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Processo n.º 491/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 491/2011:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, da decisão proferida pela Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em 29 de Março de 2011 (fls. 82 a 85).
2. Perante a ausência de indicação do teor da interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada, a Relatora proferiu despacho, em 07 de Julho de 2011 (fls. 107), através do qual convidou o recorrente, nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da LTC, a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso.
No seguimento desse convite, o recorrente viria a esclarecer que pretendia que fosse apreciada a constitucionalidade de uma interpretação extraída do artigo 40º, alínea c), do CPP, segundo a qual “o impedimento apenas existe na fase rescisória, não se estendendo à fase rescidente”, por entender que aquela não respeita “a Constituição, concretamente o artigo 32º/nºs. 1, 4 e 5, na medida em que se entende que diminui garantias de defesa de um arguido” (fls. 111).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 95) com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. Na medida em que o Tribunal Constitucional apenas funciona como tribunal de recurso, não lhe é permitido conhecer da inconstitucionalidade de normas (ou interpretações normativas) que não tenham sido efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (cfr. artigo 79º-C da LTC).
Cabe, portanto, aos recorrentes delinear o objecto do recurso de modo que a interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada corresponda, integral e fidedignamente, à que foi efectivamente aplicada pela decisão alvo de recurso. Sucede, porém, que, nos presentes autos, a interpretação normativa que o recorrente fixou como objecto do recurso não corresponde, precisamente, à adoptada pela decisão recorrida.
Com efeito, a decisão recorrida nunca afirmou que o impedimento decorrente da alínea c) do artigo 40º do CPP não se aplicava na fase rescindente – ou seja, na fase durante a qual é formulado juízo acerca dos fundamentos de revisão de decisão já transitada em julgado. O que a decisão recorrida concluiu foi algo assaz diferente. Concluiu que, apesar de o juiz que participa na fase de julgamento em primeira instância não poder participar no julgamento do recurso de revisão, nada obsta a que o mesmo intervenha, na fase preliminar do recurso, limitando-se a instruir os autos que devem subir ao Supremo Tribunal de Justiça com todos os elementos necessários à boa decisão.
Para melhor comprovação do que acaba de se afirmar, vejam-se os seguintes extractos da decisão recorrida:
“A fase do juízo rescindente, a que aqui nos interessa, inicia-se no tribunal que proferiu a decisão a rever (fase rescindente preliminar), por apenso aos autos onde ela foi proferida (artº 452º do C.P.P.), através da apresentação de requerimento a pedir a revisão (…).
Sobre este requerimento, deverá incidir despacho do juiz do tribunal onde é proferida a sentença.
(…)
Foi esta a última tese defendida no processo nº 1707/04-1, desta Relação, de 17/01/2005, onde se escreve: a função do juiz de primeira instância, no pedido de revisão, cinge-se a receber a petição e a transmiti-la ao Supremo Tribunal de Justiça, depois de instruída e informada (…).
O juiz de primeira instância nada tem a julgar. Quem detém todo o poder jurisdicional, nos processos de revisão, é o Supremo Tribunal de Justiça, o qual intervirá, depois de o processo lhe ser remetido, com a informação do juiz.
(…)
No caso em apreço, a Sr.ª Juíza interveio no julgamento e proferiu a sentença a rever. Porém, neste processo de revisão, que corre por apenso, a sua função é tão só, como acima se referiu, admitir o requerimento, notificar os sujeitos processuais afectados com o recurso, instruir o processo e remetê-lo para o STJ, acompanhado de informação sobre o mérito do pedido. A Srª Juíz[a] nada decide neste processo, pois a informação a que se refere o artº 454º do C.P.P. não passa disso mesmo – de uma informação, a qual não pressupõe a formulação de qualquer juízo sobre a culpabilidade.” (fls. 83 a 85)
Atento o teor da decisão recorrida, conclui-se, pois, que a interpretação normativa que constitui objecto do presente recurso não corresponde à adoptada, pelo que mais não resta do que concluir pela impossibilidade legal de conhecimento do objecto do recurso, por força do artigo 79º-C da LTC:
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. O recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da LTC, cujos termos ora se resumem:
“Foi com enorme surpresa que o Recorrente recebeu a decisão sumária em questão.
Na verdade, o que o Recorrente alega que a decisão recorrida afirma é exactamente o que a decisão sumária alega que a aquela não diz...
Cremos que poderá ter existido, provavelmente, falha da parte do Recorrente (rectius, do seu mandatário) na exposição da inconstitucionalidade, pois só assim se compreende que dizendo o Recorrente e a Exma. Relatora a mesma coisa, se tenha entendido algo de diverso.
