido decidido pelo juiz de instrução criminal, por decisão transitada em julgado proferida nesse processo, que o arguido deve ser submetido a julgamento pelos factos constantes do despacho de pronúncia, entende-se que o juiz do julgamento não pode reponderar a relevância criminal dos factos imputados ao arguido, com a finalidade de emitir um segundo juízo sobre a necessidade de realização da audiência de julgamento.
A autoridade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais, transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insusceptíveis de serem modificadas na mesma instância, tem como fundamento a disciplina da tramitação processual. Seria caótico e dificilmente atingiria os seus objectivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo sempre uma reapreciação pelo mesmo tribunal, nomeadamente quando, pelos mais variados motivos, se verificasse uma alteração do juiz titular do processo.
O Recorrente alega que esta proibição viola os princípios constitucionais do respeito pela dignidade da pessoa humana, a ideia de justiça inerente a um Estado de direito democrático, o direito a um processo equitativo, o princípio da presunção de inocência, e a atribuição da função jurisdicional aos tribunais, sendo desproporcionada relativamente aos fins que visa alcançar.
Os princípios da dignidade da pessoa humana e da justiça são fundantes das regras constitucionais em matéria processual penal, podendo assumir uma importante função clarificadora na definição dos respectivos direitos constitucionais, mas só na ausência de direitos fundamentais específicos sobre a temática em causa devem fundamentar exclusivamente um juízo de inconstitucionalidade.
No domínio dos direitos constitucionais com incidência processual, o Recorrente alega a violação do princípio da presunção da inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição) e do processo equitativo (artigo 20.º, da Constituição).
Ambos os direitos têm um conteúdo muito amplo, exigindo que o processo penal assegure todas as garantias práticas de defesa do arguido e o seu tratamento como inocente.
Ora, estando assegurada a possibilidade do arguido requerer a comprovação jurisdicional da necessidade da sua sujeição a um julgamento, para satisfação desses princípios é dispensável, quando essa apreciação tenha sido realizada por um juiz de instrução, que haja a possibilidade do juiz do julgamento reapreciar a mesma questão. A presunção de inocência do arguido e a ideia de um processo justo, bastam-se com uma comprovação judicial da necessidade do arguido ser sujeito a julgamento, não exigindo uma dupla verificação da mesma questão na mesma instância, aproveitando o facto do juiz do julgamento ser pessoa diferente do juiz que realizou a instrução.
Por outro lado, a interpretação sob fiscalização em nada afecta a atribuição da função jurisdicional aos tribunais, pois não impede a sua intervenção na tarefa de controle da acusação, apenas vedando que ocorra uma segunda pronúncia sobre esse tema, na mesma instância, embora por um juiz diferente. Não está em causa o âmbito de intervenção dos tribunais, mas sim a disciplina dos processos que neles são tramitados.
Não violando o critério normativo fiscalizado os parâmetros constitucionais invocados pela Recorrente, nem quaisquer outros, deve o recurso ser julgado improcedente.
Decisão
Nestes termos decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código, quanto interpretadas tais disposições legais no sentido de que, tendo sido proferido despacho de pronúncia, na sequência de instrução, seguido de despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar extinto o procedimento criminal e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos.
b) Em consequência, julgar improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por C., do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nestes autos em 17 de Fevereiro de 2011.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 31 de Outubro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.