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Processo n.º 488/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No Tribunal do Trabalho do Porto foi proferida sentença que decidiu «declarar incompetente, em razão da matéria, este Tribunal do Trabalho para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs l10., n.º 2, 212, n.º 3 e 213.º, n.º 3 da Constituição, 87.º, da Lei 3/99, de 13.JAN, pelo que se determina o arquivamento dos autos».
Pondera o aresto, como fundamento do assim decidido:
[...]
1. A A. suscitou um conjunto de questões no presente recurso.
Porém, desde logo de perfila no horizonte uma questão prévia que, a proceder, inviabiliza e impede o conhecimento das demais questões levantadas.
2. Assim, e desde logo, pode colocar-se questão da a constitucionalidade do art. 87.º da Lei 3/99, de 13.JAN.
De facto, a fase em que a autoridade recorrida efectua o apuramento dos factos e procede à aplicação da coima tem natureza materialmente administrativa (não judicial ou para-judicial); por isso, considerando que a Constituição – no seu art.º 110.º, n.º 2, 212.º, n.º 3 e 213.º, n.º 3 – reserva aos tribunais administrativos a apreciação e decisão dos recursos contenciosos decorrentes das relações jurídicas administrativas, segue-se que o referido preceito da Lei 3/99 é materialmente inconstitucional, ao deferir o conhecimento desses recursos aos tribunais judiciais.
2.1. A Constituição reserva aos tribunais administrativos a competência para o julgamento dos recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (art.º 212.º, n.º 3).
O contencioso administrativo é a matéria da competência dos tribunais administrativos, sendo definida como “...o conjunto dos litígios entre a Administração Pública e os particulares, que hajam de ser solucionados pelos tribunais administrativos e por aplicação do Direito Administrativo.” (Prof. D. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. IV, pg. 74, lições aos alunos do curso de Direito, em 1987/88, Lisboa).
2.2. Assim, só é da competência dos tribunais administrativos o conhecimento dos litígios que possam ser resolvidos por apelo a princípios de Direito Administrativo e por aplicação das normas próprias desse ramo do Direito.
2.3. Como se sabe, o direito de mera ordenação social (em que inequivocamente se insere o DL 133-A/97) surgiu da autonomização, dentro do direito administrativo, de certas normas que visam prevenir e reprimir a violação de condutas humanas que atentem contra a as necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar.
Passou-se, assim, de um direito penal administrativo, para um direito de mera ordenação social, o qual, porém, não perdeu a sua natureza de direito administrativo: “...sistema de normas jurídicas que regulam a organização e funcionamento da Administração Pública, bem como as relações por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito, no exercício da actividade administrativa de gestão pública.” (Prof. D. Freitas do Amaral, cit., vol. I, pag. 130), sendo que o conceito de actos de gestão pública envolve a ideia de “...exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolveram ou não o exercício de meios de coacção e independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas,” (Prof. D. Freitas do Amaral, cit., pg. 129).
2.4. Neste contexto, inegável é que o DL 133-A/97 habilita a Administração Pública (aqui corporizada no Instituto de Segurança Social) a impor a observância de certas condutas à A. e a proceder às necessárias alterações às suas instalações; de igual modo, o referido diploma legal estatui sanções (designadamente sob a forma de coima) para o caso da inobservância das suas prescrições.
Aqui, a autoridade recorrida exerce um poder público, destinado a assegurar a satisfação de interesses públicos (que sejam asseguradas condições mínimas de bem-estar aos idosos colocados em lares)
Para garantir a eficácia das suas disposições, a lei prevê a possibilidade de aplicação de sanções: as coimas.
Pura actividade administrativa, pois, mesmo na fase de aplicação de sanções.
A fase não administrativa é apenas a seguinte, a partir do momento em que o administrado (a aqui A.) interpõe o recurso da decisão de aplicação da coima.
3. Aqui chegados, coloca-se então a questão da reserva constitucionalmente consagrada aos tribunais administrativos.
De facto, a actividade desenvolvida pela aqui autoridade recorrida (insiste-se: mesmo aquela que se traduz na aplicação de uma coima) é pura actividade da Administração Pública, visando a satisfação de necessidades gerais de segurança e bem-estar, de um segmento populacional menos protegido.
Actos de gestão pública, pois.
3.1. Sendo actos de gestão pública, envolvendo de um lado a Administração Pública e do outro os particulares – e numa relação assimétrica porque não estão em situação de igualdade – o conflito daí emergente envolve a aplicação de normas de Direito Administrativo.
