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Processo n.º 704/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por acórdão proferido em 30 de Julho de 2010, no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi, para além do mais, decidido, condenar:
- O arguido A., como co-autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, e como reincidente, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão;
- A arguida B., como co-autora material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no mesmo artigo 21.º, n.º 1, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
- O arguido C., como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido igualmente nesse artigo 21.º, n.º 1, e como reincidente, na pena de 7 anos de prisão.
Os arguidos recorreram deste Acórdão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido em 21 de Junho de 2011, negou provimento aos recursos.
Após correcção deste Acórdão, os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
“…por se entender que, salvo o devido respeito por diferente opinião, no caso concreto dos presentes autos e nas decisões proferidas em primeira instância pelo Tribunal Colectivo junto do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz e em recurso por este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, foram aplicadas e interpretadas as disposições legais dos artigos 256.º, 257.º e 258.º do Código de Processo Penal, referentes à detenção dos arguidos, em violação do disposto no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, em violação do Direito Fundamental, com dignidade de Direito, Liberdade e Garantia, que é o Direito à Liberdade.
Assim como, foram também interpretados e aplicados, no presente caso, os artigos 174.º, 177.º e 178.º do Código de Processo Penal, referentes às formalidades a que devem obedecer as revistas, buscas e apreensões, em violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 8 e 34.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, em violação do Direito Fundamental, com dignidade de Direito, Liberdade e Garantia, que é o Direito à Inviolabilidade do Domicílio.”
Notificados para explicitarem quais as interpretações sustentadas na decisão recorrida dos preceitos indicados no requerimento de interposição de recurso cuja constitucionalidade pretendiam ver fiscalizadas, os arguidos apresentaram um requerimento com o seguinte teor:
Com o presente recurso para este Venerando Tribunal Constitucional pretendem os recorrentes ver apreciada a (in)constitucionalidade da decisão proferida em primeira instância pelo Tribunal Judicial da Figueira da Foz e posteriormente confirmada em recurso penal pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, por entenderem que, com o devido respeito por entendimento diverso, as decisões recorridas fizeram uma incorrecta aplicação (contra preceitos constitucionalmente consagrados) da figura jurídica da “detenção em flagrante delito” prevista nos artigos 256.º, 257.º e 258.º do Cód. Proc. Penal. E assim, porque as referidas decisões de que se recorre entenderam qualificar como “detenção em flagrante delito” uma situação factual que, a luz da importância e respeito que num Estado de Direito Democrático é devido ao Direito Fundamental, com dignidade de Direito, Liberdade e Garantia, que é o Direito à Liberdade de todo e qualquer cidadão, consagrado no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, não comporta minimamente a aplicação de uma tal figura jurídica tão limitativa do referido Direito, Liberdade e Garantia. Ou seja, e concretizando, consideram os recorrentes que as decisões recorridas violaram o direito à Liberdade constitucionalmente consagrado, na medida em que os factos ocorridos no dia 14 de Julho de 2009 e imputados ao arguido A., que se encontram descritos nos autos do processo crime n.º 109/09.5JACBR (cfr. fls. 335 a 337 dos referidos autos) são manifestamente insuficientes para que se possa dizer que o arguido A. foi detido em “flagrante delito”.
Entendem os recorrentes que em face da excepcionalidade que num Estado de Direito Democrático deve ter a aplicação da figura da “detenção em flagrante delito” – enquanto figura que permite a restrição do Direitos Fundamentais sem intervenção prévia de qualquer entidade judiciária –, os factos como os ocorridos no dia 14 de Julho de 2009 devem ser considerados manifestamente insuficientes para que, em obediência ao artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, se considerem preenchidos os exigentes e apertados requisitos de que o artigo 256.º do Cód. Proc. Penal faz depender a aplicação da figura da “detenção em flagrante delito”.
Entendem os recorrentes que uma situação em que um cidadão é detido na rua pública, sem ter na sua posse – seja em si mesmo, seja no veículo em que se fazia transportar – qualquer produto estupefaciente, nem tão pouco qualquer objecto associado ao manuseamento desse tipo de produto ou sequer uma quantia de dinheiro que indiciasse a intenção de adquirir qualquer produto estupefaciente, nunca poderá ser entendida como “flagrante delito” da prática do crime de tráfego de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01. Tanto mais que nem sequer nas posteriores buscas à residência do referido arguido detido em alegado (mas falso) “flagrante delito” se encontraram quaisquer produtos estupefacientes ou quaisquer objectos associados ao manuseamento e tráfico desses produtos.
