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Processo n.º 567/11
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Pela decisão sumária n.º 450/11, proferida nos autos, não se tomou conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente A., por carecer de conteúdo normativo nem ter sido suscitada perante o Tribunal recorrido qualquer questão de inconstitucionalidade normativa atinente ao preceito legal nele em referência.
A recorrente, inconformada, dela reclamou para a conferência, sustentando, de essencial, estar em causa interpretação normativa cuja inconstitucionalidade foi oportunamente suscitada em termos que o Tribunal recorrido claramente compreendeu, pelo que se impõe a admissão do recurso e seu prosseguimento para alegações.
A recorrida Fazenda Pública, em resposta, defende a manutenção do julgado por não aplicação, pelo Tribunal recorrido, das normas sindicadas.
2. Cumpre apreciar e decidir.
Sendo o requerimento de interposição do recurso que delimita o respectivo objecto, é por referência a tal peça processual que se deve aferir da sua idoneidade para suportar o juízo de inconstitucionalidade que o recorrente pretende, através dele, ver declarado.
No caso, a recorrente sustenta no seu requerimento de interposição do recurso que o Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão de que recorre, «interpretou e aplicou o Artigo 715.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, de molde a poder substituir-se ao Tribunal “a quoâ€, depois de ter anulado a sentença recorrida, proferindo uma nova sentença de mérito, sem ouvir previamente as partes no processo, contrariamente ao que se prevê expressamente no n.º 3 do artigo 715.º do CPC, fazendo daqueles preceitos uma interpretação e aplicação materialmente inconstitucional e ofensiva da garantia constitucional de um “processo judicial equitativo†e do princípio do contraditório, e assim violando materialmente o disposto no Art.º 20, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa».
Sendo irrelevante o modo como a recorrente qualifica o objecto do recurso, o que importa verificar é se a materialidade do que se sujeita à apreciação do Tribunal Constitucionalidade assume, de facto, os traços de generalidade e abstracção inerentes a um qualquer critério normativo de decisão, ainda que extraído, por via interpretativa, de dada fonte legal, sendo certo que, como é sabido, apenas normas ou verdadeiras interpretações normativas podem constituir objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
Ora, não se afigura, no caso vertente, que aquilo que a ora reclamante designou como sendo uma dada interpretação do artigo 715.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, o seja efectivamente.
Com efeito, a alegada violação de uma norma legal ou o não acatamento da injunção processual nela expressamente contida não constitui interpretação da lei mas precisamente a sua violação, pelo que, em rigor, não se questiona desse modo a constitucionalidade de qualquer solução legal, ainda que por reporte a um dos sentidos interpretativos possíveis da lei, mas da decisão judicial que alegadamente a violou.
Aliás, no caso, não se trata sequer de um qualquer entendimento normativo do preceito legal em referência mas da decisão de considerar que, no contexto processual concreto dos autos, não era devida a nova audição das partes face à oportunidade processual que antes lhes foi concedida de se pronunciar sobre o objecto da acção e do recurso.
Assim sendo, pretendendo a recorrente, ora reclamante, de facto, sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade da decisão proferida pelo TCAS que julgou, no caso dos autos, dispensável a audição das partes para o efeito de prolação de nova sentença de mérito, após anulação da sentença do TAFS, e não de um qualquer critério normativo de decisão aplicável a uma generalidade de casos idênticos, seja a norma do artigo 715.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, seja interpretação que nela ainda se contenha, não pode o recurso de constitucionalidade prosseguir em ordem a apurar da invocada inconstitucionalidade decisória, tal como sumariamente decidido.
Por outro lado, e contrariamente ao que defende a reclamante, também não se vislumbra conteúdo normativo na argumentação por ela usada na arguição de nulidade decidida no acórdão recorrido que permita concluir pela observância do ónus de suscitação legalmente imposto (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC).
De facto, sustentou então a ora reclamante, com pertinência para a aferição de um tal pressuposto processual, o seguinte:
«(…) é manifesto que (o) Tribunal não cumpriu a obrigação de ouvir os interessados, como lhe é legalmente imposto no nº 3 do Artº 715º do CPC, antes de decidir a questão sobre que se pronunciou no acórdão, desrespeitando assim uma norma essencial de garantia do direito de audiência das partes, com manifesta influência na decisão a proferir.
Ao actuar dessa forma, fez-se no acórdão recorrido uma interpretação e aplicação inconstitucional do Artº 715º nºs 1 e 3 do CPC, com violação do disposto Artº 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, que assegura a todos os cidadãos “um processo judicial equitativoâ€, com respeito pelo princípio fundamental do contraditório, o que pressupõe e exige que nenhuma sentença ou decisão seja proferida sem se ouvirem os argumentos das partes interessadas.
(…) “um processo equitativo e leal deve assegurar a cada uma das partes o poder expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão†e (…) “o direito de defesa e o princípio do contraditório constituem uma decorrência do direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo julgado por um órgão imparcial e independenteâ€, o que aliás, diga-se em abono da verdade, é garantido pelo Artº 715.º nº 3 do C.P.C., o qual foi desrespeitado e mal aplicado, de modo aliás materialmente inconstitucional pelo Tribunal Central neste processo e no acórdão recorrido.
Em conclusão, este Tribunal ao proferir o acórdão citado (…), sem ouvir as partes interessadas, como lhe impõe o disposto no Artº 715º nº 3 do Código de Processo Civil, desrespeitou esta disposição e ainda o Artº 3º nº 3 do CPC, tendo feito ainda uma interpretação das referidas disposições do CPC materialmente contrária ao disposto no Artº 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa o que vicia o acórdão proferido de patente nulidade, por ter omitido o acto fundamental de ouvir os interessados antes de proferir a decisão (…)»
Ora, em nenhum momento concretizou a ora reclamante, como lhe era exigível, qual o conteúdo da interpretação do artigo 715.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, que reputava de inconstitucional, sendo que o que se descortina nos excertos transcritos, como objecto de tal invocação, é, mais uma vez, a própria omissão de prévia audição das partes invocada como fundamento da arguida nulidade e não um qualquer critério normativo de decisão, sendo mais uma vez irrelevante que a reclamante a tenha então designado como constituindo uma dada interpretação da lei.
E não pode a ora reclamante pretender suprir a inobservância cabal de um tal ónus de suscitação com a alegada compreensão do seu objecto pelo Tribunal recorrido, quando este se limita a sustentar, em fundamento do indeferimento da arguição de nulidade, que não há lugar a cumprir o disposto no artigo 715.º n.º 3 do CPC porquanto, «quer na petição inicial, quer nas alegações de recurso interposto, a recorrente, ora arguente, identifica o objecto da decisão a proferir, ou seja, a pretensão a ser apreciada pelo Tribunal, pelo que se tem de entender, necessariamente, que já se pronunciou sobre a decisão a proferir, mesmo em substituição do Tribunal recorrido».
Na verdade, em tal decisão o Tribunal recorrido não se pronunciou legitimamente sobre qualquer questão de inconstitucionalidade, tendo-se limitado a considerar não verificada a arguida nulidade, sendo tardia a delimitação do seu conteúdo ora feita pela reclamante, com base nela, na reclamação em apreciação.
Assim sendo, seja pela inidoneidade do seu objecto, seja pela inobservância do ónus de prévia e adequada suscitação de questão de inconstitucionalidade normativa, não está o recurso em condições processuais de prosseguir para apreciação de mérito.
É, pois, de confirmar a decisão sumária que, com tal fundamento, não conheceu do objecto do recurso.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação deduzida, nos presentes autos, pela recorrente A..
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.