Imprimir acórdão
Processo n.º 552/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. foi condenado, por sentença proferida a 27 de Junho de 2008 pela 1ª Vara Criminal do Porto, a seis anos de prisão, pela prática, como autor material, de um crime de burla agravada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, nº 2, alínea a), ambos do Código Penal.
Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto que, através de acórdão proferido a 25 de Março de 2009, decidiu negar provimento ao recurso, alterando contudo, e ainda assim, a pena que fora aplicada em 1ª instância, de modo a condenar o arguido em cinco anos de prisão.
A. apresentou então requerimento arguindo nulidades várias de que enfermaria o acórdão da Relação, referindo também obscuridade e erro material, arguição essa que, por decisão de 8 de Julho de 2009, veio a ser desatendida.
2. Recorreu então A. para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional: doravante LTC).
Dizia, no requerimento de interposição de recurso, que recorria, quer do acórdão de 25 de Março de 2009, quer do outro, subsequentemente proferido pelo Tribunal da Relação a 8 de Julho, por nele terem sido aplicadas normas cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo. Identificavam-se nesses termos quatro distintas questões de constitucionalidade que se pretendia que o Tribunal apreciasse.
A 24 de Setembro de 2010 foi decidido sumariamente (ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A da LTC) não tomar conhecimento de nenhuma dessas questões, por se entender que a respeito de nenhuma delas se perfaziam os correspondentes pressupostos de admissibilidade. Concordando com o assim decidido quanto a três dessas questões, reclamou no entanto o arguido para a conferência (artigo 78.º-A, nº 3, da LTC) quanto à decisão de não levar a julgamento a questão restante, que se cifrava no problema de saber se seria ou não inconstitucional, por violação das garantias de processo criminal constantes do artigo 32.º da Constituição, a norma contida no artigo 358.º do Código de Processo Penal, no juízo interpretativo que dela havia feito o Tribunal da Relação do Porto, quer no Acórdão de 25 de Março quer no Acórdão de 8 de Julho, segundo o qual a “convolação” do ofendido ou da vítima, num crime de burla, não se traduz em uma nova “qualificação jurídica dos factos” para efeitos do disposto no artigo 358.º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Justificou assim A. a sua reclamação:
o recorrente foi pronunciado e condenado em primeira instância por um crime de burla agravada, havendo-se entendido, nos correspondentes despacho e acórdão, que a vítima de tal crime (a pessoa ou entidade que sofrera o correspondente prejuízo patrimonial) fora o Banco de que era funcionário.
(A matéria de facto relativa a eventual burla a Clientes, que estava na douta pronúncia foi, pois, considerada como não integradora do crime por que veio a ser condenado – artigos 1°, a) e 338, n° 4, ambos do C.P.P.)
Recorreu – só ele! – da decisão.
E, no Tribunal da Relação a quo, mantendo-se embora a condenação pelo mesmo “tipo” formal de crime, entendeu-se todavia, que a vítima ou vítimas do mesmo foram – agora – antes os clientes do Banco.
Ou seja: o Tribunal de recurso «absolveu» o recorrente do crime de burla ao Banco e passou a «condená-lo» pelo crime de burla aos clientes da instituição bancária;
o Tribunal da Relação procedeu, consequentemente, a um diferente enquadramento ou qualificação dos factos consubstanciadores da infracção criminal imputada ao recorrente.
Mas fê-lo sem previamente dar a este último oportunidade de pronunciar-se sobre esse novo enquadramento ou qualificação dos factos, cuja análise retomou, depois de a ter considerado irrelevante, isto é, sem lhe dar a correspondente possibilidade de defesa;
surpreendido com a alteração operada pelo Tribunal de recurso (a qual não estava adstrito, de modo algum, a antecipar e a prevenir, atenta a relevância jurídica que para eles decorria da desconsideração na douta decisão recorrida), o recorrente reagiu, contra o facto, desde logo, de não lhe ter sido previamente facultada essa possibilidade de defesa,
na primeira oportunidade processual que se lhe deparou, a saber, na reclamação por nulidades, dirigida ao próprio Tribunal da Relação, do acórdão por este proferido. E situou essa reacção também (e até essencialmente) num plano de constitucionalidade;
Concluía, depois, que, ao situar a questão neste plano, se não cingira nem ativera à singularidade da situação concreta, equacionando antes uma questão de constitucionalidade que, por se referir com suficiente generalidade a uma “situação típica”, se incluiria ainda, e ao contrário do que fora decidido sumariamente, no âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional.