Entendemos que pretender-se classificar como em “flagrante delito” a detenção de um cidadão apenas porque este conhece um outro indivíduo ao qual veio a ser apreendido produto estupefaciente, como entenderam as decisões recorridas proferidas pelo Tribunal Judicial da Figueira da Foz e pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, extravasa claramente a figura do “flagrante delito” e não preenche minimamente os requisitos previsto no artigo 256.º do Cód. Proc. Penal, pelo que a detenção e privação da liberdade de qualquer cidadão em semelhante situação só pode ser entendida como uma situação de detenção ilegal e, consequentemente, em violação do Direito Fundamental à Liberdade consagrado no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, os comportamentos imputados ao arguido A. no momento da sua detenção, e que ficaram descritos no respectivo auto de notícia elaborado pela polícia judiciária (a fls. 335 a 337 dos autos de processo crime n.º 109/09.5JACBR) limitam-se ao seguinte:
- “Volvidos cerca de 10 minutos e vindo do sentido do Posto de Combustível da BP, próximo da Estação, foi observado a circular o veículo da marca Ford, modelo Transit, de cor branca, com listas amarelas e matrícula …-..-.., habitualmente conduzido pelo arguido A. o qual foi imediatamente reconhecido a conduzir, sozinho, esta viatura.
O arguido virou para a entrada do estacionamento da Estação e, acto contínuo, esbracejou para o C., o qual, ao aperceber-se daquele, avançou ao seu encontro” (cfr. fls. 336).
Julgar tais factos, como fizeram as decisões recorridas, como suficientes para confirmar a legalidade da detenção do arguido A. levada a cabo pela Policia Judiciária sem prévia intervenção e avaliação de qualquer magistrado é entendimento manifestamente inconstitucional por violação do disposto no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa.
É por isso inconstitucional o entendimento manifestado na decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Figueira da Foz, entre o mais, quando refere que: “Como veremos daqui a pouco (e nem tal seria necessário, perante a apreensão então efectuada da substância estupefaciente), a realização da busca à casa do arguido A. seguiu-se à detenção deste e do arguido C., na posse da heroína então apreendida, não podendo, pois, negar-se (pelo menos prima facie) uma situação de flagrante delito da prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art. 21º/n. 1 D.L. n.º 15/93...”
E também inconstitucional é a decisão posteriormente proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que confirmando o entendimento da primeira instância, refere:
- «...vejamos se os factos mencionados suportam, fora de dúvida, que a detenção dos dois primeiros recorrentes foi operada em flagrante delito.
A resposta será necessariamente afirmativa, isto porquanto foram os recorrentes surpreendidos praticando actos que nos moldes indicados se hão-de conceber como de “empreendimento” do ilícito referido, no seguimento de acções próprias materializando-se em diversas e distintas condutas, e perante uma actuação policial que nas circunstâncias já descritas os percepcionou de forma imediata, “flagrante”.»
Pretendem ainda os recorrentes seja apreciada a (in)constitucionalidade das decisões recorridas por violação do Direito Fundamental, com dignidade de Direito, Liberdade e Garantia, que é o Direito à Inviolabilidade do Domicílio na medida em que, quer a decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Figueira da Foz quer a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, entenderam validar e fundamentar a condenação dos arguidos A. e B. nas buscas e apreensões realizadas na sua casa de habitação. E assim, numa situação em que não existia fundamento válido para a detenção de qualquer um deles em “flagrante delito”, não existia qualquer ordem ou autorização judicial tendente à realização das referidas busca e apreensões e do Auto referente a tais diligências não consta sequer a assinatura ou qualquer outra declaração bastante que demonstre que os arguidos consentiram na sua realização.
Circunstâncias, à excepção da inexistência de “flagrante delito”, que de resto foram admitidas na decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Figueira da Foz ao escrever que “não pode deixar o Tribunal de notar que no auto de busca e apreensão de fls. 373 a 375 do presente processo, referente à habitação do arguido A., não consta, de facto, a assinatura deste nem algo que demonstre o seu consentimento na realização de tal diligência; por outro lado, não existe uma ordem ou autorização judicial tendentes a essa mesma realização.” (cfr. pág. 4 do Acórdão de primeira instância)
Acresce que, é incorrecto e falso o que consta escrito no texto da decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de que “na sequência da sua intercepção, a arguida anuiu a que sua casa fosse buscada (cfr. auto de fls. 373, no qual conta a menção da autorização e a colocação da impressão digital de B.)” – cfr. pág. 26 do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. Na verdade, no texto do referido Auto que consta a fls. 373 e segs. dos autos de processo crime n.º 109/09.5JACBR nada consta no sentido de que B. tenha consentido na busca realizada na sua habitação, nem sequer consta que tal consentimento lhe tenha sido solicitado. Quanto a esta arguida apenas se refere nesse Auto que “Observadas as formalidades legais iniciou-se a diligência na presença de: B., companheira do buscado, filha de D. e E., titular do B.I. n.º …, emitido a 23/05/2007 pelos S.I. C. de Coimbra”, e afinal refere-se que “e para constar se lavrou o presente auto, que vai ser devidamente assinado por todos os intervenientes, à excepção da B. que não assina por não o saber fazer.”