E ou se trata realmente de uma questão de semântica, ou então existe alguma indefinição na delimitação das fases do recurso de revisão penal.
Vejamos o que escreveu a primeira instância, em resposta ao pedido de declaração do impedimento (depois de entrada a petição e deferida a inquirição de três testemunhas e recusada a inquirição de outras testemunhas e a requisição de documentos) “...a intervenção do tribunal onde foi proferida a sentença que deve ser revista está prevista especificamente, e resume-se em recolher os elementos e prepará-lo, a fim de o remeter ao Supremo Tribunal, acompanhado de informação sobre o mérito do pedido”.
Um pouco antes, a sentença da primeira instância, explicando que o recurso de revisão compreende a fase do juízo rescindente e a fase do juízo rescisório, escreve que a primeira parte — juízo rescindente — “...abrange toda a tramitação, desde a petição até à decisão do STJ...”
Ou seja, o que a primeira instância entende é que, embora as diligências que tem de realizar (inquirição de testemunhas e elaboração de uma informação escrita sobre a prova produzida) se incluem, claramente, na fase do juízo rescindente, como “...não assume carácter decisório...” (o STJ é quem decide), então não há impedimento.
Inconformado com este entendimento, recorreu o Recorrente para o Tribunal da Relação de Guimarães, que profere um acórdão (a decisão aqui recorrida, na realidade) que vai exactamente na defesa da decisão da primeira instância.
Vejamos, então, o que refere aquele aresto: “Este recurso (nota nossa: o de revisão), como bem se escreve no despacho recorrido, comporta duas fases: a fase do juízo rescindente e a fase do juízo rescisório. A fase do juízo rescindente, a que aqui nos interessa, inicia-se no tribunal que proferiu a decisão rescindente (fase rescindente preliminar), por apenso aos autos onde ela foi proferida, através da apresentação de requerimento a pedir a revisão, devidamente motivado e com indicação dos meios de prova...Em casos como o dos autos em que o pedido de revisão tem por fundamento o previsto na al. d) do nº 1 do art° 449° do C.C.P. — a descoberta de novos factos ou meios de prova -, incumbe ainda ao tribunal que proferiu a decisão instruir o processo, proceder «às diligências que considerar indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas, nos termos do nº 1 do artigo 453° do C.P.P. Só após isso proferirá a referida informação e remeterá os autos para o S.T.J.”.
Mais adiante, e já sustentando que não ocorre impedimento, escreve-se na decisão recorrida: “...neste processo de revisão, que corre por apenso, a sua função é tão só, como acima se referiu, admitir o requerimento, notificar os sujeitos processuais afectados com o recurso, instruir o processo e remete-lo para o STJ acompanhado de informação sobre o mérito do pedido. A Sra. Juiz nada decide neste processo, pois a informação a que se refere o art° 454° do C.P.P. não passa disso mesmo...”
Ora, o que a decisão recorrida vem, no fundo, dizer é que embora o Mmo. Juiz a quo participe na fase rescindente, chama-lhe fase rescindente preliminar e, nesta, não ocorre impedimento.
Porém, o que sucede é que a tal fase preliminar fica dentro da fase rescindente, e o Recorrente entende que a norma do artigo 40°/c) do CPP não distingue a fase do juízo rescindente da fase do juízo rescisório; logo, ocorre impedimento.
E, diga-se, é fraca a argumentação da decisão recorrida quando refere não poder surgir uma “legítima desconfiança na imparcialidade do julgador”, pois “apenas” decide que prova produzir e emite uma informação escrita sobre o mérito de tal prova.
É certo que o STJ é quem decide, mas obviamente que este Tribunal vai ler a informação do Juiz da primeira instância e, obviamente, fica limitado pela decisão daquele Juiz quanto à prova a produzir.
(…)
Dito isto, e lendo-se a decisão ora em reclamação, torna-se difícil compreender como se pode afirmar que o acórdão recorrido não diz aquilo que escreve.
Com efeito, o acórdão recorrido afirma que não ocorre impedimento na fase preliminar do juízo rescindente, sendo que esta fase preliminar está dentro do juízo rescindente, o qual se inicia com a autuação do requerimento a solicitar a revisão.
O que o acórdão recorrido faz é autonomizar — sem que o legislador o faça - a intervenção do Juiz da primeira instância dentro da fase rescindente, concluindo inexistir impedimento; mas, na prática, como aquela fase preliminar se desenvolve dentro da fase rescindente, então está a dizer que não há impedimento, pois apenas existem duas fases no recurso de revisão.
