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Processo n.º 615/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), da sentença do Tribunal Judicial de Montemor-O-Velho, pretendendo “(…) com o presente recurso ver apreciada a (in)constitucionalidade da norma do n.º 2 da alínea b) do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) quando determina que a sentença que qualifique como culposa a insolvência de pessoa singular implica a inabilitação da insolvente por um período de 2 a 10 anos. Sobre esta norma já se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 173/2009, de 02/04/2009, declarando a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral mas apenas na parte em que impõe ao juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.”
2. Na sentença recorrida, decidiu-se que “(…) a citada norma é inconstitucional, não só nas situações directamente abrangidas pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, mas também nas situações em que, como acontece no caso vertente, o sujeito visado é a pessoa singular que foi declarada insolvente, pelo que, não se decretará a inabilitação da insolvente.”
3. Notificado para alegar, o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, concluiu do seguinte modo:
“1.º Uma vez que a conduta causadora da insolvência não ocorreu na gestão do património pessoal do inabilitado, mas sim no exercício da sua actividade profissional em nome individual, nem o interesse pessoal do inabilitado, nem o dos seus credores pessoais reclamam a medida de inabilitação, que, assim, se revela desnecessária e desadequada.
2° Como tal, é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 26° e 18.°, n° 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 189°, n° 2, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n° 53/2004, de 18/03, ao impor ao juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, que decrete a inabilitação de pessoa singular declarado insolvente.
3° Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.”
4. A Recorrida, A. não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação5. A decisão recorrida é idêntica à proferida no processo que correu termos neste Tribunal e que terminou com a prolação do Acórdão n.º 409/2011 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Disse-se, na fundamentação do citado Acórdão:
“2. Como vem de relatar-se, já foi objecto de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral a norma contida na alínea b) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE. A norma impõe que o juiz – na sentença que qualifique a insolvência como culposa – decrete a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 10 a 20 anos.
No Acórdão nº 173/2009 entendeu o Tribunal – na sequência de mais de três outras decisões tomadas em processos de fiscalização concreta – que era inconstitucional, por implicar uma restrição excessiva ao direito à capacidade civil contido no artigo 26.º da CRP, a norma do CIRE que impunha a decretação da inabilitação; e por isso declarou a sua invalidade com força erga omnes. Fê-lo no entanto nos moldes atrás relatados, isto é, na medida em que [tal norma] ‘decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente’.
Diverso é o segmento de norma que constitui o objecto do presente recurso.
Como já se viu, o que agora está em causa é a questão de saber se o juízo de inconstitucionalidade deve valer também para aquelas situações em que, tal como no caso dos autos, se imponha a decretação da inabilitação da pessoa singular que é declarada insolvente. Entende o recorrente que assim deve ser, em anuência, aliás, como o sentido da decisão do tribunal a quo, que se recusou a aplicar a um comerciante em nome individual a medida prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE.
3. No Acórdão nº 173/2009 proferiu-se declaração de inconstitucionalidade com os seguintes fundamentos:
5. O artigo 189.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, estabelece, sob a epígrafe ‘sentença de qualificação’:
«Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;
b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.»
A disposição legal prevê, portanto, para além de outras medidas, a inabilitação obrigatória das pessoas afectadas pela qualificação da falência como culposa, independentemente da verificação dos requisitos gerais da inabilitação.
Ainda que com antecedentes remotos no direito pátrio, que remontam ao Código Comercial de 1833, e se prolongaram até ao Código de Processo Civil de 1939, a solução não se encontrava prevista no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, pelo que tem carácter inovador.
Parece poder retirar-se de uma alusão expressa no n.º 40 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que a fonte directa da norma em causa foi a Ley Concursal espanhola (Ley 22/2003), promulgada pouco antes, em 9 de Julho de 2003. Mas aí (artigo 172., 2., 2.), a condição pessoal designada como ‘inabilitação’ afecta bem menos a capacidade do sujeito afectado, pois retira-lhe apenas legitimidade para administrar bens alheios e para representar outras pessoas – cfr. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, I, 6.ª ed., Coimbra, 2006, 125, n. 100.