Ora, será também manifestamente inconstitucional, por violação do Direito à Inviolabilidade do Domicílio e até do direito à Dignidade e Igualdade (cfr. art. 13.º da Constituição da República Portuguesa), considerar que a aposição de impressão digital num Auto de busca e apreensão por quem não sabe ler nem escrever e por isso está impedido de por si só compreender o que consta escrito no referido documento, serve para demonstrar que a pessoa deu o seu consentimento à realização da busca, e assim para dar cumprimento à exigência do artigo 174.º, n.º 5 alínea b) do Cód. Proc. Penal no sentido de que “os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qual quer forma, documentado”.
Tal consentimento, prestado numa situação em que apenas está presente o visado e a entidade policial que pretende realizar a busca, terá de ser prestado e documentado de forma a não deixar quaisquer dúvidas. E tratando-se de pessoa que não sabe ler nem escrever, como era o caso, a validade de tal consentimento – que implica a restrição de Direitos, Liberdades e Garantias – exigirá necessariamente a assistência do visado por defensor (cfr. art. 64.º, n.º 1 alínea c) do Cód. Proc. Penal).
A verdade é que quanto à arguida aqui recorrente B. nem sequer é referido no texto do Auto de busca e apreensão realizada na sua casa de habitação qualquer fundamento legal para a referida busca, esta apenas aí é referida na qualidade de “companheira do buscado” e não como arguida e também visada pela diligência de busca realizada. Acontece que sendo o alvo da busca também a sua casa de habitação, quanto a esta teriam também de ser respeitadas as exigências do artigo 174.º do Cód. Proc. Penal, pois só assim se respeitaria o seu Direito Fundamental à privacidade do domicílio.
Pelo que, não estando minimamente respeitados os requisitos legais que os artigos 174.º, 177.º e 178.º do Cód. Proc. Penal impõem à realização de tais diligências de prova, as mesmas foram realizadas em violação do direito, constitucionalmente consagrado, à privacidade do domicílio dos arguidos/recorrentes A. e B.. Logo tais diligências teriam de, em obediência ao disposto nos artigos 32.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa, ter sido consideradas pelas decisões recorridas como meios de prova inadmissíveis e nulos (cfr. art. 126.º, n.º 3 do Cód. Proc. Penal) por configurarem uma intromissão na vida privada não permitida. O que, inadmissivelmente, não aconteceu.
Pretende-se, em resumo, com o presente recurso que este Venerando Tribunal Constitucional declare que quer a detenção em flagrante delito (cfr. arts. 255.º e 256.º do Cód. Proc. Penal), quer a realização de buscas e apreensões em habitações (cfr. arts 174.º e segs. do Cód. Proc. Penal), quando realizadas directamente por órgãos de polícia criminal, sem intervenção e prévia autorização do Juiz, e porque estes são actos processuais que implicam a restrição total dos Direitos, Liberdades e Garantias consagrados nos artigos 27.º – Direito à Liberdade – e 34.º – Direito ao Domicílio Inviolável – da Constituição da República Portuguesa, estão reservados a situações excepcionais em que a solicitação de prévia autorização do Juiz é de todo impossível e inviável, O que não era o caso da situação dos auto de processo crime n.º 109/09.5JACBR.
E assim, de forma a afirmar-se, com a autoridade deste Venerando Tribunal Constitucional, a regra da realização de tais actos processuais penais por despacho da autoridade judiciária competente e a excepcionalidade da sua realização por decisão unilateral dos órgão de polícia criminal.
São estas, resumidamente, as inconstitucionalidades das decisões recorridas que os recorrentes pretendem ver apreciadas por este Venerando Tribunal Constitucional, e que mais detalhadamente desenvolverão em alegações a produzir no presente recurso após notificação para o efeito (cfr. art. 79.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional).