Uma última nota para realçar a extrema importância desta questão e que, ao que se sabe, nunca foi apreciada por esse douto Tribunal; e, ainda, que, contrariamente a muitos outros processos, o Recorrente não é movido por intuitos dilatórios (pelo contrário: quanto mais cedo o processo chegar ao STJ mais rapidamente pode saber se a revisão avança ou não).” (fls. 129 a 131)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos, que ora se sintetizam:
“(…)
4.º
A Relação entendeu que o recurso extraordinário de revisão comportava duas fases: a fase do juízo rescindente e a fase do juízo rescisório.
5º
A segunda das fases começava no momento em que, autorizada a revisão pelo Supremo Tribunal, o processo baixava ao tribunal de categoria e composição idêntica à do tribunal que proferiu a decisão a rever (artigo 457.º, n.º 1, do CPP).
6º
A fase do prazo rescindente é a que agora está em causa.
7º
Nessa fase, ainda segundo a Relação, distinguem-se dois momentos diferentes: o primeiro inicia-se e é tramitado no tribunal que proferiu a decisão a rever, culminando, com a remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça acompanhada da informação sobre o mérito do recurso (artigo 451.º a 454.º do CPP).
8º
Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, inicia-se o segundo momento dessa fase, que corre naquele Supremo Tribunal, finalizando com a negação ou autorização da revista (artigos 455.º e 457.º do CPP).
9º
No caso dos autos a Senhora Juíza que tramitava o processo no primeiro dos momentos referidos (artº 7º), tinha intervindo no julgamento e proferido a sentença a rever.
10º
Segundo o recorrente, a Senhora Juíza estaria abrangida pelo impedimento constante do artigo 40.º, alínea c) do CPP, que estabelece que nenhum Juiz pode intervir em pedido de revisão, relativo a processo em que tiver participado em julgamento anterior.
11º
A Relação entende que esse impedimento só tem lugar no segundo momento da fase rescindente, a que corre no Supremo Tribunal de Justiça, e não no primeiro momento dessa fase, a que no Acórdão recorrido também se designa por “fase rescindente preliminar”.
12º
Após notificação nos termos do artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC, o recorrente veio esclarecer que a interpretação que pretendia ver apreciada era a que considerava que o impedimento previsto no artigo 40.º, alínea c) do CPP, apenas existia na fase rescisória, não se estendendo à fase rescindente.
13º
Efectivamente, como se diz na Douta Decisão Sumária, a norma não foi aplicada daquela forma.
14º
Apreciar a constitucionalidade de interpretação que vem questionada pelo recorrente, significaria abranger uma dimensão normativa, em relação à qual a própria Relação entendeu que se verificava o impedimento, o que não faria sentido.
15º
Face à forma clara e inequívoca como a norma foi interpretada e aplicada, poderia pensar-se que apenas se tratou de falta de rigor na concretização.
16º
Não foi, isso, no entanto, o que se verificou.
17º
Como se vê da reclamação da Decisão Sumária, o recorrente insiste no que anteriormente afirmara, dizendo inclusivamente, que, face à lei, apenas existem duas fases no recurso de revisão - a rescindente e a rescisória – não sendo autonomizável dentro da primeira a intervenção do Juiz da primeira instância.
18º
Ora, independentemente da lei distinguir ou não, a decisão recorrida distinguiu e era essa, a exacta dimensão normativa aplicada, que o recorrente devia ter erigido como objecto do recurso, o que não fez.
19º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.” (fls. 133 a 136)
II – Fundamentação
4. Manifestamente, o ora reclamante discorda da interpretação normativa adoptada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que considerou que a fase rescindente deveria ser segmentada numa “fase rescindente preliminar” e numa “fase rescindente de julgamento”, de modo que o impedimento apenas abrangeria um juiz que interviesse nesta última fase. Ora, conforme já determinou a decisão ora reclamada, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da constitucionalidade de normas ou de interpretações normativas que tenham sido efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (artigo 79º-C, da LTC), o que não sucedeu no caso dos presentes autos. Com efeito, segundo o reclamante a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães teria entendido que o impedimento previsto na alínea c) do artigo 40º do CPP não se aplica na fase rescindente. Pelo contrário, como demonstrado pelo extracto daquela decisão (que foi expressamente transcrito pela decisão ora reclamada), o Tribunal da Relação de Guimarães considerou que tal impedimento se aplica, ainda que limitado à “fase rescidente de julgamento”.
Por conseguinte, a decisão recorrida nunca considerou que o impedimento apenas se aplicava na “fase rescisória”, pelo que o modo como o reclamante configurou o objecto do recurso não corresponde, de modo algum, à interpretação normativa efectivamente adoptada. Resta, portanto, confirmar a decisão ora reclamada.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 30 de Novembro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.