Pelo Acórdão nº 76/2011 decidiu o Tribunal deferir, quanto a este ponto, a reclamação apresentada.
Assim, e de acordo com o decidido, foi ordenada, nos termos do nº 5 do artigo 78.º-A da LTC, a produção de alegações de recurso, circunscrito este à apreciação da constitucionalidade da seguinte norma: a que decorre do juízo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, segundo o qual a “convolação” do ofendido ou da vítima, em crime de burla, se não traduz em uma nova qualificação jurídica dos factos, para o efeito do disposto no nº 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal.
3. Apresentou o recorrente as suas alegações de recurso, assim circunscrito à questão da constitucionalidade da norma atrás enunciada. Sustentou, basicamente, que os limites dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional não impediam, no caso, nem que se tomasse conhecimento da questão de fundo nem que para ela se proferisse juízo de inconstitucionalidade. E continuou, alegando que o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 25 de Março, aplicara implicitamente a norma sob juízo, ao alterar a sua condenação por burla agravada não com base no prejuízo sofrido pelo Banco – tal como fora acusado, pronunciado e condenado em 1ª instância – mas com base em prejuízo patrimonial dos clientes do Banco; que, ao assim proceder, o tribunal a quo o teria absolvido do crime de burla ao Banco, condenando-o ex novo em crime diverso, a saber, o de crime de burla aos clientes do Banco; que, perante uma tal alteração da qualificação jurídica dos factos, consubstanciadores da infracção criminal que lhe fora imputada, lhe não teria sido concedida qualquer possibilidade de defesa; pelo que concluía, citando jurisprudência constitucional sobre o tema, que, com a aplicação da norma sob juízo, fora lesada a Constituição, mormente o direito de defesa em processo criminal constante do nº 1 do artigo 32.º e os princípios atinentes à estrutura acusatória do processo, constantes do nº 5.
Contra-alegou o Ministério Público, dizendo, substancialmente, o seguinte: (i) que o acórdão da Relação não procedera a qualquer alteração da matéria de facto, mantendo também a qualificação jurídica dos mesmos, e apenas reduzindo – face à condenação proferida em 1ª instância – a pena de seis anos em cinco anos de prisão; (ii) que o diferente enquadramento feito nesse acórdão quanto à identificação das vítimas (os clientes do banco, prejudicados directamente pela actuação do recorrente) se devera ao facto de, aquando do julgamento em 1ª instância, os clientes-depositantes se não encontrarem lesados, uma vez que o Banco lhes pagara as quantias devidas; (iii) que a questão da identificação do(s) prejudicado(s) com o comportamento do recorrente e das consequências jurídicas daí decorrentes fora uma das questões colocadas pelo próprio recorrente nas alegações de recurso para a Relação; (iv) que, assim sendo, se não poderia concluir, à luz da jurisprudência constitucional, que a “norma” sob juízo lesara o direito de defesa do arguido em processo criminal (artigo 32.º, nº 1, da CRP) ou a estrutura acusatória do processo (artigo 32.º, nº 5).
O Banco, na qualidade de recorrido, também contra-alegou, começando por colocar uma questão prévia: a do não conhecimento do recurso por parte do Tribunal Constitucional, por se não verificarem no caso esgotados (como o impõe o nº 2 do artigo 70.º da LTC) os recursos ordinários que da decisão cabiam. A fundamentar a colocação desta questão prévia, disse ainda o recorrido que a falta da notificação a que se referiria o artigo 358.º do CPP (a dar-se como demonstrada) teria como consequência, não, como alegava o recorrido, a nulidade do processo mas tão somente a sua irregularidade, pelo que, nos termos do regime previsto no artigo 123.º do CPP, deveria ter sido tal irregularidade arguida no prazo aí indicado. Não o tendo sido, faltava, no caso, o pressuposto de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, consistente no necessário esgotamento dos “recursos ordinários” que da decisão coubessem.