Foi proferida decisão sumária em 19 de Outubro de 2011 de não conhecimento do recurso com os seguintes fundamentos:
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge?se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que, na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando?se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
No requerimento de esclarecimento apresentado pelos Recorrentes, que não prima pela clareza, estes invocam a inconstitucionalidade da decisão recorrida, na parte em que qualificou como detenção em flagrante delito a situação descrita nos autos e na parte em que validou e relevou as buscas realizada, atentas as particularidades do caso concreto.
Não se pede, pois, a declaração de inconstitucionalidade de qualquer preceito legal ou de qualquer critério de cariz normativo utilizado pela decisão recorrida, mas sim da aplicação alegadamente errada que esta fez dos preceitos legais ao caso concreto.
Sendo o próprio sentido da decisão que é arguido de inconstitucional e não admitindo o nosso sistema de recursos para o Tribunal Constitucional a figura do denominado recurso de amparo, não pode o recurso ser conhecido, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos previstos no artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.
Os Recorrentes reclamaram desta decisão, alegando o seguinte:
“Nos termos da decisão sumária proferida nos presentes autos de recurso e de que aqui se reclama, entendeu o Excelentíssimo Relator decidir no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto por A., B. e C..
Decisão essa que, resumidamente, fundamenta da seguinte forma:
- “No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
(...)
Sendo o próprio sentido da decisão que é arguido de inconstitucional e não admitindo o nosso sistema de recursos para o Tribunal Constitucional a figura do denominado recurso de amparo, não pode o recurso ser conhecido, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos previstos no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
Resulta assim do teor da decisão de que aqui se reclama que o Excelentíssimo Relator decidiu não conhecer o objecto do presente recurso por, no seu entender, os recorrentes não terem suscitado a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica ou a inconstitucionalidade de qualquer interpretação de normas jurídicas. Entendeu o Excelentíssimo Relator que através do presente recurso antes pretendem os recorrentes ver apreciada a inconstitucionalidade da decisão anteriormente proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra em si mesma, recurso esse que julga inadmissível à luz do sistema jurídico português de fiscalização de constitucionalidade.
Esclarece-se, e com o devido respeito pelo entendimento (com que não concordam) que assim ficou manifestado pelo Excelentíssimo Conselheiro Relator, que o que pretendem os recorrentes com o presente recurso para este Venerando Tribunal Constitucional é exactamente ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação que na decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra foi dada às normas jurídicas dos artigos 256.º, 257.º e 258.º do Código de Processo Penal. Normas jurídicas essas que, entendem os recorrentes, aí foram interpretadas em violação do disposto no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa e do Direito Fundamental à Liberdade aí consagrado.
E pretendem também os recorrentes seja apreciada a inconstitucionalidade da interpretação que nessa mesma decisão do Tribunal da Relação de Coimbra foi dada às normas jurídicas dos artigos 174.º, 177.º e 178.º do Código de Processo Penal. Normas jurídicas essas que, entendem os recorrentes, aí foram interpretadas em violação do Direito Fundamental do Domicílio Inviolável consagrado nos artigos 32.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa.
E esse sentido e objecto do recurso interposto para este Venerando Tribunal Constitucional – apreciação e declaração da inconstitucionalidade da interpretação que no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra foi dada às normas jurídicas dos artigos 256.º, 257.º, 258.º, 174.º, 177.º e 178.º do Código de Processo Penal – resulta claramente do requerimento de interposição do presente recurso (a fls. 2809 a 2811 dos autos de Processo Crime n.º 109/09.5JACBR.C2) e também do requerimento que em 14/10/2011 os recorrentes juntaram aos presentes autos de recurso em resposta ao despacho proferido pelo Excelentíssimo Relator em 04/10/2011.
Deste último requerimento de resposta dos recorrentes ao despacho do Excelentíssimo Relator proferido em 04/10/2011, resulta expressamente o sentido da interpretação dada pelo Acórdão recorrido às referidas normas jurídicas do Código de Processo Penal que os recorrentes reputam de inconstitucional e que pretendem ver apreciada por este Venerando Tribunal Constitucional.
E assim, nomeadamente, quando aí se refere, quanto à interpretação dada aos artigos 256.º, 257.º e 258.º do Código de Processo Penal referentes à figura jurídica da detenção em flagrante delito, o seguinte:
- «Entendem os recorrentes que uma situação em que um cidadão é detido na rua pública, sem ter na sua posse – seja em si mesmo, seja no veículo em que se fazia transportar – qualquer produto estupefaciente, nem tão pouco qualquer objecto associado ao manuseamento desse tipo de produto ou sequer uma quantia de dinheiro que indiciasse a intenção de adquirir qualquer produto estupefaciente, nunca poderá ser entendida como “flagrante delito” da prática do crime de tráfego de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01. Tanto mais que nem sequer nas posteriores buscas à residência do referido arguido detido em alegado (mas falso) “flagrante delito” se encontraram quaisquer produtos estupefacientes ou quaisquer objectos associados ao manuseamento e tráfico desses produtos.»