Na doutrina, aventa-se a hipótese de que este diverso alcance se ficou a dever a uma tradução à letra do vocábulo ‘inhabilitácion’, sem representar o seu significado próprio no direito espanhol, não coincidente com o da figura como tal designada e regulada no nosso Código Civil, que o direito dos nossos vizinhos desconhece – cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES, ‘A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor’, Themis, 2005, 104, n. 36, e RUI PINTO DUARTE, ‘Efeitos da declaração de insolvência quanto à pessoa do devedor’, ibidem, 146 (Autor, este, que não hesitou em afirmar que ‘parece, pois, que o legislador do CIRE se equivocou quanto ao sentido da sua fonte inspiradora’).
Seja como for, a consagração da medida provocou, quase de imediato, viva reacção crítica na doutrina nacional, dela merecendo epítetos como ‘estranha’ (COUTINHO DE ABREU, ob. loc. cit.), ou “absurdas” (RUI PINTO DUARTE, ob. cit., 145, em referência às normas que a regulam: para além da norma sub judicio, o artigo 190.º do CIRE).
Mas, para lá das críticas que possa suscitar no plano do direito ordinário, será que a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE está também ferida de inconstitucionalidade?
6. Assim o entendeu o Acórdão n.º 564/2007, considerando que a disposição, ao impor a inabilitação como efeito necessário da situação de insolvência culposa, violava o artigo 18.º, n.º 2, e o artigo 26.º da Constituição, na parte em que este último reconhece o direito à capacidade civil.
Para decidir em tal sentido, o mencionado Acórdão, depois de afastar a violação de outros parâmetros constitucionais invocados pelo requerente, expendeu a fundamentação que a seguir se transcreve:
«De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, CARVALHO FERNANDES, ‘A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor’, Themis, ed. esp., 2005, 97. Trata-se, pois, de uma situação de incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar ‘actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença’ (artigo 153.º, n.º 1, do Código Civil).
Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que, contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da personalidade do incapaz. É ‘em homenagem aos interesses da própria pessoa profunda’ (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil, polic., Coimbra, 1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser decretada.
Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam legítimas quando os seus motivos forem ‘pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da capacidade da pessoa’, não podendo também a restrição ‘servir de pena ou de efeito de pena’ (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas (artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente, indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
Em vez de acorrer em tutela de um ‘sujeito deficitário’, precavendo os seus interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa situação.
Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural que, nesse regime, a fundaram.
E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência (…).»
Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo, tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).
Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na justa medida, os interesses dos credores.
Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil, mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de ‘incapacidade’) […]».
Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador. Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil, aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por A. PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos seus herdeiros.
A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode, pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.
Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área (designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois não se vê que outros possam ser utilizados.
Essa ‘pena’ fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)).
Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da República.»
7. Estando em juízo a violação do princípio da proporcionalidade – o que é um denominador comum a todas as decisões que sustentam o pedido em apreciação neste processo –, é determinante, para a formação dos juízos ponderativos que a aplicação desse princípio subentende, a identificação da teleologia imanente à norma sub judicio e dos interesses que ela procura acautelar.
Não existe, nesta matéria, unanimidade de concepções, como se pode constatar pela simples análise da jurisprudência deste Tribunal. Enquanto que o Acórdão n.º 564/2007 não logrou descortinar outra intenção legislativa, por detrás da imposição de decretar a inabilitação, que não fosse a de sancionar a conduta culposa dos sujeitos afectados, a decisão sumária n.º 615/2007, fazendo-se eco de algumas posições doutrinárias, deixa em aberto o entendimento alternativo de que ela visa proteger esses sujeitos.
Diga-se, além do mais que já ficou expresso naquele acórdão, que os pressupostos aplicativos da inabilitação, só imposta em caso de culpa qualificada (nos termos do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a culpa relevante circunscreve-se aqui ao dolo ou à culpa grave), criam obstáculos decisivos ao acolhimento desta segunda hipótese, fornecendo, ao invés, um bom argumento em prol da primeira.
Na verdade, se o destinatário da tutela fosse o próprio afectado pela medida, não se compreenderia a restrição do âmbito subjectivo dos destinatários aos administradores menos merecedores dessa protecção, por lhes ser imputável uma conduta gestionária altamente censurável, deixando de fora aqueles que actuaram sem culpa ou com culpa leve.