Quanto à questão de fundo, pugnou o recorrido pelo juízo de não inconstitucionalidade, invocando para tanto três razões essenciais: primeiro, porque, através do enquadramento processual e factual da questão, se demonstraria que o arguido sempre tivera conhecimento (nomeadamente, pelo texto constante do despacho de pronúncia e pelo teor da contestação por ele oferecida em 1ª instância) da questão que agora vinha colocar, relativa à identificação das vítimas do crime de burla de que vinha acusado, pelo que se não poderia sustentar a tese da impossibilidade de defesa; segundo, porque, tendo ocorrido, com o julgamento em segunda instância, perfeita inalteração da qualificação jurídica dos factos, o crime no qual fora condenado, nessa instância, o arguido, não era crime diverso do que implicara condenação na 1ª instância; terceiro, porque a precisão – operada na 2ª instância – de quem, no entender do tribunal, sofrera o prejuízo patrimonial decorrente da actuação do arguido só tinha tido como consequência a redução da concreta pena de prisão que lhe fora aplicada, de seis anos para cinco anos. Pelo que assim concluía pela inexistência, no caso, de qualquer violação das garantias de defesa em processo criminal, ou da estrutura acusatória do processo, constitucionalmente consagradas.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Importa antes do mais apreciar a questão prévia, relativa à admissibilidade do recurso, colocada ao Tribunal por um dos recorridos nas suas contra-alegações. Como acabou de ser relatado, entende o Banco que se não encontram no caso esgotados os recurso ordinários que cabiam da decisão, pelo que, nos termos do nº 2 do artigo 70.º da LTC, não haverá lugar para o recebimento do recurso por parte do Tribunal Constitucional. Assim é – diz – porque a ausência da notificação a que se refere o artigo 358.º do CPP (nºs 1 e 3), caso ocorra, não gera a nulidade do processo mas a sua mera irregularidade, pelo que, nos termos do que dispõe o artigo 123.º do mesmo código, deve ser arguida no prazo aí previsto. Como, in casu, não houve essa arguição, não chegaram a ser esgotados os recursos ordinários que caberiam da decisão, pelo que não deve o Tribunal receber a questão que lhe foi, extemporaneamente, colocada pelo recorrente.
Independentemente do acerto ou desacerto desta construção – problema que agora se não analisará –, a verdade é que, de acordo com o que dispõe o nº 4 do artigo 78.º-A da LTC, “ [a] conferência decide definitivamente as reclamações”. Ora, tendo o Tribunal decidido, em conferência, no Acórdão nº 76/2011, deferir a reclamação apresentada quanto a uma das questões de constitucionalidade colocadas no requerimento de interposição do recurso, e, portanto, quanto a ela, conhecer do mérito do mesmo, não pode agora ser reequacionado o problema prévio da sua admissibilidade. A conferência resolveu-o, como diz a lei, definitivamente.
5. Como o salienta o próprio recorrente nas suas alegações, e como o sublinha, também, o Exmo. Representante do Ministério Público junto do Tribunal, o juízo sobre a questão de constitucionalidade – restrito, nos termos da Constituição, à constitucionalidade de normas e só de normas – não pode implicar a revisão sobre o modo como a decisão recorrida interpretou e aplicou o direito ordinário. Assim, não cabe ao Tribunal Constitucional saber se foi ou não correcta a interpretação que o tribunal a quo fez da norma inscrita no nº 3 (e no nº 1) do artigo 358.º do CPP, como lhe não cabe encetar discussões dogmáticas sobre o problema de saber se, tendo havido, em crime de burla, “convolação” do ofendido ou da vítima, se estará, ou não, perante uma alteração da qualificação jurídica dos factos que implique a imputação, ao arguido e embora sob um mesmo nomen juris, de crime diverso daquele pelo qual, antes de operada a dita “convolação”, o mesmo fora acusado. De nenhuma destas questões se ocupa o Tribunal Constitucional. À semelhança do que sucedeu em casos similares, em que o seu juízo incidiu sobre normas constantes dos artigos 358.º e 359.º do CPP (por exemplo: Acórdãos nºs 173/92, 279/95, 16/97, 445/97, 674/99 e 72/2005, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) ), a questão que o ocupará será somente a de saber se a interpretação que a decisão recorrida fez – através da norma do caso – daqueles dispositivos legais lesou ou não as garantias de processo criminal consagradas no artigo 32.º da CRP.