E também quando aí se refere, quanto à interpretação dada aos artigos 174.º, 177.º e 178.º do Código de Processo Penal referentes às revistas e buscas, o seguinte:
- «Ora, será também manifestamente inconstitucional, por violação do Direito à Inviolabilidade do Domicílio e até do direito à Dignidade e Igualdade (cfr. art. 13.º da Constituição da República Portuguesa), considerar que a aposição de impressão digital num Auto de busca e apreensão por quem não sabe ler nem escrever e por isso está impedido de por si só compreender o que consta escrito no referido documento, serve para demonstrar que a pessoa deu o seu consentimento à realização da busca, e assim para dar cumprimento à exigência do artigo 174.º n.º 5 alínea b) do Cód. Proc. Penal no sentido de que “os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado”.»
E assim, tendo o presente recurso para este Venerando Tribunal Constitucional por objecto a apreciação da inconstitucionalidade da interpretação que na decisão recorrida ficou feita das normas jurídicas dos artigos 256.º, 257.º, 258.º, 174.º, 177.º e 178.º do Código de Processo Penal, por violação do disposto nos artigos 13.º, 27.º, 32.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa, é o mesmo perfeitamente admissível inexistindo qualquer fundamento para que não se conheça do seu objecto.”
O Ministério Público respondeu, pronunciando-se no sentido do indeferimento da reclamação apresentada.
Fundamentação
A decisão reclamada não conheceu do recurso por ter considerado que os Recorrentes não questionaram a constitucionalidade de qualquer critério normativo mas sim de meras operações de subsunção de disposições legais ao caso concreto.
Os Recorrentes discordam deste entendimento, alegando que impugnaram a constitucionalidade de verdadeiras normas, designadamente quando escreveram o seguinte:
- «Entendem os recorrentes que uma situação em que um cidadão é detido na rua pública, sem ter na sua posse – seja em si mesmo, seja no veículo em que se fazia transportar – qualquer produto estupefaciente, nem tão pouco qualquer objecto associado ao manuseamento desse tipo de produto ou sequer uma quantia de dinheiro que indiciasse a intenção de adquirir qualquer produto estupefaciente, nunca poderá ser entendida como “flagrante delito” da prática do crime de tráfego de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01. Tanto mais que nem sequer nas posteriores buscas à residência do referido arguido detido em alegado (mas falso) “flagrante delito” se encontraram quaisquer produtos estupefacientes ou quaisquer objectos associados ao manuseamento e tráfico desses produtos.»
- «Ora, será também manifestamente inconstitucional, por violação do Direito à Inviolabilidade do Domicílio e até do direito à Dignidade e Igualdade (cfr. art. 13.º da Constituição da República Portuguesa), considerar que a aposição de impressão digital num Auto de busca e apreensão por quem não sabe ler nem escrever e por isso está impedido de por si só compreender o que consta escrito no referido documento, serve para demonstrar que a pessoa deu o seu consentimento à realização da busca, e assim para dar cumprimento à exigência do artigo 174.º n.º 5 alínea b) do Cód. Proc. Penal no sentido de que “os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado”.»
Na enunciação destas questões não se descortina uma qualquer regra abstracta susceptível de uma aplicação potencialmente genérica. Muito pelo contrário, a descrição de situações fácticas efectuada confunde-se com a perspectiva da Recorrente do caso concreto.
É verdade que pode admitir-se a hipótese de se encontrarem outros casos idênticos aos descritos pela Recorrente, mas essa hipótese não retira o cariz casuístico às interpretações enunciadas. Estas só se mostrariam aptas a abarcar outros casos por estes serem idênticos no plano dos factos e não por a interpretação, em si, ter um carácter de generalidade e abstracção que as vocacionasse a reger situações diversas.
Sendo patente a estruturação das referidas questões em torno das particularidades do caso, reproduzindo uma série de elementos especificamente caracterizadores de uma dada situação, mais do que identificando um critério normativo, não se vê que delas se destaque, com um mínimo de “distanciamento” qualquer dimensão normativa, como seria indispensável para as pretensas interpretações não se fundirem com o acto de aplicação.
Por estas razões justifica-se que não se conheça do mérito do recurso interposto, devendo ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelos Recorrentes da decisão sumária proferida nestes autos em 19 de Outubro de 2011.
Custas pelos Reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.