De resto, a ser esse o fundamento da inabilitação, ficaria sempre por explicar porque é que os pressupostos gerais dessa medida, tal como estabelecidos no Código Civil, se mostram aqui insuficientes ou inadequados, abrindo campo para a aplicação de uma medida restritiva da capacidade, como efeito acessório necessário de uma situação de insolvência culposa, sem dependência da comprovação, pelos meios processuais próprios, de um défice de capacidade natural.
O ponto decisivo é mesmo este. Na verdade, não pode excluir-se que a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, justificativa da insolvência, seja o resultado de um comportamento anómalo, revelador da falta de qualidades exigíveis para uma autónoma e auto-responsável gestão dos interesses próprios. Mas, para os casos em que assim é, não se vislumbram, sob o prisma da tutela do incapaz, especiais razões determinantes de desvios ao regime comum, quanto à certificação da ocorrência (e permanência) de qualquer das causas de inabilitação em geral previstas.
Ao dispensar inteiramente os pressupostos condicionantes consagrados no artigo 152.º do Código Civil, impondo ao juiz, em caso de insolvência culposa, o dever de, sem mais, decretar a inabilitação, o legislador mostra que a instituiu, em si mesma, como uma adicional causa autónoma dessa medida, por razões distintas da que subjaz ao regime das normas codicísticas.
É seguro, pois, que a medida não é determinada pela intenção de tutela do interesse do próprio inabilitado – incontroversamente o interesse visado por todas as formas de incapacidade submetidas ao regime comum, incluindo a inabilitação por habitual prodigalidade, como é entendimento unânime da doutrina privatista (cfr., por todos, além de ORLANDO DE CARVALHO, ob. loc. cit. no Acórdão n.º 564/2007, CARLOS MOTA PINTO, ob. cit. no mesmo acórdão, 227-228, e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, Coimbra, 2005, 3.ª ed., 109 e 117).
8. O Acórdão n.º 564/2007 assumiu que a vinculação das incapacidades a esse fim é também um imperativo constitucional, pelo que não é constitucionalmente admissível a instrumentalização das restrições à capacidade civil para atingir outros objectivos, designadamente como sanção à conduta culposa dos administradores da sociedade comercial declarada insolvente. Este entendimento já foi sufragado na doutrina (cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, Coimbra, 2009, 275-276).
No quadro desta posição, a solução em causa contraria o princípio da proporcionalidade logo no primeiro patamar do controlo da sua observância, pois a ‘legitimidade constitucional dos fins prosseguidos com a restrição’, bem como a ‘legitimidade dos meios utilizados’ constituem um ‘pressuposto lógico’ da sua idoneidade (nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, 166). Ora, se admitirmos – como se decidiu no Acórdão n.º 564/2007 – que só a tutela do naturalmente incapaz goza de credencial bastante como justificação constitucionalmente relevante de medidas restritivas da capacidade civil, fica, à partida, irremediavelmente comprometida a validação da utilização das incapacidades como meio de prossecução de qualquer outro fim. Independentemente da justeza intrínseca desse outro fim, é ilegítima a sua prossecução por meio da sujeição dos administradores a um regime de incapacidade como o da inabilitação.
Mas, mesmo adoptando uma posição mais complacente, acolhedora da legitimidade constitucional de uma concepção da inabilitação como um instrumento multivocacionado, idóneo a servir outros interesses, que não apenas os do próprio incapaz, a norma em questão não passa o test da proporcionalidade.
Na verdade, sendo nula a relevância da inabilitação no processo de insolvência e seus resultados (LUÍS CARVALHO FERNANDES, ob. cit., 102) não serão os interesses dos credores da massa insolvente (tutelados por outra via), mas interesses gerais do tráfico, designadamente mercantil, os visados com a medida. Nesta óptica (em que se coloca a declaração de voto de vencido exarada no Acórdão n.º 564/2007), tendo um carácter sancionatório, a medida estaria reflexamente abonada em razões de prevenção de condutas culposamente atentatórias da segurança do comércio jurídico em geral.