Ora, se a lei fundamental (no seu art.º 212.º, n.º 3) atribui a competência para dirimir tais conflitos aos tribunais administrativos, segue-se que a lei ordinária afronta a Constituição ao atribuir – no art.º 87.º da Lei 3/99 – competência material aos tribunais do trabalho para o conhecimento e decisão de matéria contravencional (contraordenacional) no âmbito da segurança social.
3.2. É pois, inevitável concluir-se pela incompetência material dos tribunais do trabalho para conhecerem e decidirem dos recursos de contra-ordenações: ao deferir competência aos tribunais judiciais para o conhecimento e decisão de recursos (contenciosos), ainda que limitada à matéria laboral e de segurança social, a lei ordinária afronta o constitucionalmente estabelecido, que reserva aos tribunais administrativos a apreciação e decisão dos recursos contenciosos decorrentes das relações jurídicas administrativas.
Aliás, já no longínquo ano de 1973, defendia o Prof. Eduardo Correia que o recurso dirigido contra as decisões das autoridades administrativas que apliquem uma coima deveria ser dos tribunais administrativos e não dos tribunais comuns (Boletim da Fac. de Direito, Universidade de Coimbra, XLIX 1973, pg.s 275/277)
4. Consequência dessa inconstitucionalidade material é o facto de não poder ser aplicada a norma que atribui competência aos tribunais do trabalho para conhecerem os recursos de coimas aplicadas em matéria laboral e de segurança social.
Assim, tudo se passa como se o art.º 87.º da Lei 3/99 não existisse e, assim, este Tribunal do Trabalho carecesse de competência material para decidir o recurso contencioso em apreço.
5. Pelo exposto, nada mais resta senão declarar este Tribunal do Trabalho incompetente, em razão da matéria, para conhecer e decidir o presente recurso.
2. O Ministério Público recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º n.º 1 alínea a) da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), invocando que o tribunal desaplicara a norma do artigo 87.º da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro, que atribui competência ao tribunal de trabalho para conhecer os recursos de coimas aplicadas em matéria laboral e da segurança social, por ser materialmente inconstitucional e violar o disposto nos artigos 110.º n.º 2, 212.º n.º 3 e 213.º n.º 3 da Constituição. Admitido o recurso, o representante do Ministério Público neste Tribunal alegou e concluiu:
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1º – A norma constante do artº. 87.º, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, que atribui competência, aos tribunais do trabalho, para conhecer os recursos de coimas aplicadas pelo Instituto da Solidariedade e Segurança Social, no âmbito de um processo contra-ordenacional, em matéria laboral e da segurança social, não afronta a Lei Fundamental, nomeadamente, os seus artigos 110º, nº 2 e 212º, nº 3 (não fazendo qualquer sentido, para o caso em análise, a invocação do art.º 213º da C.R.P., que contempla os tribunais militares).
2º – Efectivamente, constitui entendimento pacífico e reiterado deste Tribunal Constitucional que o artigo 212º, nº 3, da C.R.P., não impõe que todos os litígios emergentes de uma qualquer relação jurídica administrativa, sejam dirimidos pelos tribunais administrativos, mas apenas significa que a existência dos tribunais administrativos é obrigatória e que eles estão dotados, em geral, de competência para dirimir litígios administrativos.
3º – Entendimento jurisprudencial que se encontra plasmado, nomeadamente, nos Acórdãos com os nºs 522/08 e 632/09, que se enumeram, dado o paralelismo das situações, pois emergem de decisões administrativas, no âmbito de processos de contra-ordenação.
Ora, também nestes casos, o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido de que a reserva material da jurisdição administrativa não obsta a que os recursos, em matéria contra-ordenacional, sejam apreciados pelos tribunais judiciais.
4º – Assim, não existe impedimento constitucional à exclusão, pontual e fundamentada, da jurisdição administrativa, para a apreciação de determinadas questões de natureza administrativa.
5º – Aliás, o art.º 4º do ETAF, que enuncia o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, exclui dessa jurisdição os litígios que constituam ilícito penal ou contra-ordenacional, bem como os actos relativos a inquérito e instrução criminal, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
6º – Como tal e no contexto do processo de contra-ordenação laboral e da segurança social, em que coexistem matérias administrativas com modelos penais e processuais penais, a remissão para os tribunais do trabalho das impugnações judiciais, não se afigura atentatória do figurino típico que a Constituição quis consagrar quanto ao âmbito material da justiça administrativa.
O recorrido não alegou, cumprindo decidir.