É que, tal como se disse no Acórdão nº 173/92, é claro que da Constituição decorre que, em processo criminal, nenhuma questão pode ser apresentada ao tribunal para julgamento sem que tenha sido previamente delimitado o seu objecto num documento (a acusação, ou requerimento acusatório) que indique os factos de que o arguido é acusado e qual o seu enquadramento jurídico-penal (…), pois que, como a acusação fixa o objecto do processo, o julgamento incide sobre a matéria da acusação, não podendo o tribunal, por sua iniciativa, ou por iniciativa da parte acusadora, apreciar questões diversas das descritas na acusação, julgar um arguido por factos que foram atribuídos a outro, nem muito menos julgar pessoas nela não indicadas. Uma norma legal que o permitisse violaria este [o constante do nº 5 do artigo 32.º da CRP] princípio constitucional.
Da Constituição decorre ainda – disse-se também no referido Acórdão – um processo penal legislativamente orientado pelas referências de um due process of law, processo esse que não deve incluir normas ou procedimentos aplicativos delas que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.
É pois, à luz desta doutrina que cabe decidir quanto ao caso em apreço: o facto de nele estar em causa uma invocada “alteração da qualificação jurídica dos factos” que terá ocorrido, não entre a acusação e a condenação, mas entre o julgamento em 1ª instância e a decisão de recurso, em nada altera a aplicabilidade da referida doutrina. Estão em juízo as consequências que, para a conformação do direito ordinário, decorrem de princípios fundamentais em processo criminal, como os relativos ao direito de defesa do arguido e à estrutura acusatória do processo. Princípios esses que, sendo embora fundantes das opções básicas que estruturam a ordem processual penal (enquanto “direito constitucional concretizado”), não deixam – como sucede com quaisquer outros princípios constitucionais – que ter que conviver praticamente com outros, como os respeitantes à legalidade da acção penal, da prossecução da verdade material ou da devida celeridade do processo.
6. Assim, tem entendido a jurisprudência constitucional relativa à aplicação das normas contidas nos artigos 358.º e 359.º do CPP (para o caso, interessa sobretudo aquela especialmente incidente sobre o nº 3 do artigo 358.º) que não é uma qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos que, a ser invocada, pode justificar o juízo de inconstitucionalidade sobre a “norma do caso”. Decorre dessa jurisprudência, atrás citada, que esse juízo, a ser proferido, assenta sobre dois pressupostos fundamentais, constantes aliás da fórmula da decisão proferida, com força obrigatória geral, no Acórdão nº 445/97: primeiro, o de que a diferente qualificação jurídica dos factos (a ocorrer), tenha conduzido a uma agravação da condição jurídico-penal do arguido; segundo, o de que, tendo sido este último desprevenidamente confrontado com essa alteração, não pudesse orientar quanto a ela a sua estratégia de defesa.
Nenhum desses pressupostos se verifica no caso concreto.
Antes do mais, e como já se viu, não se verifica o primeiro. Qualquer que seja a natureza do diverso “enquadramento” feito pelo Tribunal da Relação quando diz, no Acórdão de 25 de Março de 2009 – e confirmado depois pelo Acórdão de 8 de Julho – “[d]amos, assim, por preenchidos todos os pressupostos do crime de Burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal. Relativamente à decisão recorrida, há apenas a realçar o diferente enquadramento por nós seguido no que toca à identificação das vítimas que são também os prejudicados directos da actuação do recorrente: os clientes-depositantes [mas não o Banco]”, a verdade é que esta alteração não importou agravamento, mas melhoria, da condição jurídico-penal do arguido (que viu a sua pena de prisão baixar de seis para cinco anos).
Por outro lado, não pode afirmar-se que este diverso “enquadramento” tenha sido para o arguido de tal modo surpreendente que o inibisse de uma adequada estratégia de defesa.
A prová-lo está o teor das alegações de recurso perante o Tribunal da Relação. Nelas, com efeito, é o próprio arguido, agora recorrente, que coloca ao tribunal a questão da “identificação” do ofendido no crime de burla em que vinha condenado, nos seguintes – e inequívocos – termos: “A condenação do recorrente decorre de um crime de burla qualificada. (.) Mas, a quem- Aos vários depositantes- Ao Banco-” (fls. 2684)
Manifesto é, pois, que se não encontram no caso reunidos os fundamentos justificativos do juízo de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixadas em 25 ucs. da taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Outubro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.