Simplesmente, para esse fim, continua a estar prevista a tradicional medida de inibição do exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º), como sanção adicionável, e não alternativa, à da inabilitação.
Tendo em conta o obrigatório decretamento da inibição – medida só justificável por atenção àqueles interesses gerais – e o universo dos afectados, coincidente com os sujeitos à inabilitação, pode concluir-se que a sanção mais gravosa da inabilitação não é indispensável para a salvaguarda desses interesses. Sendo assim, resulta violado o critério da necessidade ou exigibilidade, postulado pelo princípio da proporcionalidade.
Noutra óptica, para quem possa entender que a eficácia preventiva resulta melhor satisfeita com a inabilitação, será sempre de decidir que a cumulação e aplicação simultânea das duas restrições atenta contra a proibição do excesso.
É de concluir, pois, que, seja qual for a perspectiva elegida, quanto à finalidade do regime em apreciação, e quanto à teleologia do instituto da inabilitação, a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE viola o princípio da proporcionalidade.
4. Partindo do princípio segundo o qual o vocábulo inabilitação, contido na alínea b) do nº 1 do artigo 189.º do CIRE, mantém o mesmo significado qualquer que seja o âmbito das pessoas afectadas pela qualificação como culposa da insolvência – seja esse âmbito formado pelos administradores da sociedade comercial declarada insolvente, seja ele composto, como o é in casu, pela própria pessoa singular que é declarada insolvente – não se vê como pode deixar de ser aplicada à situação dos autos a argumentação que acabámos de transcrever, e que fundou, no Acórdão nº 173/2009, o juízo de inconstitucionalidade.
É que também nessas situações não pode deixar de configurar a inabilitação das pessoas afectadas por insolvência culposa – e que o legislador do CIRE impôs como efeito necessário da sentença que assim qualifica a insolvência – uma restrição de um dos direitos fundamentais de personalidade que o artigo 26.º da Constituição consagra, restrição essa que, por se não poder justificar pela necessidade de salvaguardar quaisquer ‘outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’, há-se ser, por força do disposto na parte final do nº 2 do artigo 18-º da CRP, constitucionalmente censurável. Com efeito, não sendo a forma especial de incapacidade a que se refere o artigo 152.º do Código justificável para proteger interesses de terceiros – mas apenas do próprio incapaz –, e oferecendo a própria lei da insolvência instrumentos idóneos para assegurar a necessária tutela dos interesses dos credores e a garantia geral da fluência do tráfego (nomeadamente pela medida definida na alínea c) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE), a decretação da inabilitação do comerciante em nome individual, como consequência necessária da insolvência, é – à semelhança do que ocorre com a decretação dos administradores de sociedades comerciais declaradas insolventes – uma restrição excessiva do ‘direito à capacidade civil’ que o nº 1 do artigo 26.º da Constituição consagra enquanto direito pessoal. Como nenhuma razão existe para que se emitam juízos diversos para as duas situações, também para o caso dos autos se profere, assim, decisão de inconstitucionalidade.”
É, assim, de reiterar a jurisprudência citada.
III — Decisão6. Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação dos artigos 26.º e 18.º, nº 2, da Constituição, a norma contida no artigo 189.º, nº 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, na medida em que impõe ao juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, que decrete a inabilitação da pessoa singular declarada insolvente;
b) e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida quanto ao juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Novembro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes (votei a decisão no pressuposto de que está em causa a inabilitação de um comerciante em nome individual) – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido, conforme declaração. – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tenho fundadas dúvidas quanto ao julgamento de inconstitucionalidade aqui afirmado, que, pela generalidade da pronúncia, parece alcançar o próprio regime previsto no Código Civil. Além disso, a simples circunstância de estar em causa a insolvência culposa uma pessoa singular, em vez dos administradores ou gerentes de sociedades comerciais, afasta, a meu ver, as razões que conduziram o Tribunal à declaração de inconstitucionalidade proferida no Acórdão n.º 173/09, sendo, diversamente, de admitir que a norma não apresenta natureza punitiva, mas se destina a proteger o insolvente, proibindo-lhe a actividade para a qual não tem, manifestamente, capacidade.- Carlos Pamplona de Oliveira.