3. Resulta do teor da decisão recorrida que o Tribunal do Trabalho se julgou incompetente para conhecer da matéria em virtude de em causa estar uma relação jurídico-administrativa, designadamente na fase em que a autoridade recorrida efectua o apuramento dos factos e procede à aplicação da coima que «tem natureza materialmente administrativa (não judicial ou para-judicial)». Considerando que a Constituição – artigos 110.º, n.º 2, 212.º, n.º 3 e 213.º, n.º 3 – reserva aos tribunais administrativos a apreciação e decisão dos recursos contenciosos decorrentes das relações jurídicas administrativas, concluiu o Tribunal do Trabalho que o referido preceito da Lei n.º 3/99 «é materialmente inconstitucional, ao deferir o conhecimento desses recursos aos tribunais judiciais.»
Na verdade, a Constituição reserva aos tribunais administrativos a competência para o julgamento dos recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (art.º 212.º, n.º 3); o motivo da desconformidade constitucional da norma desaplicada, na parte em que atribui competência ao Tribunal do Trabalho para conhecer desta matéria, foi essencialmente encontrado no artigo 212.º n.º 3 da Constituição ao proclamar que 'compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais'. Entendeu, assim, o tribunal recorrido que a Constituição impõe uma reserva absoluta de jurisdição, em matérias administrativas, a favor dos tribunais administrativos, e que a aludida norma do artigo 87.º da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro, quebrando essa reserva, ofendia irremediavelmente aquela disposição constitucional.
4. Acontece, porém, que o Tribunal tem entendido [Acórdãos nºs 522/08 e 632/09] que não é inconstitucional admitir excepções à competência contenciosa dos tribunais administrativos, mesmo que a relação material controvertida subjacente ao caso concreto seja resolvida pela aplicação de normas de direito administrativo, considerando que a remissão para actuação e competência para tribunais não administrativos não pode ser considerada como atentatória do modelo que a Constituição da República quis consagrar quanto ao âmbito material da justiça administrativa. Conforme se salienta, por exemplo, no Acórdão n.º 211/07, da jurisprudência do tribunal 'ressalta o entendimento, várias vezes sublinhado, de que a introdução, pela revisão constitucional de 1989, no então artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, da definição do âmbito material da jurisdição administrativa, não visou estabelecer uma reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer no sentido de excludente, de atribuição a tal jurisdição da competência para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. O preceito constitucional não impôs que todos estes litígios fossem conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da possibilidade de atribuição de alguns deles à jurisdição “comum”), nem impôs que esta jurisdição apenas pudesse conhecer desses litígios (com absoluta proibição de pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e insusceptíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das jurisdições'. Citando VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa – (Lições), 8.ª edição, pág. 113) o Acórdão já referido assevera que o Tribunal tem também aceitado que a 'definição constitucional do âmbito-regra, que corresponde à justiça administrativa em sentido material, deve ser entendida como uma garantia institucional, da qual deriva para o legislador ordinário tão-somente a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições. Ou seja: a Constituição proíbe, no aludido preceito, a descaracterização ou desfiguração da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal nesta matéria. Mas, conclui o Acórdão, «não fica proibida a atribuição pontual do julgamento de questões substancialmente administrativas aos tribunais judiciais, admitindo-se a razoabilidade dessas remissões, que podem ter justificações diversas e muitas delas tradicionais na nossa organização judiciária – por exemplo, a apreciação das decisões das autoridades administrativas em matéria de contra-ordenações, os litígios relativos à indemnização por expropriação, o contencioso de actos de registo e notariais – e designadamente naquelas situações de fronteira em que há dúvidas de qualificação ou zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes.»
Ora, mesmo aceitando que a relação jurídica de que emerge o litígio em causa no presente recurso é de natureza administrativa, ainda assim é de concluir que a solução legal não descaracteriza injustificadamente a jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal nesta matéria, pois tem como fundamento a circunstância de o diploma definir o regime de licenciamento e de fiscalização da prestação de serviços e dos estabelecimentos, em que sejam exercidas actividades de apoio social do âmbito da segurança social relativas a crianças, jovens, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como os destinados à prevenção e reparação de situações de carência, de disfunção e de marginalização social, que ficam sujeitos à inspecção e fiscalização dos serviços competentes do Ministério da Solidariedade e Segurança Social. Trata-se, assim, de uma especial ligação material à área do trabalho, explicando-se a competência dos tribunais do trabalho por terem uma intervenção funcional nessas áreas, o que, pelas apontadas razões, não é proibido pela Constituição.
Conclui-se, assim, que a atribuição da competência ao tribunal recorrido para conhecer dos litígios resultantes da actividade da Segurança Social não atinge o núcleo essencial da organização material das jurisdições nos termos em que a jurisprudência do Tribunal, que não se vê razões para rever, interpreta o n.º 3 do artigo 212.º da Constituição.
Reitera-se, nestes termos, esta jurisprudência, pelo que se conclui pela não inconstitucionalidade da norma em causa.
5. Decide-se, em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida para que seja reformulada de acordo com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Outubro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.